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03 Março 2023 | Renata Vomero

Burnout da diversão: o desgaste do gênero de heróis com o excesso de narrativas seriadas

Analistas refletem sobre um possível declínio destas histórias que dominaram o mercado na última década

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(Foto: Divulgação)

A indústria cinematográfica vem tentando entender o comportamento das audiências nesta fase que já podemos chamar de pós-pandemia. Enquanto de um lado há agora a materialização do fato de que parte considerável do público perdeu o hábito de ir ao cinema, de outro lado há também a constatação de que histórias que antes eram certeiras agora parecem não ter tanta sustentação diante do público.

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É o caso do que vem se debatendo ultimamente sobre um suposto esgotamento ou fadiga quanto aos filmes de heróis, estes que quebravam recordes atrás de recordes antes da pandemia e que, agora, seguem fazendo sucesso, mas com um pouco menos de barulho. Ainda mais quando novos lançamentos chegam ao patamar do que estes títulos alcançavam, caso, por exemplo, de Top Gun: Maverick (Paramount) e Avatar: O Caminho da Água (Disney).

Essa conversa foi reaquecida recentemente com o lançamento de Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania (Disney), que fez grande abertura com mais de US$200 milhões globais, no entanto, caiu 70% em sua dobra, enquanto encara uma estreia morna do que é a Fase 5 da Marvel. Aqui vale ressaltar que tudo isso está longe de ser um fracasso: mesmo com a queda, o filme ainda liderou as bilheterias com excelentes números. No entanto, para os próprios parâmetros do MCU, os resultados servem de alerta para os executivos do estúdio e do mercado.

Inclusive, o próprio Kevin Feige, presidente do Marvel Studios, falou sobre o assunto justamente na ocasião da estreia do longa e da nova fase do MCU. Segundo ele, não há uma saturação do gênero, porque não tem como as pessoas se cansarem disto, já que são diferentes tipos de histórias sendo contadas em cima de um vasto, diversificado e inesgotável material publicado nas histórias em quadrinhos.

Ainda assim, na sequência dessa fala, ele anunciou que a Disney não lançaria o número programado de séries do MCU no streaming, dando um tempo de maturação para o público a partir de um intervalo maior entre estreias.

“Um dos aspectos mais poderosos de ser do Marvel Studios é ver esses filmes e séries atingindo o zeitgeist. É mais difícil fazer isso quando há tanto produto lá fora — e tanto 'conteúdo', como eles dizem, que é uma palavra que eu odeio [risos]. Mas queremos que o Marvel Studios e os projetos do MCU realmente se destaquem. Então as pessoas verão isso conforme avançamos nas fases 5 e 6. O ritmo com que estamos lançando as séries no Disney+ vai mudar para que cada um deles tenha sua chance de brilhar”, destacou em entrevista recente ao Entertainment Weekly.

Ele fala isso porque esse sentimento de esgotamento vem acompanhado do que foi apresentado na Fase 4 do MCU, iniciada após o fim da Saga do Infinito, basicamente encerrada com os fenômenos dos últimos Vingadores. Ela começa justamente no ponto em que o streaming da casa é lançado e junto a ele são anunciadas uma infinidade de séries que se cruzam e dão continuidade aos filmes destes heróis dos cinemas. E ingrediente adicional a este bolo, aconteceu a pandemia, com as pessoas trancadas em casa consumindo estes conteúdos em quantidades avassaladoras.

Como resultado, entre 2020 e 2022, quando essa fase inteira decorreu, foram lançadas 15 produções entre filmes e séries que estavam intrinsecamente interligadas e que dependiam de seu consumo para que os espectadores compreendessem o que viria pela frente e avançassem no universo. Tudo isso parecia interessante ao primeiro olhar, mas quando a pandemia arrefeceu não havia mais espaço de tempo e nem dinheiro para assistir (ou assinar) a tudo isso.

“Tanto a Marvel, quanto Star Wars e alguns outros universos, começam essa gincana de que se você não acompanhar, não vai entender. Então, ‘se não vou acompanhar e não vou entender, vou sair disso’, pensa o público. É a sensação de que você está acessando um browser em que você só abre abas e chega um momento em que você fica totalmente sobrecarregado. Tem a ver com esse momento em que a gente está vivendo neste pós-pandemia, em que essa sensação de FOMO [“fear of missing out”, na sigla em inglês] aumentou muito. Volta a vida real e você tem menos tempo, porque tem o deslocamento, vida social, menos dinheiro, além de tudo ainda ter que continuar nesse ritmo”, destacou Pedro Curi, coordenador dos cursos de Cinema e Jornalismo da ESPM RIO, além de ser pesquisador em estudos de comportamento de fãs.

