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26 Julho 2024 | Yuri Codogno

Aplicação da classificação indicativa visa proteger crianças, adolescentes e a própria democracia

Portal Exibidor conversou com representante do Ministério da Justiça para entender mais sobre o assunto

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(Foto: Divulgação)

A classificação indicativa dos filmes é uma temática levemente nebulosa no setor audiovisual. Não por haver discordâncias, mas por muitos elos da indústria - e também da sociedade - não entenderem por completo sua aplicação prática e os motivos de sua existência. Acontece que, na verdade, não é algo muito complexo de assimilar, compreendendo de maneira simples a razão de ser definida pelo poder público, o porquê de haver seis classificações diferentes, entre outras importantes questões. 

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Esse texto, entretanto, não propõe destrinchar cada ponto da classificação indicativa para cinema, mas sim compreender seus conceitos, execução e a razão dela ser aplicada. Para descobrir em detalhes quais são os critérios adotados para incluir a obra em determinada classificação indicativa, sugiro a consulta no Guia Prático do Audiovisual, elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça, disponível publicamente no site do Ministério da Justiça. 

Aproveitando a estreia de Deadpool & Wolverine (Disney), o primeiro filme do MCU com classificação 18+, o Portal Exibidor conversou com Eduardo Nepomuceno, coordenador-geral na Secretaria Nacional da Justiça, braço do Ministério da Justiça, visando compreender melhor o assunto. A entrevista pode ser lida na íntegra ao final da matéria. 

“Quando falamos de classificação indicativa, são três guias: um que trabalha com audiovisual, que é o caso do cinema, outro para rádio e outro para artes visuais. Se falar especificamente de audiovisual, tem que pensar que são três grandes grupos [considerados para avaliação]: um grupo de tendências de violência, outro de drogas e outro de sexo e nudez. São mais de 70 critérios que são divididos nesses três grupos e que são aplicados para chegar na classificação indicativa”, explicou Eduardo. 

Para classificar, o filme é avaliado para identificar única e exclusivamente o que está previsto no guia prático, atribuindo uma classificação final. Não se faz análise do ponto de vista quantitativo, de conteúdo ou da história ser ficcional ou documental. As únicas questões levadas em consideração são as tendências previstas no guia, não abrindo espaço para subjetividade e opiniões.

No passado, até meados dos anos 2000, a análise era feita através do roteiro, mas com o tempo percebeu-se que um roteiro não necessariamente vai trazer as informações necessárias para a avaliação - visto que, do tratamento final ao fim das filmagens, algumas coisas podem mudar. Além disso, a maneira como cada diretor pode trabalhar as cenas pode ser fundamental para definir a classificação indicativa. E também muitas vezes o roteiro pode não ser bom o suficiente, faltando detalhes.

“Posso te fazer uma sinopse que é um filme de amor, mas por algum motivo não coloco que durante essa relação de amor vai ter um assassinato, então faltam elementos para chegar em classificações indicativas a partir de roteiros. Desde 2007, seguramente desde 2008, as obras são assistidas. Ou seja, tem uma equipe que é treinada e é capacitada, que entende e domina a temática da classificação indicativa, não só em relação aos critérios, mas com relação também à legislação”, completou Eduardo.

Nos exemplos a seguir, fica mais evidente porque essa mudança se fez necessária. Em um roteiro está “fulano mata alguém com um disparo de arma de fogo no peito” e assim será feito na gravação. Mas como será construída essa cena? 

  • - Exemplo A) Vai ser retirada uma arma, em uma composição de cena que não se vê a vítima, só a arma, se escuta o tiro, corta a cena e não se vê nem a consequência do ato. Por mais que a morte intencional seja indicada para 14 anos, pode ser que a classificação seja inferior a essa. 
  • - Exemplo B) Essa mesma cena descrita, dessa vez mostra o tiro acertando a pessoa num plano aberto e vê a vítima caindo ao fundo. Não vê lesão, não vê sangue e não vê nada. Tem um impacto um pouco maior, então já tem uma possibilidade de ter uma classificação de 14 anos, porque a tendência já começa a ser plena. 
  • - Exemplo C) Agora em close vê a arma em câmera lenta atingindo a pessoa, faz um buraco na vítima, atrás um buraco ainda maior com parte das vísceras manchando uma parede branca. É uma tendência de 14 anos que está agravada pela composição de cena e que pode estar associada, por exemplo, a uma mutilação, porque um pedaço da pessoa foi extirpado do corpo e foi parar na parede. 

