15 Fevereiro 2023 | Renata Vomero
Acessibilidade de conteúdo: Players avaliam implementação da obrigatoriedade no Brasil
100% do parque exibidor brasileiro deve oferecer recursos de acessibilidade desde janeiro
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Em 2 de janeiro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 13.146, de 2015, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que obriga a todos os cinemas disponibilizarem os filmes com recursos de acessibilidade para que as pessoas com deficiência auditiva ou visual tenham acesso a tais conteúdos. A lei e a normativa da Ancine (Nº 165) que prevê as especificidades de sua implementação e impõem que todos os filmes ofereçam, portanto, os recursos de audiodescrição, legendas descritivas e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).
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No entanto, não foram poucos os desafios desde sua criação até sua consolidação prática, contando com a formação, em 2016, de uma Câmara Técnica pela Ancine, responsável por criar as diretrizes de acessibilidade, passando depois por diversos adiamentos da obrigatoriedade e algumas mudanças em suas especificidades.
Com isso, desde 2017 as distribuidoras, sejam as brasileiras, sejam as majors, oferecem seus filmes com os recursos de acessibilidade. Para chegar neste momento, no entanto, houve o primeiro desafio: conseguir criar uma tecnologia que pudesse oferecer o recurso de LIBRAS, algo que não havia precedente em lugar algum do mundo.
“Sempre tivemos muito atentos e participamos ativamente das discussões para implementar a acessibilidade no Brasil da forma como era exigida, em outros lugares do mundo, em outros continentes onde existe essa obrigatoriedade, isso já era cumprido pelos estúdios. Só que o Brasil inova quando ele também obriga a exibição de língua de sinais, quer dizer, não existe essa obrigatoriedade em nenhum outro país”, explicou Andressa Pappas, diretora de relações governamentais da MPA no Brasil.
E na esteira da solução deste obstáculo, surgiram outros diversos, como a melhor forma de empacotar estes recursos nos DCPs dos filmes e depois como transferir tais DCPs para as salas de cinema diretamente para os aparelhos definidos para exibi-los ao público.
Nesta ponta final surgiram as tecnologias que criaram equipamentos exclusivos para essa funcionalidade, essas soluções vieram pelas empresas Dolby e Riole, que desenvolveram, com ajuda de parceiros, os aparelhos CineAssista e ProAcess. Ambos foram aprovados pela Câmara Técnica por conta da praticidade e segurança, embora implicassem em maior investimento de aquisição por parte dos exibidores.
“A Dolby abraçou o compromisso de procurar uma solução proprietária com todos os requerimentos e funcionalidades estabelecidos na câmara técnica em 2017, o resultado foi desenvolver um produto robusto com uma tecnologia avaliada e rigorosa como é o CineAssista”, reforçou Luciano Taffetani, gerente de vendas sênior e parcerias para cinema da Dolby América Latina. O aparelho está sendo usado desde 2022 nos EUA e na Europa, e mais recentemente no Reino Unido e Austrália; além de cumprir com todos os requisitos técnicos e não ter custo futuro associado, possui bateria de longa duração, braço flexível que pode ser encaixado no apoio para copos da poltrona, tela com privacidade para não atrapalhar as pessoas ao redor e também passa por constantes aprimoramentos de seu software para levar os recursos com a maior qualidade possível ao espectador.
No entanto, com a crise na exibição causada pela pandemia, o mercado combalido passou a se recuperar lenta e gradualmente, o que preocupou o setor na medida em que o prazo para a obrigatoriedade se aproximava.
Desta forma, a partir de novas reuniões, encontros e testes, a Ancine liberou uma nova normativa no final do ano passado que possibilitava o uso de aplicativos avaliados e aprovados para que pudessem ser utilizados para este fim. Ficava, então, a cargo dos players a definição do que implementariam.
