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31 Março 2023 | Yuri Codogno

"Memória Sufocada" revive fatos sobre o regime militar nacional para que nunca mais sejam esquecidos

Diretor do documentário, Gabriel Di Giacomo cedeu entrevista exclusiva ao Portal Exibidor; filme estreou ontem (30)

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(Foto: Divulgação)

Amanhã, dia primeiro de abril, completam 59 anos que o regime militar brasileiro foi instaurado após a execução de um golpe de Estado sob o então presidente Jânio Quadros. O que era para ser apenas uma lembrança sólida de um passado trevoso, atualmente é, na cabeça de boa parte da população, apenas uma espécie de delírio coletivo que distorce os fatos históricos. E é sobre esse tema que o documentário Memória Sufocada (Embaúba Filmes), que estreou ontem (30), dialoga.

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O filme foi produzido através de buscas na internet, que mostraram narrativas distintas do passado. Além disso, apenas materiais com fontes disponíveis para qualquer internauta foram utilizados, tornando-se uma regra para a estruturação do longa. Memória Sufocada foi roteirizado, dirigido e montado por Gabriel Di Giacomo, que cedeu uma entrevista exclusiva ao Portal Exibidor.

Gabriel conta que o primeiro gatilho para fazer Memória Sufocada surgiu quando ele estava assistindo a uma entrevista de Jair Bolsonaro, na época ainda candidato à presidência, no programa Roda Viva da TV Cultura: "Ele citou que seu livro de cabeceira é o escrito pelo Coronel Ustra, um torturador reconhecido pela Justiça Brasileira. Ali estava cada vez mais iminente a eleição do Bolsonaro e senti a necessidade de fazer alguma coisa para combater esse revisionismo histórico”.

Atualmente vivemos na era da pós-verdade, um movimento - muitas vezes inconsciente - em que uma pessoa ou um grupo acredita apenas naquilo que deseja crer. Pouco adianta provar para essas pessoas que elas estão erradas, pois “argumentarão” que os equivocados somos nós, que somos “massa de manobra” e que a mídia tradicional é vendida. Ou então que o código-fonte das urnas estavam corrompidos em 2022, mas ignorando os resultados de 2018… e claramente sem saber o que é um código-fonte.

Tal pensamento também se aplica às memórias da ditadura. “Vi muitas pessoas começando a relativizar os malefícios causados pela ditadura no Brasil. Muitas pessoas que não considerava tão radicais com um discurso de que a ditadura não foi tão ruim, que tem que escutar um outro lado, que havia uma ameaça comunista no Brasil, que se os militares não dessem um golpe, haveria um golpe comunista iminente… sempre esse delírio da ameaça comunista presente nesse discurso da extrema direita”, completou o cineasta.

Na visão de Gabriel, como o Brasil não condenou a maioria das pessoas envolvidas com a ditadura, especialmente as principais responsáveis por assassinatos e torturas, essa ferida ficou em aberto. Como todas as grandes transições da história brasileira, não houve uma ruptura, mantendo sempre a estrutura vigente e impossibilitando uma reforma na raiz do problema. E na nossa ditadura, a transição para a democracia foi a mesma: tudo foi “resolvido” em um acordo.

Se puxarmos um pouco em nossa história, a própria independência do Brasil e a Lei Áurea foram realizadas através de canetadas - e não conquistadas através de um confronto direto amplo (obviamente sem desvalorizar a luta de muitos grupos que batalharam contra a ordem vigente da época, que foram sim muito importantes para a conquista). Desta forma, muitas memórias ainda estão sendo disputadas em diversos campos onde a ruptura não foi radical.

E novamente no caso da ditadura isso se aplica, como ressaltou Gabriel: “Essa memória continua em aberto e como resultado a gente vê essas manifestações de pessoas em frente aos quartéis pedindo intervenção militar ou comercializando camisetas com a foto de um torturador. Se for pensar, isso é uma situação completamente grotesca e bizarra. Isso deveria ser uma coisa que todos os cidadãos e cidadãs brasileiros desprezassem, como um deputado dentro do congresso citar um torturador”.

O episódio que Gabriel lembrou ocorreu durante a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, quando o até então deputado federal Jair Bolsonaro disse: “pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, (...) meu voto é sim”. Entretanto, não foi a primeira - e infelizmente - nem a última vez que o Bolsonaro fez declarações do tipo. Muito antes de imaginarmos Jair na presidência, ele já havia declarado que se fosse Presidente, fecharia os três poderes (algo que, aparentemente, ele tentou) e que, por ele, faria “um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”.

