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30 Outubro 2024 | Yuri Codogno

Maior promessa do cinema nacional em anos, "Ainda Estou Aqui" convida público a se lembrar do afeto e do que um governo autoritário pode fazer

Programado para estrear no próximo dia 7, elenco e equipe falaram das expectativas em coletiva de imprensa

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(Foto: Divulgação)

Ainda Estou Aqui (Sony) vem conquistando um grande espaço não apenas dentro do Brasil, como em festivais ao redor do mundo. Até o momento, o filme venceu três prêmios em Veneza (Melhor Roteiro e dois menores: SIGNIS e Green Drop), um em Vancouver e um nos EUA. Com estreia prevista para 7 de novembro, o longa vem gerando altas expectativas para angariar não apenas mais prêmios, já que é o representante brasileiro no Oscar 2025, como também alcançar uma sólida venda de ingressos no Brasil. 

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Antes, porém, o longa foi exibido pela primeira vez no país durante uma cabine de imprensa realizada em 18 de outubro, em São Paulo, seguida por uma coletiva de imprensa que contou com a participação do diretor Walter Salles, dos atores Fernanda Torres, Selton Mello e Valentina Herszage, dos roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega e do escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo que serviu de base para o filme e filho de Rubens e Eunice, protagonistas da história. O Portal Exibidor participou do evento e traz alguns dos momentos dessa conversa. 

Não há spoilers do filme nesse texto, mas há mais detalhes ao final da matéria com alguns pontos principais transcritos da entrevista.

São sete anos que separam o início da produção de Ainda Estou Aqui de seu lançamento nos cinemas. “Um processo como esse que tem a ver com a memória, com decantação da memória, com tantos personagens, não é um processo rápido.  O ponto de partida é esse livro luminoso que retrata não somente a memória da família dele, mas ao mesmo tempo retrata a história do Brasil ao longo de várias décadas. Acho que respeitamos o tempo do filme, o tempo de decantação desse livro extraordinário”, explicou Walter. 

Entretanto, algo que também influenciou foi a descoberta de Eunice como protagonista do filme, algo diferente do livro, em que o próprio Marcelo é o protagonista e os fatos são contados através de suas memórias e experiências. Aos poucos, autor e diretor entenderam que Eunice sempre havia sido um personagem central dessa trama - algo que foi potencializado para o filme, visto que era ela, a mãe da família, que lutou para tomar as rédeas da situação.

“Era uma história que eu sabia o headline, só a manchete. E aí o Walter me chama e, de repente, tem a Eunice pela frente… a responsabilidade de uma mulher única, uma mulher que nunca fez questão de ser reconhecida ou aparecer. Ela sai de viúva do Rubens Paiva para a mãe do Marcelo Paiva, movendo revoluções de uma maneira sempre digna. Ela teve uma resistência persuasiva e havia sempre, nas entrevistas, no rosto dela um sorriso e uma contundência que dobrava o seu oponente ou a pessoa com que ela tava conversando, mas sempre com uma enorme inteligência e um sorriso irremovível. Ela não se movia da sua convicção e isso foi difícil de encontrar”, disse Fernanda Torres, que dá vida à protagonista. 

Selton Mello, por sua vez, vive Rubens Paiva, ex-deputado que foi levado pela ditadura para nunca mais retornar à sua família. A história do filme ocorre de maneira cronológica, de forma que fosse possível sentir a falta de seu personagem. Como o próprio ator ressaltou, “minha missão nesse filme era iluminar essa primeira metade espiritualmente, mais do que tecnicamente”.

E complementando a isso, teve o brilhante desempenho de Walter Salles em conseguir fazer o próprio elenco sentir a ausência. O público, por sua vez, é levado junto com a atuação, se solidarizando àquela dor, ao mesmo tempo que compreende o universo da ditadura brasileira como algo mais obscuro e detalhista do que foi apresentado em outros filmes. Nem tudo é abrupto, bruto ou visualmente agressivo, mas o medo, a solidão e verdade se esconde em detalhes. 

Aliás, a presença de Walter Salles na casa da família Paiva durante sua infância também foi importante para ambientação do filme, visto que, aos 13 anos, o cineasta era amigo de Nalu, uma das irmãs de Marcelo. Mas, sozinhos, o livro e as memórias não fariam o filme. O próprio Marcelo, suas irmãs, conhecidos da família e a pesquisa e apuração feitas pelos roteiristas alimentaram a história, trazendo fatos que até mesmo o Marcelo desconhecia. 