“A solução dos equipamentos exclusivos era a definição até o ano passado, e tudo isso teria um custo, que os exibidores teriam que investir. Esses aparelhos têm custo de importação, quem impôs a obrigatoriedade não fez nenhum incentivo fiscal para reduzir esses valores. Tudo isso deixou o processo caro e os exibidores começaram a buscar outra alternativa, que era antiga, a dos aplicativos”, destacou Cesar Silva, vice-presidente e diretor-geral da Paramount Brasil. Sobre a possibilidade do uso destas plataformas, ele ainda destacou: “Quem flexibilizou foram os distribuidores, os proprietários dos filmes, quem autorizou isso foram os distribuidores, todos, os independentes e as majors. A responsabilidade de entregar o equipamento e orientar os consumidores é dos cinemas. A gente entrega o conteúdo cada um no aplicativo que escolheu e o exibidor tem a responsabilidade de facilitar isso para o consumidor.”
Desafios 2.0
No entanto, a mudança da normativa veio gerando diversos debates no setor, a começar pelas empresas que criaram as tecnologias e os aparelhos exclusivos para isso, tudo dentro de todas as diretrizes apoiadas pelos exibidores e pelos estúdios e que, até então, havia sido priorizada pela própria Ancine.
“Os adiamentos nos prazos de implementação junto com a crise mundial resultaram nas medidas atuais, que possibilitam agora o uso de soluções não proprietárias em que os usuários têm que ter seu próprio aparelho e descarregar o conteúdo de uma nuvem. Seria importante que a Ancine regulamentasse as implementações, e que também apoiasse os exibidores que tem créditos aprovados do BRDE para executar acessibilidade desde outubro do ano passado e que ainda não conseguiram a liberação dos recursos. A Dolby tem segurado certo estoque de pronta entrega que pode ser comprado com redução de impostos mediante o programa RECINE”, destacou Taffetani, o executivo afirmou que atualmente 1293 salas do Brasil estão equipadas com a solução CineAssista.
Quanto ao uso destas plataformas nos celulares, algumas majors estão cobrando uma taxa por filmes dos exibidores que oferecem essa solução para dividir os gastos que estão tendo em oferecer os conteúdos acessíveis. Entre todas as dificuldades, os aplicativos também estão sendo amplamente utilizados tanto pela questão econômica por parte dos cinemas, tanto pela praticidade e possibilidade de ampliação do público, já que um dos dilemas dos equipamentos proprietários, pelo custo, é a quantidade mais baixa de disponibilidade por sala.
“Decidimos oferecer os recursos desta forma com o objetivo de contemplar um público mais amplo, já que o aplicativo permite que aqueles que necessitam de acessibilidade assistam aos filmes em qualquer horário e sessão. Sabemos da importância de ter a acessibilidade embarcada no DCP, e trabalhamos também com este formato, porém precisávamos ir além, já que com o DCP a utilização do recurso depende da quantidade de equipamentos fornecidos pelo cinema. Isso impossibilita, por exemplo, que um grupo maior de pessoas utilize o recurso em uma sessão, pois não haveria equipamentos suficientes para atender todos de uma só vez. Usando o aplicativo de acessibilidade e levando em consideração que o celular é um aparelho que a maioria das pessoas adultas possuem, percebemos que a acessibilidade poderia abranger muito mais pessoas”, responderam a Diamond Films e Galeria Distribuidora, que oferecem os recursos desde 2017 e desde 2021, com o lançamento de No Ritmo do Coração, oferece seus filmes que chegarão a mais de 20 salas com acessibilidade por meio do app MovieReading.
Entre os aplicativos mais usados neste momento estão o MovieReading, Mobi Load e Greta, definidos por cada distribuidora. O processo para escolha destas marcas foi feito no ano passado em parceria com a ABRAPLEX (Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex), os fornecedores e os estúdios, já que, se houvesse a abertura para seu uso, estes serviços deveriam seguir uma série de diretrizes para abranger os interesses dos players e favorecer o público.
“Ficou definida a possibilidade do uso de aplicativos que oferecem os recursos de acessibilidade, para além dos aparelhos exclusivos para tal. Foi um grande avanço pois, com esses apps, foi observado um número superior a qualquer outro período, de pessoas com deficiência visual ou auditiva utilizando seus próprios aparelhos nas salas de cinema. Segundo dados, houve quase 10 mil acessos aos arquivos de acessibilidade em nuvem só no mês de janeiro. Em um único mês, tivemos mais surdos ou cegos acessando filmes do que o total de usuários da antiga tecnologia nos cinco anos em que esteve disponível”, comentou Caio Silva, diretor executivo da Abraplex.