“Ou seja, a gente assiste, evidencia em um relatório pormenorizado o que encontramos e se justifica pelos critérios utilizados sobre qual classificação a obra tem que ser submetida. E o mais importante é que nunca é feito por uma pessoa só. Para minimizar mais ainda essa questão de subjetividade individual, sempre são duas ou mais pessoas que assistem ao filme individualmente para que tenha uma opinião convergente e técnica. Caso não haja uma convergência entre duas pessoas, é colocado em uma terceira porque assim funciona a democracia”.

Essa mudança ocorreu através de entendimento dos gestores durante a década retrasada e foi feita em consonância com a sociedade civil, os pais e empresas.

Aliás, a própria indústria tem um espaço importante na classificação indicativa, visto que é ouvida para atualizações. A Secretaria Nacional de Justiça, por sua vez, se disponibiliza sempre a auxiliar as empresas através de capacitação, explicando cada ponto e sanando todas as dúvidas. Mas algo nunca é feito: a Secretaria e o Ministério solicitarem algum tipo de mudança na obra. 

“Se pegar o Arquivo 220 da Constituição, fica muito claro que não pode ter nenhuma ingerência com as empresas do ponto de vista de criação. O Estado querer ter ingerência nessa criação, acho que a gente começa a cruzar uma linha perigosa de que é a censura. [Os criadores] tem que ter total liberdade para poder criar aquilo que entendem ser justo para a obra. Então nós nos limitamos a analisar e a dar uma classificação indicativa”, explicou Eduardo. 

A Constituição de 1988, no mesmo Artigo, estabeleceu que a classificação indicativa é uma ação governamental, de modo que a política pública apenas cumpre com o que está nela. A Constituição tem ativos que falam da proteção de crianças e, como um todo, das pessoas em desenvolvimento, assim como dos direitos fundamentais ao lazer e à cultura. Essa é uma das razões que justificam o motivo do governo ser o responsável pela classificação indicativa: como garantem direitos, também precisa garantir proteção aos cidadãos.

“E tudo isso é feito de uma maneira a respeitar a legislação vigente. Não tem uma escolha. ‘Ah vamos fazer porque o governo é maldoso’. Não, o governo não é maldoso, o governo cumpre com o que está estabelecido na Carta Magna. Não é à toa que é chamada de Constituição Cidadã, que é uma das constituições mais progressistas que têm no planeta, mesmo sendo de 1988, e que procurou dar dignidade e deixar criar, viver e sonhar. Nós, como serviço público, não podemos fazer nada além do que está determinado. No âmbito privado, pode fazer tudo que não é proibido; no âmbito público, só pode fazer o que está escrito. Inclusive, essa determinação é constitucional e é entendida como o direito das pessoas”, explicou Eduardo. 

O que a política pública faz, do ponto de vista para as empresas, é capacitar. Então se uma empresa hoje entra em contato com o Ministério e solicita uma capacitação sobre os critérios, eles atendem a empresa, repassam a legislação e explicam como como é feita a análise, como se aplica os atenuantes, agravantes e tendências, caso os criadores do conteúdo estejam buscando alguma classificação indicativa específica.  

“Já tivemos alguns questionamentos sobre isso, mas como o nosso relatório é pormenorizado e explica exatamente porque chegamos numa classificação indicativa, a política pública não pode dar essa orientação específica dentro de uma obra específica. Se é o criador que busca essa classificação indicativa, só damos o conhecimento know-how para que essa pessoa possa criar buscando a classificação que deseja. Essa linha tênue entre classificação e censura é muito perigosa. Seria o Estado de novo dizendo para alguém ‘retire isso que você vai receber isso’, então tomamos muito cuidado para que esse tipo de conduta não exista. Por mais que possa se pensar ‘mas você estaria fazendo uma gentileza porque a empresa está solicitando’, até chegar alguém que não enxergue dessa forma e que entende que tem que ser desse jeito para sempre. Então não misturamos uma coisa com a outra para preservar a democracia”, exemplificou Eduardo. 