“Quando o autor publica uma obra, essa obra ganha a interpretação do leitor. E quando é adaptada para o cinema ganha a interpretação de um conjunto de pessoas. Quando faz uma adaptação, temos que escolher um eixo, uma coluna vertebral. Não pode falar de tudo, todo livro tem que passar por um processo de subtração. Quando entrou Murilo e depois o Heitor, esse eixo já estava mais ou menos construído e eles foram geniais em construir as costelas dessa coluna, não só baseado naquilo que estava no livro, mas naquilo que minhas irmãs informaram, que eu informava paralelamente, no que os amigos dos meus pais informaram. Tem muita cena que não está no livro, mas que está na história real e que foram contadas através dos sete anos de preparação desse roteiro e toda vez que tinha uma questão nova, eles me mandavam. Inclusive descobrindo coisas do meu pai e da minha mãe que eles trouxeram”, comemorou Marcelo.

O roteiro, por sua vez, também não foi fácil e foram pelo menos 20 tratamentos até chegar a versão final e poder ir para as filmagens. 

“É muito interessante que os relatos da Eunice eram todos muito próximos, era uma mulher realmente muito íntegra, tem uma personalidade muito consolidada. Mas esse mundo além da casa foi fundamental para achar um filme e entender porque era uma mulher única, bastante imprevisível na maneira como ela lida com o emocional e com a família. Então esse processo foi muito coletivo”, explicou Murilo. “Uma coisa fundamental no processo de adaptação é (...) a subtração. Então íamos coletando um pouco dessas histórias e essas narrativas sobre o início e trazendo diferentes opções e formas. E o Walter sempre ia limpando para chegarmos no mais puro dessa narrativa. Assim conseguimos contar mais com o mínimo possível”, complementou Heitor. 

Do dia 18 de outubro até o momento, o filme teve outras exibições, inclusive na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, onde foi aclamado. Mas mesmo ainda sem estrear comercialmente, já há a expectativa de Ainda Estou Aqui ter uma representação tão boa em premiações quanto está tendo em festivais. E, de certa forma, é algo que ajuda no boca a boca do filme e o leva para mais pessoas, podendo influenciar positivamente em seu circuito comercial. 

Mas todo o elenco e equipe são enfáticos em ressaltar que não esperavam tamanha repercussão, como lembrou Walter Salles: “Não sabíamos para onde aquilo [as escolhas do filme] ia ecoar e não importava. Na verdade, quando faz esse cálculo, você começa a fazer um filme errado. Acho que tem que fazer aquilo que você não pode deixar de contar. Ficamos surpresos com Veneza, aí continua e é por isso que tem um momento em que o filme deixa de ser seu e o começa a ser evidentemente complementado no olhar dos outros. Tem um cineasta [José Luis Guerín] que falou uma coisa genial: ‘O filme começa quando a luz da sala do cinema se acende’”.

E claro que o Oscar foi citado, especialmente pela brilhante performance de Fernanda Torres. No caso, além do talento da atriz, também entra em pauta o Oscar de 1999, quando Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, foi indicada como Melhor Atriz por Central do Brasil, mas em uma decisão até hoje controversa perde para Gwyneth Paltrow, de Shakespeare Apaixonado.

Fernanda Torres, por sua vez, fez questão de lembrar o público que só de ser indicado, já é uma grande vitória: “Quando as pessoas falam do prêmio de mamãe, tento explicar que quando um ator brasileiro, falando português e é nomeado, já ganhou. Pode estourar champanhe, vai pra lá sem expectativa porque não vai levar. Só explicar isso para as pessoas já ficarem contentes”.

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Confira alguns dos principais momentos da coletiva de imprensa. Algumas respostas trazem detalhes sobre a história real, podendo levar o leitor a alguns spoilers. 

