20 Novembro 2024 | Yuri Codogno
"Retrato de um Certo Oriente" reforça a importância do cinema na desconstrução de pré-conceitos
Portal Exibidor conversou com o Marcelo Gomes, diretor do longa que entra em cartaz amanhã (21)
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Inspirado no livro “Relato de um Certo Oriente”, de Milton Hatoum, o filme Retrato de um Certo Oriente (O2 Play) entra em cartaz na próxima quinta-feira (21). O Portal Exibidor foi até a sede da distribuidora, na zona oeste de São Paulo, para conversar com Marcelo Gomes, diretor do longa, sobre a expectativa de lançamento, mas também sobre outros assuntos que permeiam a adaptação, como a escolha pelo gênero de melodrama e a importância do cinema para “desconstruir pré-conceitos sobre várias coisas”.
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Na trama, dois irmãos do Líbano fogem do país com medo da Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949) com destino ao Brasil e se incorporando à diáspora árabe em nosso território. A conversa com o diretor pode ser lida na íntegra ao final da matéria.
A ideia de adaptar o livro para o filme começou quando o cineasta e o autor se encontraram e declararam admiração mútua. Após conversa, Marcelo demonstrou interesse em adaptar o livro “Relato de um Certo Oriente”, o que surpreendeu Milton, por considerar um livro que “é só fluxo de consciência, não existem quase diálogos e é um coral de vozes”. Desta forma, seria um grande desafio, algo buscado pelo diretor.
“O Milton me perguntou sobre o porquê de adaptar o Relato, e disse que ele mesmo deu a justificativa, de ser algo infilmável, um desafio. Mas também tem um elemento do Relato que é um livro sobre imigrantes libaneses que chegam na Amazônia. Isso me encanta muito, esse encontro de alteridades radicalmente opostas. Fiz o meu primeiro longa que se chama ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ e é sobre o encontro inusitado entre um alemão um sertanejo, então alteridade é o que me interessa”, explicou Marcelo
O livro, apesar disso, serve apenas como um marco inicial para a produção cinematográfica, com dois temas centrais servindo como base para o desenvolvimento da história: memória e alteridade. Com isso, são esperadas algumas mudanças para que a obra pudesse ser adaptada para as telonas, com Milton dando liberdade completa para que o cineasta pudesse trabalhar como quisesse.
O filme, por sua vez, seguiu pelo melodrama, gênero caracterizado principalmente por seus protagonistas serem mais passivos ao conflito. Apesar de ser uma forma narrativa sempre muito bem aceita pela crítica, costuma esbarrar na baixa popularidade. Um exemplo recente é o longa Zona de Interesse (2024), assim como Nomadland (2020) e Ataque dos Cães (2021), todos multi-indicados no Oscar e vencendo em importantes categorias, inclusive com Nomadland levando como Melhor Filme em 2021.
Segundo Marcelo, para que o gênero possa se popularizar mais, seria necessário que as pessoas sejam educadas para receber filmes de diferentes estilos e gêneros: “Vivemos no mundo do TikTok, da mensagem imediata, esse movimento rápido. É uma pena que esse processo de velocidade das mídias e do ritmo das mídias contamine o espectador na hora que ele vai ver um filme e ele não tem mais paciência. São filmes que precisam de um certo tempo, tempo de fruição, de olhar, de reflexão”.
Outro ponto importante do longa é a utilização de atores das mesmas etnias dos personagens, com foco nos libaneses e indígenas. Além de garantir a representatividade e trazer verossimilhança à história, também auxiliou na montagem da narrativa, evitando repetir erros que os cinemas europeu e americano cometem quando produzem história com árabes e muçulmanos, por exemplo, e auxiliando na desconstrução de estereótipos e preconceitos.
Assunto esse que nos conecta diretamente à importante do cinema como mensagem. “O cinema não pode mudar o mundo, mas através de nossos filmes podemos mudar algumas ideias de algumas pessoas. Eu, por exemplo, na minha vida de cinéfilo, fui transformado por vários filmes, vários filmes me deram sinais e transformei meu pensamento em relação a várias coisas. Desconstruir pré-conceitos sobre várias coisas. O cinema não vai mudar o mundo, mas ele pode abrir uma luz lá no final do túnel”, detalhou Marcelo.
Com previsão de estreia para amanhã (21), Retrato de um Certo Oriente rodou por festivais, mostras e se mostrou, com perdão da repetição, um ótimo retrato do excelente nível que o cinema nacional tem.
E Marcelo Gomes espera que o longa tenha a recepção que merece: “Não crio grandes expectativas, ter feito esse filme foi um milagre, considerando todos os problemas que ele teve, parou durante a pandemia, fazer captação de novo de recursos. Foi um grande prazer fazer e levar para todos os festivais. Espero que seja recebido com muito carinho, muito respeito, muita gentileza e muita curiosidade”.
CONFIRA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA
Como surgiu a ideia de adaptar o livro?