Uma questão que gera dúvidas é sobre as classificações em si, que são divididas em seis grupos: livre para todos os públicos e indicado para pessoas com pelo menos as seguintes idades: 10, 12, 14, 16 e 18 anos. Essa foi uma opção feita pelo Governo Brasileiro, que em conjunto com um conselho de psiquiatria, psicólogos, Sociedade Brasileira de Pediatria, entidades da sociedade civil, órgãos governamentais e com participação social, entende ser uma escala de idades que protegeria as crianças e adolescentes.

As diferentes classificações não são exclusivas do Brasil, visto que diferentes países têm as suas próprias. Os Estados Unidos, têm 13 anos e pula para 17 anos; a Espanha tem de 7 anos; alguns países usam 3 anos e por aí vai. Na prática, qualquer conteúdo até a classificação de 16 anos pode ser assistido por qualquer idade. No cinema, por exemplo, uma criança de 10 anos pode entrar em um filme de classificação de 16 anos, desde que esteja acompanhada pelos pais (ou responsáveis legais) ou tenha autorização. A única diferença está em um filme 18+, que adolescentes menores de 16 anos não podem entrar em nenhuma hipótese, enquanto quem tem 16 ou 17 anos precisa dessa autorização ou acompanhamento legal.

“Em comparação com outras políticas de classificação indicativa, todos os países que são democratas têm a sua. Não é exclusividade do Brasil. Então a nossa está na vanguarda, ela é democrática, ela é participativa, ela convida a sociedade civil a estar junto a sugerir, ela é revista de tempos em tempos. Então acho que acertamos como o país na construção dessa política”, complementou.

A última revisão, aliás, foi feita em 2021, com versões anteriores de 2018, 2014 e 2010. Para o futuro, o que pode trazer alguma alteração é a chegada das inteligências artificiais, visto que muitas vezes quem dita essas mudanças com relação à legislação são as novas tecnologias. 

Um exemplo foram os streamings. Antes da pandemia, havia cerca de meia dúzia de plataformas, enquanto hoje são quase 200 mapeadas no Brasil. Então, na atualização de 2021 foi necessário incrementar a parte do streaming, porque o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que tem que ter algum tipo de proteção para criança, fazendo com que o controle parental ganhe mais força. Hoje ele está presente em todas as plataformas, possibilitando o bloqueio do acesso por faixa etária. 

Por fim, Eduardo ressaltou a importância de todos os processos serem públicos: “Uma vez que dá uma classificação indicativa e o filme entra em cartaz, o processo é totalmente público, você pode pedir para saber porque que foi dado livre, 10, 12, 14, 16 e 18 anos. Todas as informações são públicas. Para nós é sempre um prazer disponibilizar esses processos, que quando disponibilizamos, o conhecimento é interiorizado pela sociedade, seja pelas empresas, seja pelo cidadão, seja que uma pessoa que simplesmente tem a curiosidade de conhecer a classificação indicativa. O nosso processo é transparente e público. Está tudo à disposição, fiquem à vontade para solicitar essa documentação que temos o maior prazer de enviar”. 

LEIA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:

Quais são os critérios para definição das classificações indicativas?

Quando falamos de classificação indicativa, tem um guia específico. Na verdade, são três guias: um guia que trabalha com audiovisual, que é o caso do cinema, outro guia para rádio e outro guia para artes visuais. Se falar especificamente de audiovisual, tem que pensar que são três grandes grupos: um grupo de tendências de violência, outro grupo de drogas e outro grupo de sexo e nude. São mais de 70 critérios que são divididos nesses três grupos e que são aplicados para chegar na classificação indicativa. Se pensar de uma forma mais pragmática, o nosso guia está na nossa página do Ministério da Justiça e é público também. 