Segundo dados da associação, em janeiro foram registrados 1.553 downloads de recursos de acessibilidade no Mobi Load, a MovieReading registrou 9.200 acessos em janeiro e a Greta não informou seus dados.
Próximos Passos
Embora sejam números que mereçam ser destacados, há uma certa unanimidade na fala dos players sobre a necessidade de reforçar a comunicação dos cinemas para que o público com deficiência tenha consciência de que estes ambientes estão aptos para recebê-los.
“Os exibidores precisam trabalhar a divulgação dessa novidade. Eles precisam viabilizar isso com a parte de divulgação e treinamento das equipes, porque nossa parte é de oferecer os conteúdos, mas precisamos desse esforço institucional para divulgar”, comentou Cesar Silva.
Ele ainda destacou um fato importante sobre estes últimos cinco anos desde que os cinemas começaram a oferecer os recursos, há diversos relatos sobre a falta de treinamento das equipes para receber este público, passando por pouco conhecimento sobre os aparelhos e até o mau uso destes, por conta do tempo em desuso. O Portal Exibidor, inclusive, fez uma grande reportagem para a revista impressa em 2019 justamente relatando este tipo de evento dentro de algumas redes exibidoras. Na época, se aproximava o prazo da obrigatoriedade, que seria em janeiro de 2020.
Desta forma, pode ter havido uma certa falta de aproveitamento de tempo por parte dos cinemas para treinarem suas equipes, o que agora está acontecendo. A ETC Filmes, responsável por tornar os conteúdos acessíveis, criou, inclusive, um curso de treinamento online sobre o tema, para reforçar a importância das equipes estarem bem alinhadas com os recursos de acessibilidade.
Dito isto, fica evidente o quanto este primeiro momento da obrigatoriedade está sendo desafiador, passadas as dificuldades com as tecnologias, o momento agora é de alinhamento das operações nos cinemas junto aos estúdios e ao público, principal interessado nessa possibilidade.
“Creio que o maior desafio hoje não é, portanto, tecnológico, mas sim, de comunicação, empatia e engajamento. Existe agora a necessidade do entendimento desse novo momento do cinema e da acessibilidade, que depende de todos os setores envolvidos: exibidores, distribuidores, produtores e da sociedade em geral, pois temos um compromisso de inclusão muito importante, que precisa ser encarado de forma prioritária e qualitativa, por todos os envolvidos nesse processo, diante do compromisso com esse novo público dos cinemas”, destacou Maurico Santana, diretor executivo da Iguale Comunicação de Acessibilidade, representante do MovieReading no Brasil. O executivo atualizou os dados do app: foram 27 filmes fornecidos e 11.779 downloads até 9 de fevereiro.
Seguindo neste tema de comunicação, as distribuidoras se uniram aos cinemas para trabalhar melhor essa divulgação, pensando na importância de atrair essa audiência para a sala grande, após tantos desafios nestes últimos anos e os altos investimentos de todos para preparar as salas para tal. É o caso da Paris Filmes, que também oferece seus filmes com os recursos desde 2017 e reforçou em janeiro todo o seu line-up com acessibilidade de conteúdo.
“Estamos oferecendo o conteúdo acessível nos aplicativos determinados para cada projeto e vamos fazer essa comunicação em todas as frentes: materiais de cinema, posts de redes sociais, imprensa, mídia on e off, etc. Os exibidores, por sua vez, tendem a nos apoiar nessas divulgações reforçando a informação em seus canais oficiais, assim como estão se preparando para receber de forma mais frequente esse público em seus cinemas”, disse Marcio Fraccaroli, CEO da Paris Filmes, em entrevista ao Portal Exibidor em janeiro.
Ainda é cedo para ter conclusões definitivas e está claro que este processo ainda passará por diversos ajustes. Via assessoria de imprensa, a Ancine destacou que está monitorando o cumprimento da aplicação da Instrução Normativa Nº 165 e que deve divulgar os dados compilados desta monitoração nos próximos meses.
É importante reforçar que todo esse processo tem como principal objetivo oferecer inclusão para um grande público brasileiro que muitas vezes não se vê contemplado pela experiência cinematográfica. Segundo dados do IBGE de 2020, mais de 10 milhões de pessoas possuem algum tipo de deficiência auditiva no Brasil e há mais de 6 milhões de pessoas com deficiência visual.