Quando conheci o Milton, falei ‘admiro muito o seu livro’ e ele disse ‘e eu admiro muito o seu cinema’. Respondi ‘que faremos com isso?’ e ele disse ‘se você tiver algum interesse em algum livro…”. E fui conversar com ele de novo e falei que tinha interesse no Relato de um Certo Oriente. ‘Relato? Mas ele é só fluxo de consciência, não existem quase diálogos e é um coral de vozes’, ele respondeu. E no livro, nem sabemos direito quem está falando na hora, porque só revela quem é a voz que está falando no final de cada capítulo. Então é um livro difícil de ser penetrado.
Mas quando o leitor mergulha, vai e se delicia. O Milton me perguntou sobre o porquê de adaptar o Relato, e disse que ele mesmo deu a justificativa, de ser algo infilmável, um desafio. Mas também tem um elemento do Relato que é um livro sobre imigrantes libaneses que chegam na Amazônia. Isso me encanta muito, esse encontro de alteridades radicalmente opostas. Fiz o meu primeiro longa que se chama ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ e é sobre o encontro inusitado entre um alemão um sertanejo, então alteridade é o que me interessa.
E tem outro elemento que é muito interessante, que gosto muito do livro, é a questão da memória. No livro, a memória é utilizada como um resgate da sua própria identidade e conseguir enfrentar os traumas do presente. Então memória e alteridade foram dois elementos que extraí do livro, que tem quase 200 páginas, centenas de temas ali, mas concentrei nesses dois temas. E a partir daí comecei essa viagem, primeiro escrevendo roteiros que se assemelhavam um pouco com o livro e depois lentamente me afastou, porque o livro, nesse filme é [apenas] o marco inicial, não o marco final. Tudo começa no livro, mas não termina no livro, termina no filme. É uma transposição daquela inspiração que tive do livro e o Milton me deu liberdade completa de fazer o que quisesse. Isso foi maravilhoso, foi muito condescendente. E realmente me envolvi com as personagens, as personagens do livro e do filme são as mesmas, personagens apaixonados e apaixonantes como são os personagens do Milton, vivendo um caminho até a Amazônia, que é um pouco diferente do livro.
No livro, tudo acontece dentro de uma casa, em Manaus. Tirei todos os dramas da casa e levei para viagem, então começa no Líbano, depois uma viagem oceânica da Europa até a Amazônia, e depois a chegada no porto de Manaus. E a chegada na casa deles, ou seja, o filme termina na casa, que no livro é a grande locação de tudo.
E aí começamos a desenvolver a ideia de querer trazer atores libaneses para interpretar os personagens libaneses, atores indígenas para interpretar personagens indígenas. Traz uma veracidade muito grande para a história. Eles iam trazer a cor deles, o jeito deles falarem, o sotaque, a forma de caminhar, a forma de andar e principalmente o olhar. São pessoas que nunca tinham vindo para a Amazônia. Então eles iam olhar tudo aquilo de uma forma diferente. Eu queria eles para anotar em todos esses sentimentos que eles tiveram em relação ao lugar, porque toda vez que eles tivessem no filme eles podiam lembrar daquilo e isso imprimisse nos olhos deles. Porque um olhar é algo muito importante no filme. O livro do Milton se baseia em memórias e relatos dessas memórias e transformei relatos em fotos, a palavra vira foto, e o sentimento vira olhar e silêncio. E a partir daí fizemos um retrato de um Relato de um Certo Oriente.
Muito interessante ter trazido pessoas para representar suas próprias etnias…
Conversei muitos com os atores, mas tem uma questão que é muito importante: eles diziam para mim que diretores europeus e americanos cometem erros crassos quando vão representar cultura árabe ou muçulmana. Isso é um elemento muito importante para mim, não queria cometer esses mesmos erros. Por exemplo: a hora da reza muçulmana é de manhã cedo e final de tarde. Aí você vê filmes americanos que os muçulmanos estão rezando meio-dia em ponto. Os atores libaneses me ajudaram muito a não cometer erros crassos como esse, mas me ajudaram também muito a desconstruir estereótipos que o cinema apresenta.
Eles falaram para nós que tem muitos filmes europeus e americanos que eles se consideram extremamente islamofóbicos. Tem uma uma fobia em relação a cultura islâmica, uma fobia em relação à cultura cristã-maronita e queríamos fazer um filme de amor. É um romance, é uma história de amor dessas pessoas. Elas têm uma religião, mas estão vivendo um grande amor. Elas têm sentimento e não é por conta de uma religião ou outra que você assume que tem que ser uma pessoa renegada. Então esse foi um elemento primordial: fazer um filme de amor onde a grande mensagem do filme é ‘sim, podemos viver em harmonia tendo culturas diferentes, tendo religiões diferentes’. Porque o que a gente vive no mundo é um monte de guerra que existe aí em nome de um Deus ou de outro Deus. E no meu ponto de vista essas guerras são sobre poder e dinheiro, não são sobre religiões, porque se você é uma pessoa religiosa, você não quer matar ninguém, é contra qualquer pensamento religioso.
E o que tem fundamento é pensar num mundo, numa humanidade, onde a convivência é possível. E é curioso porque no filme tem uma cena em que essa convivência é possível e é exatamente quando eles estão em aldeias indígenas. E estão todos eles rezando ao mesmo tempo em paz, cada um com seu Deus.