Só para exemplificar, vou pegar aqui uma tendência de cada grande grupo para você entender. Por exemplo, em violência, em estigma ou preconceito. Estigma ou preconceito definido no guia como uma tendência de 14 anos… aqui vai me dar como que vou aplicar essa tendência, quando estiver vendo uma obra, e vou identificar para ver se essa tendência está presente. Tem tendência de aborto, pena de morte, eutanásia, exploração sexual, crime de ódio, suicídio, tortura, violência gratuita, crueldade, apologia à violência, entre outras, e é cada uma dessas dessas tendências vai se amoldando a uma faixa etária. Por exemplo, essa que comentamos primeiro, de estigma e preconceito, são 14 anos. Se pegar uma de de conteúdo sexual, por exemplo, tenho erotização, nudez e prostituição, que são três tendências de 14 anos. Tem relação sexual intensa, que é de 16; tem o sexo explícito, em situação complexa de forte impacto, que é de 18. Se passar para as drogas é a mesma coisa… vou ter todas as tendências específicas por idade.

Então para classificar, vamos pegar um conteúdo, avaliar esse conteúdo, identificar única e exclusivamente o que está previsto no guia prático, e atribuir uma classificação indicativa. Não se faz análise do ponto de vista quantitativo, do ponto de vista de conteúdo, do ponto de vista da história ser ficcional ou documental, se ela é real ou não. O que você analisa de uma forma exaustiva são essas tendências e a partir dessa identificação que chegamos a uma classificação X ou Y. O trabalho é técnico, o trabalho é específico, ele não se vale de subjetividade, não se vale de opiniões; se vale apenas do que está especificado no guia prático.

Por que há essa diferença de 2 em 2 anos?

Isso foi uma opção feita pelo Governo Brasileiro e aí tem que pegar toda a história da classificação indicativa. Tem países, como os Estados Unidos, que têm 13 anos e pulam por 17, 18. Tem outros países que têm uma fragmentação maior para que tenha também uma adequação para crianças e adolescentes de idades diferentes. 

A nossa construção foi feita juntamente com o conselho de psiquiatria, com o pessoal da psicologia, com a Sociedade Brasileira de Pediatria, foi feito com outras entidades da sociedade civil, foram feitos com órgãos governamentais, como o Ministério Público, com participação social. Então essa construção histórica, que vem lá de 30 anos, entendeu-se que seria uma escala de idades que protegeria as crianças em desenvolvimento, os adolescentes em desenvolvimento e, em geral, as pessoas em desenvolvimento de acordo com essas idades. 

Tem países, por exemplo, como a Espanha, que usa o 7 anos, que aqui não tem. Nós temos um gap do livre para 10. Tem países que usam 3. Só que aí o nosso país entendeu que a melhor forma da aplicação teria essa escala - e ela é reconhecida no mundo, está na vanguarda, os nossos critérios são reconhecidos globalmente. Tivemos a oportunidade de trabalhar com o pessoal da Austrália, da África do Sul, que veio conhecer o nosso modelo, que são modelos que não são privados, são estatais. Então foi uma decisão acertada de se colocar essa idade e é bem distribuído. Você imagina que uma criança de 10 anos, quando chega aos 12 anos, já há uma mudança grande. Do 12 para o 14, do 14 para 16. E do 16 para o 18 existe um questionamento, mas existe sim. E então se optou por ser até os 18 anos. 

Só para complementar, mesmo fazendo essa gradação, nenhum conteúdo aqui no Brasil é proibido. Não tem corte, não tem solicitação de retirada de conteúdo, não tem limitação para que as empresas criem, para que os diretores contem as suas histórias, para que os roteiristas escrevam aquilo que queiram. Então, em comparação com outras políticas de classificação indicativa, todos os países que são democratas têm a sua. Não é exclusividade do Brasil. Então a nossa está na vanguarda. Ela é democrática, ela é participativa, ela convida a sociedade civil a estar junto a sugerir, ela é revista de tempos em tempos, acho que acertamos como o país na construção dessa política. 

A análise é feita através do roteiro?