SOBRE O LONGO TEMPO QUE O FILME DEMOROU PARA FICAR PRONTO

Walter Salles:

Muitas vezes essa pergunta veio: “por que você não fez ficção durante 12 anos?”. Porque não é todo ano que surge um livro como o do Marcelo. O ponto de partida é esse livro luminoso que retrata não somente a memória da família dele, mas ao mesmo tempo retrata a história do Brasil ao longo de várias décadas. Essa superposição entre o pessoal e coletivo sempre me interessou em cinema. No livro foi ainda potencializado pelo fato de que, nesse processo, o Marcelo descobre que a mãe, Eunice, tinha sido o personagem absolutamente central dessa história ao longo do tempo, já naquele ponto de partida. A isso se somam as memórias pessoais que eu tinha da família, da casa, tive sorte de ser amigo aos 13 anos de Nalu, irmã do meio do Marcelo, e acabei tendo a possibilidade de conhecer a casa que está no coração do filme. A casa, aliás, é personagem do filme. 

Um processo como esse que tem a ver com a memória, com decantação da memória, com tantos personagens, não é um processo rápido e por isso demorou sete anos e não teríamos chegado lá sem o talento incrível do Murilo e do Heitor, que foram reescrevendo [a história sempre que necessário]. A gente filmou o que? A versão número 20 do roteiro, mas que nunca cessaram de tentar encontrar a forma mais justa para reencontrar aquela família, a honestidade daquele estar no mundo que está nos primeiros 30 minutos do filme, e a partir daquilo retratar ausência do pai, retratar a dor, retratar tudo aquilo que ecoa ao longo do tempo.

E junto com isso entender as formas de reinvenção de Eunice. É um trabalho incrível que também não teria sido possível se o Marcelo não tivesse retroalimentado esse processo todo e de novo entrando e nos realimentando, nos dando informações o tempo inteiro, sugerindo coisas, dizendo ‘tem diálogo demais’ e tinha. Na montagem cortou muito, então a intuição do Marcelo estava quase sempre muito certa e foi traçando um vetor de desenvolvimento para esse processo que não podia ser acelerado em excesso e não foi. Acho que respeitamos o tempo do filme, o tempo de decantação desse livro extraordinário, mas com camadas que não poderia jamais imaginar, na inocência dos meus 13 anos, com as memórias que eu tinha.

Esse é o ponto de partida porque depois é uma outra história, que é a carnificação daqueles personagens, tudo que a vamos entrar depois. Mas realmente no ponto de partida havia um livro e esse livro era extraordinário.

 

A DESCOBERTA DA EUNICE COMO O CENTRO DA HISTÓRIA

Fernanda Torres:

Tinha um livro do Marcelo que li antes do Walter me convidar, queria saber o que tinha acontecido com o pai do Marcelo. Era uma história que eu sabia o headline, só a manchete, mas não sabia e é muito além do que podia imaginar. E aí o Walter me chama e, de repente, tem a Eunice pela frente… a responsabilidade de uma mulher única, uma mulher que nunca fez questão de ser reconhecida ou aparecer. Ela sai de viúva do Rubens Paiva para a mãe do Marcelo Paiva, movendo revoluções de uma maneira sempre digna. Ela teve uma resistência persuasiva e havia sempre nas entrevistas - e fui olhar as entrevistas, que era o mais palpável que tinha dela. Havia sempre no rosto dela um sorriso e uma contundência que dobrava o seu oponente ou a pessoa com que ela tava conversando, mas sempre com uma enorme inteligência e um sorriso irremovível. Ela não se movia da sua convicção e isso foi difícil de encontrar. Sou talvez mais bruta que a Eunice... o Walter vinha e falava ‘tá faltando o sorriso. Tá faltando Eunice. Está Nanda demais’. Ele foi me regulando para ela. 

E a outra questão era a complexidade dessa mulher que, primeiro, e gosto muito disso no filme, ela é uma mulher do lar, embora inteligente, mas ela serve o cafezinho, põe a criança para dormir. Ela era uma mulher dos anos 1950, tutelada pelo marido, mãe de família e a tragédia rompe com aquele mundo idílico daquela família em frente à praia, com aqueles amigos, com aquela festa. Nós vivemos isso no filme, foi feito cronológico, então vivemos isso intensamente, aquela festa era festa com os nossos amigos, o Dan, Camila, as meninas, as crianças, o cachorro. E o dia que o Selton foi levado, pensei como atriz ‘mas o Selton Mello amanhã não vai estar aqui’. Isso era misturado e o Walter fez isso o tempo todo, essa mistura entre personagem e ela.

