13 Setembro 2022 | Renata Vomero
Em adaptação de Clarice Lispector, "O Livro dos Prazeres" retrata amor e solitude lado a lado
Dirigido por Marcela Lordy, produção estreia nos cinemas em 22 de setembro
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Clarice Lispector é fonte inesgotável de reflexão, debate e aprofundamento em temáticas extremamente modernas e que atravessam a vivência feminina até os dias atuais. Não à toa romance “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, de 1969, ganhou uma versão cinematográfica nas mãos da diretora e roteirista Marcela Lordy, que lança O Livro dos Prazeres (Vitrine) nos cinemas em 22 de setembro.
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O filme conta a história de Lóri (Simone Spoladore), uma professora do ensino fundamental, livre e melancólica, que vive só. Ela leva uma rotina monótona entre as tarefas da escola e relacionamentos furtivos afastando qualquer possibilidade de conexão. Num acaso, a personagem conhece Ulisses (Javier Drolas), um professor de filosofia egocêntrico e provocador, que desperta uma profunda mudança em Lóri. É com ele que ela aprende a amar enfrentando sua própria solidão.
“Após um ano de espera, Lóri aprende a viver através da humanização dos desejos, onde o amor não é mera satisfação dos instintos, mas algo muito além de uma relação puramente animal. Foi isso o que chamou a minha atenção para adaptar a história para os dias de hoje. Assim como a possibilidade de uma relação afetiva estável, que desconstrói o mito do amor romântico, na qual a obrigação de fazer o outro feliz sai do cônjuge e vai para o indivíduo e suas escolhas”, comentou Marcela Lordy em entrevista ao Portal Exibidor.
E é justamente neste campo em que a história se passa, mostrando a realidade de uma mulher contemporânea, que tem sua autonomia, seus desejos e se vê inteira no mundo, no entanto, que talvez enxergue todas essas conquistas ameaçadas caso se permita viver um amor, pensando no ideal de amor romântico, então, deixa essa área de sua vivência em segundo plano, se permitindo viver sua solitude.
“A solitude pode ser voluntária e não estar ligada ao sofrimento. Você pode ser uma grande companheira para você mesma e, a partir daí, se doar inteira para um relacionamento. Isso é algo que ultrapassa o gênero. Não é o outro quem vai resolver as suas questões mais íntimas, é você. Não é o outro quem vai te fazer feliz. Esta é aprendizagem a que a Clarice se refere. A quebra do amor romântico”, afirmou a cineasta.
Como sempre, Clarice consegue trazer, em uma história de 1969, uma narrativa e uma personagem ainda extremamente contemporâneas com desejos, inquietudes e medos tão dramaticamente próximos do que vivemos hoje.
Ainda assim, essa história, embora seja totalmente repleta do DNA da Clarice, tenha uma grande diferença com relação às suas outras histórias, o que motivou a escolha para ser adaptada para a telona.
“O livro ‘Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres’ é bem psicanalítico. É o único romance da Clarice com um final feliz. A Lóri olha para dentro de suas feridas, mergulha de cabeça e sai inteira. A gente acabou de passar por uma fase de isolamento compulsório, então aprender a lidar com o nosso silencio e conviver com ele em paz é a grande mensagem”, revelou Lordy.
A cineasta atua no mercado há mais de dez anos e fundou sua própria produtora, a Cinematográfica Marcela. Pelo O Livro dos Prazeres, seu primeiro longa de ficção, foi mencionada na Variety como um dos grandes destaques da atualidade na América Latina.
“Eu sou uma pessoa do cinema. Vivo para ele desde que comecei a trabalhar. Ao longo da minha trajetória, percebi que o tempo é o meu melhor amigo. A capacidade de espera, a maturação paciente são fundamentais no processo de criação. Mas cada filme tem o seu tempo. Este filme levou dez anos para ficar pronto. Eu espero que o próximo leve menos. Fazer cinema é o grande prazer da minha vida que tive a coragem de transformar em ofício”, ressaltou.