“Campanhas de divulgação sempre serão bem-vindas para que eles saibam quais são os filmes, como faz para chegar e acessar, isso é o mais importante. O principal da minha fala é isso: a prioridade é fazer com que pessoas com deficiência se sintam protagonistas daquela experiência de poder assistir e ouvir a um conteúdo audiovisual”, destacou Andressa Pappas.
Inclusive, há também relatos de pessoas que estão indo ao cinema pela primeira vez desde que foi estabelecida a obrigatoriedade. Isso é de extrema importância para a sociedade brasileira como um todo e ainda abre espaço para uma nova audiência dentro da sala escura.
“O cinema hoje requer de novos públicos, o desafio é renovar e cativar os novos espectadores, pluralizando a oferta de conteúdo e convidando as pessoas que hoje não têm essa porta aberta. Ainda é muito recente para avaliar ou analisar resultados da implementação, mas mobilizou o setor e tornou-se o desafio atual, começamos agora a olhar a difusão e publicidade, treinamentos para capacitar funcionários, tudo o que faz parte desta questão. Assim que passe um tempo, teremos que começar a observar os frutos dessa decisão política de inclusão e desenvolvimento da sociedade comum”, concluiu Taffetani.
Pirataria
Uma das principais discussões na pontuação das diretrizes que sustentariam a execução da acessibilidade de conteúdo nos cinemas era a questão da pirataria. Um dos cruciais fatores que levou ao desenvolvimento de tecnologias específicas para isso foi justamente a preocupação com a segurança das propriedades intelectuais que poderiam ficar mais vulneráveis com o uso de aplicativos ou outras soluções.
“Nessas conversas que tivemos sobre a acessibilidade e quando percebemos que trata-se dessa tecnologia, tivemos que pensar em algo que combatesse também a pirataria, então, essa tecnologia era a única que preservava e garantia que aquele conteúdo não pudesse ser pirateado. Quando essas discussões foram retomadas, a preocupação veio a tona com a possibilidade dos aplicativos, estamos falando de uma diferente tecnologia, essa é mais usada na nuvem, o que aumenta a preocupação, então, todas as nossas discussões com os próprios desenvolvedores da tecnologia era muito nesse sentido. É necessário que haja uma garantia que os direitos autorais serão preservados e que essas obras não serão pirateadas”, reforçou Andressa Pappas, que reforçou a exigência da MPA de que fossem utilizadas soluções que garantissem tal segurança. A escolha de qual aplicativo seria usado ficou a cargo de cada estúdio individualmente.
O MovieReading, por exemplo, não oferece nenhum filme no aplicativo, apenas os recursos de acessibilidade que são sincronizados com os áudios das produções dentro da sala de cinema. “De qualquer forma, para essa nova fase, após abrirmos conversa com praticamente todos os estúdios e os times de segurança de cada um deles, fizemos novas implementações de segurança de conteúdo, atualizações de estrutura e passamos por auditorias, tanto das nossas duas estruturas físicas (Brasil e Itália) pelo processo TPN e específicos de alguns estúdios, quanto da própria tecnologia em termos de plataforma (auditoria Kingsmead Security), com implementação de nova criptografia (ponta a ponta), incluindo DRM (Digital Rights Management, ou Gerenciamento de Direitos Digitais) tecnologia criada para proteger mídias digitais, implementação de bloqueio de impressão ou gravação de tela, dentre outros quesitos técnicos exigidos”, destacou Santana.
Para Cesar Silva, no entanto, o maior problema não é nem com relação aos aplicativos em si, mas com a possibilidade do usuário usar o celular dentro da sala, podendo gravar a grande tela. Não há esse risco com o uso dos equipamentos exclusivos.
“Não sabe se a pessoa está gravando ou não, tudo o que se desenvolveu, com a tela escura, quem está na lateral não consegue ver, se a pessoa enquadrar direitinho, ela consegue gravar. Vamos ter que monitorar mais, como a gente tem marca d’água em todos os nossos filmes, vamos começar a ver de onde estão vindos esses arquivos”, destacou. E esse monitoramento está sendo a solução adotada pelas distribuidoras, que já tinham isso como prática de qualquer forma, mas agora reforçam a atenção para essa questão.
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