A análise por roteiro foi feita até meados dos anos 2000. E se percebeu que o roteiro não necessariamente vai te trazer as informações reais do que está acontecendo. Posso te fazer uma sinopse que é um filme de amor, mas por algum motivo não coloco lá que durante essa relação de amor vai ter um assassinato ou vai ter um ato de violência sexual, então faltam elementos para chegar em classificações indicativas a partir de roteiros. Desde 2007, seguramente 2008, as obras são assistidas. Ou seja, tem uma equipe que é treinada e é capacitada, que entende e domina a temática da classificação indicativa, não só em relação aos critérios, mas com relação também a legislação, e as obras são assistidas. 

Ou seja, a gente assiste, evidencia em um relatório pormenorizado o que encontramos e se justifica pelos critérios utilizados sobre qual classificação a obra tem que ser submetida. E o mais importante é que nunca é feito por uma pessoa só. Para minimizar mais ainda essa questão de subjetividade individual, sempre são duas ou mais pessoas que assistem o filme individualmente para que tenha uma opinião convergente e técnica. Caso não haja uma convergência entre duas pessoas, é colocado em uma terceira pessoa porque assim funciona a democracia. Já houve casos em que tivemos que submeter a equipe inteira, porque essa obra está bem no limite entre uma classificação e outra.  Vamos pegar aqui pelo coletivo tentar pagar todas as nuances técnicas para conseguirmos dar uma classificação justa e correta.

Teve algum filme que marcou essa mudança?

Na verdade, veio com um entendimento de que era necessário se aprimorar. Estou aqui desde 2011,  no Ministério desde 2010 e na classificação indicativa desde 2011. Quando cheguei, o modelo já era esse. Mas digo que aí nos anos 2000 houve algum entendimento dos gestores que trabalhavam aqui e, em consonância com a sociedade civil, em consonância com os pais, em consonância conclusiva com as empresas - as empresas também participam da construção, inclusive das legislações, com sugestões - houve a mudança;

Até porque o seguinte… mesmo que pegue um roteiro escrito, vou colocar num exemplo prático, uma morte intencional, um assassinato. Pega um assassinato e no seu roteiro coloca ‘fulano de tal mata fulano como um disparo de arma de fogo no peito’. Isso é um roteiro, assim que vai ser feito [na gravação]. Mas como vai ser construída essa cena? Vai ser retirada uma arma, vai ser feita uma composição de cena que você não vê a vítima, só ver arma, escuta o tiro da arma e corta-se a cena e não se vê nem a consequência? Isso tem um peso para a classificação indicativa. Por mais que a morte intencional seja de 14 anos, pode ser que a classificação seja inferior a essa. Essa mesma cena descrita, dessa vez resolvo mostrar o tiro, o tiro acertando a pessoa num plano aberto e que se vê a pessoa caindo lá ao fundo. Não vê lesão, não vê sangue, não vê nada. Tem um impacto um pouco maior, então você já tem uma possibilidade de ter um 14 anos, porque a tendência já começa a ser plena. Agora vamos botar em close que você vê a arma em câmera lenta atingindo a pessoa, aí faz um buraco do tamanho do meu óculos e atrás um buraco ainda maior com parte das vísceras manchando uma parede branca. Então quer dizer que a composição de cena é muito mais impactante, então para crianças em desenvolvimento isso causa um impacto muito maior. 

Estou dizendo que é uma tendência de 14 anos que está agravada por composição de cena e que pode estar associada, por exemplo, a uma mutilação, porque um pedaço da pessoa foi extirpado do corpo e foi parar na parede. Então existem essas nuances e um roteiro escrito, de repente, não dá, então a necessidade de se assistir o filme é inequívoca. 

Como é essa relação com a indústria? Existe uma negociação? 

Não, negociação não existe. Se pegar o arquivo 220 da Constituição, que determina que deve ter um procedimento de indicação etária e foi construída também e equacionada pelo ECA - que inclusive precisa até de uma atualização, que tem muita coisa escrita nos anos 1990 que as termologias mudaram -, hoje os produtos são diferentes. Então fica muito claro que não pode ter nenhuma ingerência com as empresas do ponto de vista de criação. O Estado querer ter ingerência nessa criação, acho que a gente começa a cruzar uma linha perigosa de que é a censura. [Os criadores] tem que ter total liberdade para poder criar aquilo que entendem ser justo para a obra. Então nós se limitamos a analisar e a dar uma classificação indicativa. 