Depois de O Livro dos Prazeres, Marcela dirigiu o filme O Amor e Peste, que ainda não chegou nos cinemas, e finalizou o roteiro de mais um longa, chamado Aline.
O Livro dos Prazeres é uma coprodução internacional entre o Brasil e a Argentina. O filme é o primeiro longa-metragem de ficção da bigBonsai, que já possui vasta experiência na produção de documentários, conteúdo para marcas e programas de TV, e da Cinematográfica Marcela. E tem a Rizoma, República Pureza e Canal Brasil como coprodutoras.
Confira a entrevista com Marcela Lordy na íntegra:
Como surgiu o desejo de contar essa história unindo a narrativa de Clarice Lispector em uma versão mais contemporânea para o cinema?
Após um ano de espera, Lóri aprende a viver através da humanização dos desejos, onde o amor não é mera satisfação dos instintos, mas algo muito além de uma relação puramente animal. Foi isso o que chamou a minha atenção para adaptar a história para os dias de hoje. Assim como a possibilidade de uma relação afetiva estável, que desconstrói o mito do amor romântico, na qual a obrigação de fazer o outro feliz sai do cônjuge e vai para o indivíduo e suas escolhas.
Eu sempre gostei de personagens femininas revolucionárias que, de repente, mudam tudo em suas vidas. Excêntricas ou banais, personagens como as da diretora nova iorquina Miranda July ou a bailarina Frances Ha, por exemplo, rompem padrões e encantam pela autonomia, criatividade e ousadia. Esse lugar da mulher contemporânea comandando a sua própria vida de forma livre e independente é o que move as minhas histórias essencialmente.
Clarice reúne tudo o que gosto: mulheres inquietas e questionadoras; inovação de linguagem; plasticidade e lirismo. A Lóri chamou a minha atenção por ser uma mulher independente numa sociedade patriarcal. Uma protagonista que realiza seu destino obtendo a autoafirmação e a autorrealização. Apesar de viver fechada em seu mundo sinestésico e contemplativo, ela desperta e parte para a ação quando se conscientiza da necessidade de cultivar afetos. Seja através do amor incondicional, com os alunos na escola, do amor fraternal na reaproximação da família e amigos ou do amor romântico com Ulisses, Lóri se transforma.
Ao longo da narrativa, ela cria novos layers de consciência, deixa de se isolar por medo de sua própria intensidade, e se abre para o outro e para o mundo. A sua história repercute no contemporâneo na medida em que estamos cada vez mais isolados, vivendo relações afetivas descartáveis.
O filme fala muito sobre solidão e solitude, de que forma você entende que esse tema perpassa a vivência feminina no mundo moderno e como você pensou nesse retrato para a telona?
Existe algo muito precioso em aprender a ficar só. Sair de um relacionamento e emendar no outro sem elaborar quem você é dentro da relação, se tornou algo cada vez mais comum. As mulheres costumam elaborar mais, no entanto, muitas vezes se fecham para os afetos.
A solitude pode ser voluntária e não estar ligada ao sofrimento. Você pode ser uma grande companheira para você mesma e, a partir daí, se doar inteira para um relacionamento. Isso é algo que ultrapassa o gênero. Não é o outro quem vai resolver as suas questões mais íntimas, é você. Não é o outro quem vai te fazer feliz. Esta é aprendizagem a que a Clarice se refere. A quebra do amor romântico.
Essa transformação só acontece quando Lóri sai do papel de vítima e se torna responsável pelos seus desejos. Quando ela enfrenta suas sombras e se liberta do papel de objeto para ser sujeito do seu próprio prazer.
Eu vivi o que a Lóri passa. Aprendi a ficar bem sozinha depois de um casamento de 10 anos. Só aí fui capaz de me abrir verdadeiramente para o outro. Então a história dela foi pensada para a telona de forma orgânica, como a história de toda uma geração.