E por fim as contradições da Eunice. O Estado impõe a ela um silêncio, uma não-resposta sobre a morte do marido, e ela faz o mesmo com os filhos de outra maneira, mas ela se mantém silêncio, acho que para preservar a inocência dos filhos, porque era um ato tão arbitrário, tão injusto. Então como explicar isso para crianças de 9 a 18 anos. Então ela deixou que cada um resolvesse a morte do pai a seu tempo, o que por um lado é assustador e por outro é compreensível. Então é uma mulher cheia de contradições, muito difícil de fazer e acho que a atuação é baseada numa coisa que o Walter fez no filme todo, que é a subtração. A música não te empurra, a câmera não te empurra, as cenas não são melodramáticas, o filme não sofre por você, o filme, pelo contrário, ele contém, ele restringe e isso vai criando no público a cumplicidade com aquelas pessoas que estão vivendo aquela arbitrariedade.

 

MUDANÇA FÍSICA DE SELTON MELLO E CHEGADA DO FILME NO BRASIL

Selton Mello: 

Estamos bem emocionado de estar aqui, é o início da nossa história, nosso encontro com os brasileiros, com o nosso público, com a nossa língua e é aquela história: falando da nossa aldeia, a gente toca o mundo. E isso é o que tem acontecido nas viagens ao redor desses festivais. 

E sim, foi uma transformação física grande, foram 20 quilos na verdade, era muita coisa. Inclusive, depois fica difícil perder… um ano muito difícil, mas tudo bem, o personagem precisava disso para dar esse caráter paizão e como era a própria figura do Rubens. Mas isso, na verdade, é uma parte do negócio, é parte do trabalho. Acho que a beleza de falar aqui é a beleza dos encontros, no caso da Nanda, reencontro de uma parceria tão grande com Waltinho, de um reencontro do Marcelo, que sou fã, amigo há muitos anos, sou da geração que foi completamente impactada pelo livro “Feliz Ano Velho”. Amo o Marcelo, respeito o Marcelo, nunca imaginaria na vida que um dia faria o pai do Marcelo. Tem sido muito emocionante, não vou fingir aqui não. Eu tinha fotografias do Rubens para servir de guia. Eu não tinha nenhuma imagem em movimento, então não vi vídeos do Rubens, só fotos, ouvi coisas sobre o Rubens, do Marcelo, das irmãs e de amigos. 

Então estava querendo entender como imprimir na tela o espírito do Rubens, por isso que digo sempre que a minha missão nesse filme era iluminar essa primeira metade do filme espiritualmente, mais do que tecnicamente. O Waltinho é mestre das delicadezas dessa profissão e é um cineasta de fato e conduz tudo de uma forma muito precisa, muito elegante. 

 

PARTICIPAÇÃO DO ELENCO NAS FILMAGENS E UTILIZAÇÃO DA CÂMERA SUPER 8 

Valentina Herszage: 

Acho legal você citar esse trabalho com a Super 8, porque foi tudo muito pensado, muito criativo, né? Eu e Walter trocamos desde o início sobre essa questão analógica. Gosto de tirar fotos com câmera analógica, sempre registrei os processos, os filmes que fiz e com esse filme não foi diferente. Começamos as filmagens em Londres, filmando as imagens da Vera quando ela vai para lá e manda para família esse vídeo e achei muito legal porque nosso fotógrafo filmava com a câmera, mas o Walter deixava eu filmar também. Então tem muita coisa muito intuitiva minha que se mistura com essa personagem e acho a Vera é o símbolo da juventude desse filme. Essa questão toda da violência, da militância e da música. Acho que começa com ela ali nos seus 18 anos. Então foi um processo muito coletivo de Super 8 também, todo mundo pegava na câmera e essa mistura ficou muito linda, ficou muito sincera, muito real, porque a câmera estava à disposição, tínhamos essa liberdade de poder pegar e filmar.

 

PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DE UM RELATO ÍNTIMO EM UMA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA

Marcelo Rubens Paiva:

Quando o autor publica uma obra, ele passa a não ser mais proprietário dessa obra. Essa obra, em si, ganha a interpretação do próprio leitor, que pode ler ela da forma que ele quiser, com a liberdade que ele tem. Inclusive, quando você lê um livro, você pensa na sua cabeça como são os personagens, você monta cenários, personagens. E aí a partir desse momento essa obra passa a ser analisada pela empresa, pela crítica e quando é adaptada para o cinema ganha a interpretação de um conjunto de pessoas. Então passa a ter um conjunto de pessoas debruçadas em cima da sua obra.