O que a política pública faz do ponto de vista para as empresas é capacitar. Então, por exemplo, uma empresa hoje entra em contato com o Ministério e solicita uma capacitação sobre os critérios, para entender melhor os critérios. Nós vamos até as empresas se for preciso. Tiramos ali dois dias, repassamos a legislação, explicamos como é que se aplica, como que é feita a análise, como se aplica os atenuantes, os agravantes, as tendências, então capacitamos a empresa para que ela tenha condições, no momento de criar, de entender aquilo que ele vai colocar, se é que ele tá buscando alguma classificação é própria. 

E de novo: se é o criador que busca essa classificação indicativa, só damos o conhecimento know-how para que essa pessoa possa criar buscando a classificação que deseja. Seja por motivos pessoais, por crença própria ou por motivos econômicos. Um filme precisa vender, como toda atividade, e é uma atividade cultural maravilhosa, imprescindível, mas também tem que ter algum retorno. E sabemos que as salas de cinema hoje, um filme de 18 anos têm mais dificuldade em estarem em um grande número de salas, em comparação com um filme livre. Isso de uma forma genérica, há alguns blockbusters que são muito esperados que conseguem quebrar essa bolha. 

Mas temos uma relação  muito boa com as empresas, com todo mundo, capacitamos o ano inteiro. Estamos sempre à disposição para poder fazer esse trabalho, mas tentando ao máximo não ter nenhum tipo de ingerência, porque uma das conquistas da classificação indicativa foi garantir que a censura não existisse mais no Brasil. E é papel da política pública proteger todo mundo para que ela não volte. Nós tivemos períodos nefastos da história, golpe militar, gente sendo presa, gente desaparecendo e temos que cuidar da democracia para que possamos ter a liberdade de criar, de viver e de sonhar.

Quando falo de negociar, é, por exemplo, um filme chegar pronto, receber a classificação, mas a empresa deseja uma classificação indicativa diferente. E então pergunta o que pode fazer para mudar no filme. Acontece?

Já tivemos alguns questionamentos sobre isso, mas como o nosso relatório é pormenorizado e explica exatamente porque chegamos numa classificação indicativa, também não entende que a política pública não pode dar essa orientação específica dentro de uma obra específica. 

Essa linha tênue entre classificação e censura é muito perigosa. Seria o Estado de novo dizendo para alguém ‘retire isso que você vai receber isso’, então tomamos muito cuidado para que esse tipo de conduta não exista. Por mais que possa se pensar ‘mas você estaria fazendo uma gentileza porque a empresa está solicitando’, até chegar alguém que não enxergue dessa forma e que entende que tem que ser desse jeito para sempre. Então não misturamos uma coisa com a outra para preservar a democracia.

Na prática, como funciona exatamente a diferenciação entre a classificação 18+ e as demais classificações?

Na verdade, é o seguinte: todas as obras em que o indivíduo não tem a idade da classificação indicada, tem que ter autorização [dos responsáveis]. Então até 16 anos pode entrar com o pai ou autorizado por ele. E o problema é quando é 18 anos, a autorização só pode ser dada por adolescente a partir de 16 anos. Por exemplo, no filme até 16, você pode entrar com seu filho de 4 anos, de 8, de 7, seu filho de 3, etc. Já o filme de 18 anos só vai entrar se ele tiver a partir de 16 anos. ‘Ah, mas por que só o 18?’... se pegar outros países, por exemplo os Estados Unidos, não entra. Filme classificação 18 não entra, não autoriza para entrar [mesmo acompanhado]. 

Existe uma discussão da questão da maioridade, da questão da responsabilidade, da questão do conteúdo de 18 anos ser aquele conteúdo limítrofe, aquele que já chega para a maioridade. Esse é um meio termo que a política construiu para proteger a criança e adolescente, sem tirar também a responsabilidade dos pais. Até porque imagino que não é uma questão de controle específico sobre as pessoas, mas é razoável

Até 16 anos pode entrar sempre autorizado, já tem ali um adolescente de 16 anos que já está chegando na maioridade, já vota, já tem a possibilidade de participar de algumas construções no país que são delegadas aos adultos. Então entendeu-se que também estaria dentro do razoável essa questão da autorização.