Neste ponto, ele destaca que essa imposição de uma infinidade de narrativas seriadas e intercaladas não tem sido exclusividade dos universos de super-heróis, há essa lógica nos mais diversos produtos lançados para televisão, cinema e entretenimento como um todo.

No entanto, claro, o reflexo desta perda de controle da indústria quanto ao volume de oferta ao fã se reflete de maneira mais contundente nos filmes de heróis e especificamente dos filmes da Marvel, justamente pela escala de sucesso que alcançaram e também pelo maior volume de lançamentos deste tipo.

“Não acho que seja só sobre super-heróis, mas isso fica muito claro na Marvel, ela cresceu muito mais que Star Wars, mas para isso ela cometeu o erro de fragmentar demais. Star Wars deu certo porque tinham as trilogias, elas são o eixo; as outras coisas cruzam e o espectador pode decidir acompanhar outra coisa ou não, mas será sempre levado de volta a este eixo, é a nave-mãe, como é dito em transmídia”, referiu-se Pedro.

E aqui fica impossível não evocar novamente aquele que é considerado um dos maiores pensadores acerca da cultura de fãs e transmídia, o comunicador estadunidense Henry Jenkins. Em entrevista ao Portal Exibidor, em 2020, ele justamente citou a falta desta “nave-mãe” no universo da Marvel, embora, na época acreditasse que fosse justamente esse o fandom que mais movimentaria a retomada dos cinemas naquele cenário, o que realmente aconteceu.

Outro ponto importante reforçado pelo pensador e retomado na fala de Pedro Curi é justamente o que torna o fã, um fã, e isso se dá no espaço da repetição, ou seja, quando a pessoa consegue consumir aquilo tantas vezes, que ganha domínio sobre aquele produto, isso é impossível de acontecer quando se lança 15 histórias em dois anos. E mais, para quem quer entrar naquele universo, não há essa abertura, já que uma história amarra a outra e fica impossível encontrar um ponto de ingresso para entender aquele mundo e avançar a partir dali. Soma-se a isso o fato de quase não haver perspectiva de finalização destes diversos arcos que estão sendo abertos continuamente.

“Tenho que dar a sensação de que aquilo basta para a pessoa, mesmo que tenha uma coisinha ali que torne a experiência mais completa em outro lugar, mas que não impeça a pessoa de entender caso não continue em outro lugar. Do contrário, vira um papo de fã para fã e isso é nicho, e não faz sentido aplicar lógica de nicho para o mainstream. Você tem que falar também com alguém que nunca viu aquilo e apareceu ali no sábado a noite para ver qualquer coisa que estava passando e não quer ter feito uma pós-graduação para entender o filme”, destacou.  

Como dito anteriormente, há ainda um sentimento universal que ronda as pessoas neste novo momento da sociedade: a ansiedade. Estamos tão imersos nas redes sociais e preocupados em vivenciar tudo ao vivo, participando de todas as conversas, que realmente não ajuda o fato de haver um filme sendo lançado que só pode ser integralmente compreendido caso o espectador tenha consumido outros títulos lançados anteriormente, ou ao menos, assistido a algum YouTuber explicando o que ele precisa saber.

“Você fica com a sensação de que não está fazendo o dever de casa e ninguém quer ser cobrado na hora de se divertir. Não estou mais dando conta, então, prefiro sair”, definiu. Se trata, portanto, de um burnout da diversão ou do entretenimento.

E de fato essa parece ser a definição perfeita para esse cenário, ao invés de garantir um momento de lazer e tranquilidade, a indústria está impondo ao público uma lógica, vejam só, industrial, de produtividade. Impossível que isso não estoure a bolha.

No entanto, há, claro, caminhos viáveis para retomar uma relação saudável com o público e que tenha ainda apelo comercial. O próprio Kevin Feige já sinalizou que pisará no freio quanto ao volume de produções, um indicativo de que o estúdio já entendeu o quanto pesou na mão.

Ainda assim, talvez o melhor seja oferecer ao público, obviamente, boas histórias, mas acima de tudo, devolver a ele o controle: do que assistir, quando assistir e como. E aí deixar que ele mesmo preencha as lacunas e construa essa serialização da narrativa como preferir.

“O público gosta da autonomia, de ter controle do caminho que faz, não gosta de ser forçado a seguir um caminho. Você tirou a escolha do fã e ele é caracterizado por ser um consumidor que tenta ganhar domínio do que gosta, esse domínio vem de consumir aquilo repetidamente, aí você não deixa ele assistir tanto o que gosta e tira a escolha dele. Acho que as pessoas talvez deem um passo atrás e comecem elas mesmas a criarem essas narrativas de preenchimento, com a decisão do consumidor dos níveis de que mais acompanhar e o que”, finalizou.

 

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