Na sua opinião, como o cinema pode ajudar a diminuir o preconceito das pessoas e a elucidar algumas questões, até diminuir a xenofobia?
Acho que o cinema não pode mudar o mundo, mas através de nossos filmes podemos mudar algumas ideias de algumas pessoas. Eu, por exemplo, na minha vida de cinéfilo, fui transformado por vários filmes, vários filmes me deram sinais e transformei meu pensamento em relação a várias coisas. Desconstruir pré-conceitos sobre várias coisas. Não vai mudar o mundo, mas ele pode abrir uma luz lá no final do túnel para as pessoas pensarem que a maior parte das Guerras que existem aí é fomentada pelo ódio, pelo dinheiro e pelo poder, que elas não têm sentido algum.
O que é importante é lutar para que todas as nações do mundo, que todos os povos do mundo, tenham um lugar para chamar de seu, que possam viver nesse lugar em paz e parece uma coisa extremamente simples, mas o mundo parece estar que se derretendo em guerras, seja na Europa, no Oriente Médio e na África. O cinema tá aí pra trazer uma mensagem de paz.
Mais cedo você falou sobre como era um livro inadaptável, um desafio, e o filme segue uma proposta melodramática, com a protagonista quase sempre passiva aos conflitos. E tivemos recentes exemplos nos últimos anos de filmes melodramáticos que foram muito bem recebidos de críticas, como ‘Nomadland’, ‘Ataque dos Cães’, ‘Spencer’, mas que sempre esbarram na barreira que é não conseguir tanto público. Na sua visão, o que pode ser feito para que se valorize um pouco mais o melodrama?
Primeiramente, tem que ter uma educação das pessoas, as pessoas têm que ser educadas para ir ao cinema e educados também para receber filmes de diferença estilos e gêneros. Vivemos no mundo do TikTok, da mensagem imediata, esse movimento rápido e parece que essa vida asfixiante que a gente vive… um cinema que combina mais com isso seriam thrillers, ação, perseguição, tem filmes até parecem videogames, com uma pessoa perseguindo a outra até o final.
Então é uma pena que esse processo de velocidade das mídias e do ritmo das mídias contamine o espectador na hora que ele vai ver um filme e ele não tem mais paciência. São filmes que precisam de um certo tempo, tempo de fruição, do olhar, de reflexão, e o que acho que a gente pode combater é educando as pessoas, trazendo filmes nas escolas, trazendo os filmes para os jovens, para as crianças. Que elas não só assistam videogames ou uma tela pequena, que elas possam expandir a compreensão do mundo, ver um filme na sala de cinema, nos seus tempos e ritmos próprios.
Recentemente conversei com as diretoras do projeto Paradiso e da Hubert Bals Fund e seu filme foi citado como um que recebeu esse investimento, ainda quando era apenas um projeto. Quão importante foi para você receber esse incentivo e quão importante é para o cinema ter projetos apoiados, não apenas o filme na sua filmagem, mas a ideia do filme também?
No final dos anos 90, estava no Brasil, mas especificamente no Recife, naquela época o que existia era nada de cinema, era uma terra devastada. E se pudesse produzir cinema, você teria que viver na via Dutra, entre Rio e São Paulo. Não existia cinema regional. E aí descobri essa fundação, a HBF, que financiava projetos para desenvolvimento de roteiro. Escrevi para eles e ganhei uma bolsa, aquele ali foi o meu ‘Yes, We Can’. Consegui um apoio de uma instituição internacional para desenvolver um projeto e a partir daí foi e a partir daí meu primeiro longa começou, por causa desse estímulo que recebi.
É fundamental que temos esses estímulos. E o Projeto Paradiso faz hoje isso com muitos jovens, com muitos projetos de diretores e os roteiros e seus jovens. Acho que é uma ação fundamental, faço parte do conselho do Paradiso com muito orgulho. Acho que é muito fundamental esse trabalho da Paradiso, muito fundamental esse trabalho da HBF porque é uma nova geração que pode ser ajudada e pode ser estimulada.
E sem a ideia/projeto, não tem filme, então não tem distribuição, não tem exibição…
Exato. E na maioria dos casos, você financia um projeto quando já está na parte onde o roteiro está pronto, e é de grandes diretores, com grande produtoras, com grande elenco. Os outros [pequenos cineastas] têm que lutar muito para conseguir, não é fácil. Mas se você tem um apoio na base… falo que é um filme é como se fosse um lote vago, um terreno vazio sem nada, e você começa construir os pilares e esses pilares, a sustentação desse edifício, é o roteiro. Então você tem um apoio para começar essa grande construção, que é um filme.
Finalizando, como está a expectativa para o lançamento do filme?
Não crio grandes expectativas, ter feito esse filme foi um milagre, considerando todos os problemas que ele teve, parou durante a pandemia, fazer captação de novo de recursos. Foi um grande prazer fazer e levar para todos os festivais. Espero que seja recebido com muito carinho, muito respeito, muita gentileza e muita curiosidade.
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