Por que o governo é que ficou responsável pela classificação indicativa? 

A Constituição de 1988 estabeleceu no Artigo 220 que é uma ação governamental. Então o que nós, como política pública, fazemos é cumprir o que está na Constituição. Nós, como serviço público, não pode fazer nada além do que está determinado. No âmbito privado, pode fazer tudo que não é proibido; no âmbito público, só pode fazer o que está escrito. Inclusive temos que cumprir o que está escrito, então essa determinação é constitucional e é entendida como o direito das pessoas.

Se pegar a Constituição Federal, ela tem ativos que falam da proteção de crianças, falam da proteção das pessoas em desenvolvimento, falam dos direitos fundamentais ao lazer e à cultura. E tudo isso é feito de uma maneira a respeitar a legislação vigente. Não tem uma escolha. ‘Ah vamos fazer porque o governo é maldoso’, não, o governo não é maldoso, o governo cumpre com o que está estabelecido na Carta Magna. Não é à toa que é chamada de Constituição Cidadã, que é uma das constituições mais progressistas que tem notícia no planeta, mesmo sendo de 19988, e que procurou dar dignidade e deixar criar, viver e sonhar.

Você comentou que de tempos em tempos há atualizações. Tem alguma mudança sendo preparada para um futuro próximo?

A última revisão foi feita em 2021. então ela é bem recente. A gente tinha tido uma outra em 2018, uma em 2014 e uma em 2010, se não me equivoco. Até o momento, conseguimos encontrar um equilíbrio bom, mas com a chegada das inteligências artificiais e algumas questões a mais, tem que começar a olhar com carinho para ver se vai ser necessário. O que dita muitas vezes essas mudanças com relação à legislação são as novas tecnologias. E a tecnologia é  quase que exponencial e nós estamos num momento que não sabemos nem onde ela vai parar.

Vou dar um exemplo prático: antes da pandemia, tinha meia dúzia de streamings, hoje temos mapeados no Brasil quase 200. Então na atualização de 2021 tivemos que incrementar a parte do streaming. O streaming é derivado do quê? É uma evolução do vídeo doméstico, que ao invés de você ter o seu VHS, CD, DVD, agora passou a ser tudo digital. Então passou a ter uma locadora digital que muitas vezes ela é por produto, pode alugar o produto, outras vezes vai alugar a plataforma inteira, e outras vezes não vai alugar, vai ser mantida por anúncios.

Mas elas se derivam do mesmo lugar, então percebemos que tinha que ter algum tipo de proteção, porque o ECA diz que tem que ter algum tipo de proteção para criança. Então o controle parental surgiu com mais força a partir dessa época, de 2018 para cá, que foi reforçado, que já existia por acesso condicionado da TV a cabo, mas ainda não estava sendo mencionada de uma forma mais pragmática dentro da portaria, precisava ser revisto. Hoje, todos os streamings, se olhar no cantinho do perfil, consegue fazer o bloqueio por faixa etária. Para você conferir essa proteção à criança e o adolescente que está sob sua responsabilidade.

Considerações finais

Volto a reforçar uma coisa que é super importante. Às vezes nos deparamos na mídia com algumas críticas - que são fundamentais para o desenvolvimento de qualquer política pública, não existe política pública perfeita, não existe política pública que não tem o que melhorar. Mas acho que é de interesse para o público e para as empresas saber que todos os processos são públicos, não são sigilosos. 

Uma vez que dá uma classificação indicativa e o filme entra em cartaz, o processo é totalmente público, você pode pedir para saber porque que foi dado livre, 10, 12, 14, 16 e 18. Todas as informações são públicas. Para nós é sempre um prazer disponibilizar esses processos, que quando disponibilizamos, o conhecimento é interiorizado pela sociedade, seja pelas empresas, seja pelo cidadão, seja que uma pessoa que simplesmente tem a curiosidade de conhecer a classificação indicativa.

O nosso processo é transparente e público. Está tudo à disposição, fiquem à vontade para solicitar essa documentação que temos o maior prazer de enviar.

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