Episódios como esse, que fazem apologia e incitam golpe e intervenção militar, são crimes, segundo consta no site do Ministério Público Federal e estão previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50) e no próprio Código Penal (artigo 287).

Apesar de parecer que fugi de Memória Sufocada ao citar as declarações do ex-presidente e as leis, vale ressaltar que o não cumprimento da legislação em situações como essa reforçam como a memória da ditadura ainda está em aberto. Porque se há um crime e ninguém é responsabilizado, há a sensação de banalização do ato. Então se ninguém é julgado por fazer apologia ao regime militar, parece que a ditadura não foi tão ruim assim.  

No caso de Ustra, ele foi o único torturador que foi responsabilizado pela justiça, então uma homenagem pública a ele é como se ele fosse um mártir, algo defendido por muitos apoiadores. “Enquanto não cicatrizar esses traumas, é muito necessário que se discuta esses temas. E mesmo se um dia a gente supere isso, é sempre muito importante relembrar o nosso passado porque a democracia está sempre sendo construída, ainda mais uma democracia jovem como a brasileira e com tanta dívida histórica. A gente sempre tem que seguir lutando para manter nosso país na democracia e radicalizar nossa democracia para que seja verdadeira para todas as pessoas”, reforçou Gabriel. 

O cinema é uma importante ferramenta da educação e que pode auxiliar nesse objetivo, com poder de construir ideias e ensinar sobre acontecimentos passados. “Quando a gente pensou em começar a produzir, me questionava: ‘tem tanto filme bom, tanto documentário bom sobre esse período… será que a gente precisa de mais um filme sobre a ditadura? Não é só os espectadores assistirem os filmes que já estão aí para se informarem?’. E com os acontecimentos recentes que culminaram nessa invasão do Congresso no dia 8 de janeiro, eu vi que era preciso sim”, revelou Di Giacomo.

Infelizmente, porém, fazer com que os filmes nacionais sobre o tema alcancem um maior público ainda é um desafio para o setor. Além disso, o cinema é importante para reforçar a identidade de um povo, então é necessário que o cinema nacional tenha mais espaço no circuito de exibição. “Agora a gente precisa fazer um trabalho muito grande, muitas ações ainda para formação do público, porque o Brasil tem feito produções muito boas, que são reconhecidas em festivais, mas infelizmente a gente ainda não consegue atingir o público de uma maneira muito ampla”, disse Gabriel. 

Uma curiosidade sobre Memória Sufocada é que foi o primeiro filme em que a equipe de cinema conseguiu permissão para filmar dentro do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna). O local era um dos principais centros da ditadura, muito utilizado para o planejamento, assim como era o espaço onde diversas torturas e assassinatos apoiados pelo Estado aconteciam. 

Para conseguir as filmagens internas, a produção contou com a ajuda do Núcleo Memória, uma entidade muito importante que luta pela preservação da lembrança desse período e pelos direitos humanos: “O Núcleo Memória organiza visitas guiadas dentro do DOI-CODI, então eles tinham esse acesso ao prédio. Mas mesmo assim, apesar do prédio ser tombado, ele ainda não se transformou num memorial porque ainda pertence à Secretaria de Segurança, então não tinha muito como pedir autorização para filmar. É um prédio que fica dentro de uma delegacia de polícia, então é um local um pouco escondido. Eu não acredito em nada de energia, mas só de estar em um lugar onde pessoas eram torturadas e foram executadas com o aval do estado brasileiro, não tem como não se sensibilizar de estar nesse lugar”. 

O objetivo de Memória Sufocada é tentar colaborar para que, de alguma forma, eventos como a ditadura e a eleição de qualquer figura que apoia o regime militar nunca mais ocorra. Inclusive, foram tantos materiais coletados que foi possível abastecer um site com informações públicas. Através do memoriasufocada.com.br, é possível ver todos os documentos que embasaram o filme, aos depoimentos completos da Comissão Nacional da Verdade e links para outros filmes sobre a ditadura que serviram como inspiração para Memória Sufocada. 

“Nossa ideia é que as pessoas assistam ao filme e depois vão fazer a sua própria busca para tirar suas próprias conclusões sobre esse período da ditadura. E sempre digo que qualquer pessoa que se informar pelas fontes corretas e pesquisar realmente sobre a ditadura vai chegar a algumas conclusões muito parecidas com as que estão no filme”, concluiu Gabriel. 

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