18 Setembro 2020
Reforma tributária II – A excepcionalidade do setor de serviços
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O tema é de fundamental importância, e vem sendo debatido em diversas instâncias do Poder Executivo, Legislativo e por toda a sociedade. Por isso, merece ser abordado novamente neste espaço, mas agora sob ótica diferente: se no artigo anterior (leia aqui) refletimos sobre a importância do setor audiovisual para nossa economia e sobre como esta importância deve ser considerada nas discussões sobre reforma tributária, é o momento agora de entender o impacto das atuais propostas sobre os diferentes segmentos de nossa economia e, em particular, sobre a indústria de mídia.
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O peso do setor de serviços – chamado setor terciário – em nossa economia é enorme, respondendo por mais de 75% do PIB em 2019 segundo dados do IBGE. Incluindo atividades de serviços propriamente ditos e comércio, o setor teve crescimento de 1% em 2019, após 4 anos em que quedas consecutivas acumularam perdas de aproximadamente 11%.
Não é difícil entender, pois, que qualquer reforma tributária deve levar em conta as necessidades e particularidades deste setor, verdadeiro motor de nossa economia. Dentro do amplo setor terciário, cabe destacar dado importante: a alta verificada em 2019 (a primeira em 5 anos, repita-se) foi puxada de forma significativa pelos setores de comunicação e tecnologia, que apresentaram alta de 3,3% e foram as atividades de maior crescimento de acordo com os dados fornecido pelo IBGE.
Causa preocupação, no entanto, o fato de que as propostas de reforma tributária atualmente em discussão sejam potencialmente prejudiciais ao setor de serviços, em geral, e aos setores de tecnologia e comunicações, em particular. A despeito de sua relevância para o presente e futuro de nossa economia, todas as propostas – oriundas da Câmara dos Deputados (PEC 45) e do Senado (PEC 110) – preveem em alguma medida a unificação ou substituição de tributos a partir de uma sistemática de não-cumulatividade, isto é, possibilitando o pagamento de tributos a partir do valor efetivamente agregado por cada um dos elos de uma dada cadeia produtiva.
Em outras palavras, e seguindo a linha dos Impostos de Valor Agregado – IVA existentes em diversos países, as propostas atualmente em debate partem da ideia de que o pagamento dos tributos deve ser calculado sobre o valor efetivo dos bens e serviços, descontados todos os tributos pagos pelos elos anteriores de cada cadeia produtiva. Trata-se aqui de um princípio de creditação geral, presente de uma forma ou de outra em todas as propostas.
O raciocínio é correto: grande parte dos países desenvolvidos adota modelos de tributação sobre valor adicionado justamente pelo fato de que, além de ser mais justo e onerar de forma equitativa todos os elos de uma determinada atividade, é aquele que captura de forma mais eficiente o valor gerado pela economia em todos os seus setores.
O problema, porém, está na ausência de reconhecimento dos desafios presentes num processo de transição do modelo atual – em que os serviços são tributados em um modelo cumulativo, em que não se admite creditação de tributos pagos em elos anteriores da cadeia – para o modelo proposto. Igualmente importante, é preciso reconhecer que, ao unificar tributos atualmente aplicados a diferentes setores (indústria, comércio e serviços), realizando-se uma transição de um modelo cumulativo para um modelo não-cumulativo, é enorme a chance de que resulte aumento na carga tributária da atividade de serviços, caso não se pense na sua excepcionalidade.
Em um contexto histórico de tributação cumulativa, o setor de serviços é em potencial aquele que mais sofrerá na transição para o modelo não-cumulativo. Isso porque a prestação de serviços em geral se caracteriza por um valor agregado maior gerado pelo próprio prestador de serviços. As margens, em relação ao custo dos insumos, tendem sempre a ser maiores do que nos setores de comércio ou indústria – caracterizados por uma geração de valor (margens) menores a cada etapa da cadeia. Não é coincidência o fato de que os setores da indústria e comércio já conviverem com modelos não-cumulativos de tributação, como no caso dos atuais ICMS ou IPI.
O setor de serviços, dada sua excepcionalidade neste contexto, é tributado pelo ISS de maneira cumulativa (sem direito a creditação alguma), e exatamente por isso as alíquotas de ISS são substancialmente mais baixas, em média, do que as alíquotas aplicáveis à indústria ou à circulação de mercadorias.
Reconhecer este fato é imperativo na discussão dos projetos de reforma tributária. A todo momento parlamentares, representantes do governo e especialistas apontam que o principal objetivo de qualquer reforma é simplificar e desburocratizar o processo de apuração fiscal – melhorando o ambiente de negócios e reduzindo o custo para as empresas – sem que, com isso, se verifique aumento da carga tributária atual. Até mesmo porque a carga tributária atual no Brasil já é altíssima, e há consenso em reconhecer que nossa economia não suportará qualquer aumento.
No momento em que escrevo estas linhas, as duas principais propostas de reforma no Congresso não estabelecem ainda as alíquotas a serem aplicadas. Uma das propostas, a PEC 45 originária da Câmara dos Deputados, estabelece que tal alíquota será única para todos os estados, enquanto a proposta originária do Senado estabelece a possibilidade de que cada ente estabeleça suas próprias alíquotas. Ainda que seja impossível debater a qualidade das propostas sem que haja uma proposta de alíquotas, é fundamental reconhecer a excepcionalidade do setor de serviços e, dessa forma, estabelecer que as alíquotas para este setor sejam substancialmente mais baixas que as aplicáveis aos demais segmentos da economia.
Não se trata, aqui, de mero corporativismo ou barganha. Ao contrário, trata-se de fazer cumprir a promessa de que a reforma não representará aumento significativo da carga tributária para um setor que representa mais de 75% de nosso PIB. No caso específico da indústria audiovisual, a quebra desta promessa pode representar prejuízos enormes para o País, onerando excessivamente e comprometendo o crescimento futuro de um setor que, como visto, tem sido o motor de nossa economia e com imenso potencial para gerar investimentos, empregos e renda de que o País tanto necessita.
José Maurício Fittipaldi | fittipaldi@jmfmedia.com.br
JOSÉ MAURÍCIO FITTIPALDI (fittipaldi@cqs.adv.br / http://linkedin.com/in/jfittipaldi) – Advogado especializado nos mercados de mídia e entretenimento, sócio de CQS|FV Advogados (www.cqs.adv.br). É também sócio-fundador da JMF Media, onde presta consultoria a grandes players dos mercados de mídia e entretenimento, e co-fundador da Animus Consultoria e Gestão, especializada na gestão de investimentos sociais privados para investidores nacionais e internacionais (www.animusconsult.com.br).
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