Tive a sorte de ter uma pessoa especial, com uma sensibilidade aflorada, que conhecia muito bem a história e que sabia que teria o respeito absoluto pela história porque é a história da minha mãe, a história de uma mulher que ainda estava viva quando começou o processo e sabia que o Walter ia ter um carinho e respeito completo por ela.

Quando você faz uma adaptação, temos que escolher um eixo, uma coluna vertebral. Você não pode falar de tudo, todo livro tem que passar por um processo de subtração. E aí nesse eixo, demoramos mais tempo discutindo e conversando, mas nunca discordamos, tudo que eu queria nesse filme, o Walter também queria. Quando entrou Murilo e depois o Heitor esse eixo já estava mais ou menos construído e o Murilo e o Heitor foram geniais em conseguir construir as costelas dessa coluna, né? Eles foram construindo não só baseado naquilo que estava no livro, mas baseado naquilo que minhas irmãs informaram, naquilo que eu informava paralelamente, no que os amigos dos meus pais informaram. Tem muita cena que não está no livro, mas que está na história real e que foram contadas através dos sete anos de preparação desse roteiro e toda vez que tinha uma questão nova, eles me mandavam, eu lia e conversávamos muito. Nunca discordava de nada, foi impressionante isso, era mágico esse momento, foi um encontro mágico. 

Mas foi muito abençoado por ter esse trio de companheiros durante sete anos, trocando ideias, inclusive descobrindo coisas do meu pai e da minha mãe que eles que trouxeram, que entrevistaram pessoas que há muito tempo não falava com a gente, que tínhamos perdido o contato e contava histórias lindas sobre a minha mãe. Sou abençoado de ter essas pessoas fazendo adaptação de um livro tão pessoal, que é um livro sobre a minha vida.

 

Murilo Hauser:

Tudo para mim é um universo distante, acho que essa distância ajudou a ver o filme um pouco de fora também como público. Então entender esse mundo através deles nos ajudou muito a tentar entender o que era essa casa, o que significava essa casa naquele contexto, daquele momento e falamos muito de música [com o Marcelo] por causa disso, porque era uma casa que tinha muita música e filme que tem muita música. O livro tem muita música. Então como esse elemento era um elemento importante para ligar tudo isso, para criar esse universo. Isso nos ajudou a começar a entrar nesse mundo.

Sobre adaptação, queria falar muito rapidamente, mas acho uma coisa interessante para complementar. Tem uma grande diferença entre o livro e o filme que é o fato de protagonismo. Porque o protagonista do livro é o Marcelo, as memórias são dele, por mais que sejam retratos da mãe e do pai, logicamente o ponto de vista é do Marcelo. E quando a gente toma essa decisão que Eunice é a protagonista do filme, diferente do livro, isso nos fez expandir muito esse círculo de pessoas com quem conversamos para ter outros relatos de amigos. Então não só dentro daquela casa, mas fora da casa.

E é muito interessante que os relatos da Eunice eram todos muito próximos, era uma mulher realmente muito íntegra, tem uma personalidade muito consolidada. Mas esse mundo além da casa foi fundamental para achar um filme e entender porque era uma mulher única, bastante imprevisível na maneira como ela lida com o emocional e com a família. Então esse processo foi muito coletivo, não só todo mundo que está nessa mesa, mas também outras muitas pessoas que passaram e colaboraram com nós nessa descoberta.

Heitor Lorega:

O que sinto uma coisa fundamental no processo de adaptação é que vai um pouco com que a Nanda falou, essa a forma de direção do Walter que realmente é muito baseado na subtração. Então íamos coletando um pouco dessas histórias e essas narrativas sobre o início e trazendo diferentes opções e diferentes formas, diferentes conexões entre elas. E o Walter sempre ia limpando elas para chegarmos no mais puro dessa narrativa. Assim conseguimos contar mais com o mínimo possível, que é o que acaba transformando o filme em uma narrativa muito universal.