Qual a importância de trazer essa história para o público e qual é a mensagem que pretende que chegue nos homens e mulheres que assistirão?
Era uma vez uma princesa que se salvou sozinha, fim. No entanto, é através do outro que a gente se humaniza. No livro, Clarice diz: “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.”
Na biografia do Benjamin Moser ele conta que, quando o livro saiu, uma entrevistadora perguntou: “Achei O Livro dos Prazeres muito mais fácil de ler do que qualquer um dos seus sete livros. Você acha que há algum fundamento nisso?” Clarice respondeu: “há, sim. Eu me humanizei, o livro reflete isso”.
O livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” é bem psicanalítico. É o único romance da Clarice com um final feliz. A Lóri olha para dentro de suas feridas, mergulha de cabeça e sai inteira. A gente acabou de passar por uma fase de isolamento compulsório, então aprender a lidar com o nosso silencio e conviver com ele em paz é a grande mensagem.
Ainda sobre o filme, como entende a liberdade feminina nos tempos atuais em que há bastante desconstrução e reflexão sobre os papéis de gênero?
A trajetória de Lóri é a de toda mulher em busca de autonomia. Não só da mulher, mas de toda pessoa que tem coragem de olhar para dentro e enfrentar o que nem sabe que existe. Vivemos com Lóri o encontro com suas sombras e o mergulho profundo em sua crise existencial. Da escuta silenciosa à descoberta de sua própria voz, Lóri aprende a se colocar atravessando uma jornada de autoconhecimento que culmina na expressão do seu canto de sereia. Ao mesmo tempo selvagem e suave.
A liberdade feminina é algo que incomoda dentro do sistema patriarcal medíocre no qual estamos expostas. Então, apesar da trajetória da Lóri ser algo necessário, independente do gênero, as mulheres encontram mais dificuldades.
No entanto, e felizmente, nós mulheres estamos num momento fértil para tecer as nossas próprias histórias. Construir narrativas com personagens femininas fortes, capazes de mudar os espaços de poder é a forma que encontrei de seguir abrindo portas no imaginário das próximas gerações.
Falando um pouco sobre você. Você tem uma trajetória já bem trilhada nas últimas décadas, como avalia estes anos?
Eu sou uma pessoa do cinema. Vivo para ele desde que comecei a trabalhar. Ao longo da minha trajetória, percebi que o tempo é o meu melhor amigo. A capacidade de espera, a maturação paciente são fundamentais no processo de criação. Mas cada filme tem o seu tempo. Este filme levou dez anos para ficar pronto. Eu espero que o próximo leve menos.
Mas como disse Rainer Maria Rilke em “Cartas a um Jovem Poeta”’, “O verão há de vir. Mas só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade”.
A tela grande para mim é lugar do sagrado. Eu faço outras mídias, me divirto com a diversidade, mas o meu coração bate mais forte quando penso para o cinema. Fazer cinema é o grande prazer da minha vida que tive a coragem de transformar em ofício.
Com a sua própria produtora, quais estão sendo os desafios e benefícios de produzir no Brasil?
Produzir no Brasil é fazer milagres todos os dias. Os desafios são muitos diante de um governo opressor que travou uma guerra contra a cultura. Mas os benefícios são justamente o de mudar o rumo desta história.
Eu me senti muito isolada como artista durante a pandemia. Tive um grande sentimento de revolta, mas peguei a essência de tudo o que passamos, do desamparo à da solidão como criadora, e transformei em potência criativa. Fiz um longa novo chamado “O Amor e Peste”, que nasceu de um experimento teatral, escrevi uma série de ficção “Made in China” e mergulhei no roteiro do meu próximo longa “Aline” como se estivesse tecendo a nossa própria história, reerguendo insistentemente a nossa arte com as próprias mãos.
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