 

REPERCUSSÃO, PREMIAÇÃO E EXPECTATIVA DE ESTREIA

Walter Salles:

Não sabíamos para onde aquilo [as escolhas do filme] ia ecoar e não importava. Na verdade, quando faz esse cálculo, você começa a fazer um filme errado. Acho que tem que fazer aquilo que você não pode deixar de contar e foi isso que nos mobilizou, não podíamos deixar de contar essa história.

E foi isso que foi nos mobilizando e, para nossa surpresa, acabou começando a ecoar. Não achava que, por exemplo, esse vulcão interno que tinha em Eunice, que aquilo pudesse gerar o grau de reação emocional que gerou, porque o personagem, a ideia da subtração, ela é do Godard: “cinema é antes de mais nada subtração”. E é, porque você subtraindo, subtraindo e subtraindo chega na essência das coisas. Então o que estávamos fazendo nesse exercício, não achei que ele fosse ter esse mesmo nível emocional do livro, por exemplo. 

Então tentar convidar vocês, as pessoas a entrarem e conhecer essa família estava muito dentro da gente e acho que é por isso que o filme está ecoando talvez. Ficamos surpreso com Veneza, ficou bem surpreso, aí continua e é por isso que tem um momento em que o filme deixa de ser seu e o começa a ser evidentemente complementado no olhar dos outros, né? E a beleza do filme é isso mesmo. Tem um cineasta que falou uma coisa genial: “o filme começa quando a luz da sala do cinema se acende”. Esse é um processo que, na verdade, só tem razão de ser quando o espectador complementa o filme e está acontecendo isso estranhamente em muitos lugares e estamos tentando apoiar, estamos vindo de uma maratona longa mais para poder estar próximo desse filme. É o mesmo sentimento que nos move desde o início e ele está ecoando para além do que podíamos imaginar.

 

Fernanda Torres:

Quando assisti pela primeira vez, sozinha em uma televisão (...), comecei a chorar. O Walter cortou todas as informações sobre porque Rubens foi preso, que estava acontecendo, qual era a questão política… eram mínimas as informações, mínimas. E aí eu chorava e pensava: “será que alguém vai entender?”. Porque não tinha uma informação e geralmente os filmes que faz aqui no Brasil e fora sobre reconstrução histórica têm sempre algo do tipo “eles estão enfrentando a militância da fronteira e se o governo mudar a lei 7423 nada será…”. Os filmes que contam questões políticas costumam ter isso, mas esse não tinha. E a surpresa é porque te coloca dentro dessa família e você fala ‘que pessoas extraordinárias, que gente ótima, que sociedade bacana, quero ser amigo dessa gente’ e de repente ele tira isso de você e você sente, independente do seu credo, da sua crença política, que aquilo foi um gesto arbitrário, porque aquelas pessoas não mereciam. 

E então, sem discurso de credo político, faz qualquer um se identificar e dizer ‘não, isso já está arbitrário, não posso concordar com isso’. Então esse filme toca humanamente as pessoas nos lugares que não estamos acostumados a tocar e com muita honestidade. Talvez seja bom porque é uma forma de resistência de uma família através do afeto e as pessoas, hoje em dia, estão com muita raiva, porque estamos com medo de tanta coisa, de aquecimento global, a mudança de emprego, achatamento salarial, as pessoas estão com raiva e medo. E é um filme que convida a se lembrar do afeto e do que um governo autoritário pode fazer com qualquer um se você abre mão dos direitos civis, é um mundo kafkiano que qualquer um pode ser levado. 

 

Selton Mello:

No meio disso tudo tem também uma celebração do cinema mesmo, filmamos 35 milímetros, há anos que não filmava na película assim e não foi por um capricho, foi porque precisava de vida naquele celulóide, para imprimir essa vida que a gente estava construindo. Na era do streaming, na era das redes sociais, onde tudo é cortado e fragmentado, você pula um comercial de 5 segundos e aí você conta uma história com o tempo dela, com o tempo interno que ela deve ter e no cinema, é um filme de cinema. E fico tão feliz de ter participado de um filme dessa grandeza cinematográfica e emocional.

 

Fernanda Torres:

Quando as pessoas falam do prêmio de mamãe, tento explicar que quando um ator brasileiro falando português e é nomeado, já ganhou. Pode estourar champanhe, vai pra lá sem expectativa porque não vai levar. Só explicar isso para as pessoas já ficarem contentes. 

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