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09 Dezembro 2021 | Renata Vomero

"Contos do Amanhã" abre caminho a universo totalmente ambientado no Brasil

Longa estreia nos cinemas em semana que se celebra a ficção científica no Brasil

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(Foto: Cláudia Barbot)

Estreia hoje nas principais capitais brasileiras, o filme Contos do Amanhã, ficção científica totalmente brasileira escrita e dirigida por Pedro de Lima Marques. O longa tem inspiração em clássicos do gênero, mas se propõe a criar um universo de fantasia totalmente ambientado no Brasil.

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Inclusive, a escolha da data de lançamento não é coincidência, já que é na mesma semana que se celebra o Dia da Ficção Científica Brasileira, em 11 de dezembro, uma homenagem ao escritor Jeronymo Monteiro.

“Costumo comentar que o Contos do Amanhã é a apresentação de um universo. Temos diversos personagens, várias histórias que se cruzam e algumas não ficam tão claras numa primeira leitura. Acompanhamos a aventura do Jeferson, fundamentalmente, mas somos apresentados a núcleos e personagens com tramas e subtramas variadas. Se eu fosse tentar resumir o filme, o que nem sempre é recomendado, pois já dizia Glauber que "cinema é para ver e ouvir,não pra ficar explicando" (risos), mas para além da aventura, eu diria que é a história de um jovem tentando despertar para a realidade”, explicou Pedro, que estreia na direção de longa-metragem com este lançamento.  Inclusive, os efeitos visuais do filme foram criados em sua própria empresa de VFX, a Forno FX.

Pedro é natural de Porto Alegre, onde desde criança se apaixonou pelo universo de ficção científica e imaginou o quanto seria legal ver uma história totalmente ambientada naquele seu universo, sua escola, o parque em que frequentava e até mesmo a praia onde viajava nas férias de verão.  

Soma-se a isso, algumas referências clássicas do gênero, como Ghost In The Shell e Akira, além do próprio Matrix, em voga neste momento com seu quarto lançamento. Além disso, para a cinematografia, estão Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Vanilla Sky.

“Eu sou um fã de filmes de ficção-científica e essas inspirações e referências fazem parte da minha 'alfabetização' audiovisual. Desde muito cedo, quando eu decidi fazer cinema, lá pelos meus sete anos de idade, quando eu não fazia ideia do que era 'fazer cinema', eu queria muito contar histórias fantásticas situadas aqui, onde eu vivo. Não que isso tivesse alguma marca nacionalista ou algo do gênero, mas queria ver e ouvir histórias com a linguagem que eu estava acostumado”, explicou o cineasta.

O filme se passa entre 1999 e o ano de 2165, em que o sequestro de Michele Medeiros (Daiane Oliveira) coloca a cidade-estado Porto 01, o último reduto humano, em guerra. Jeferson (Bruno Barcelos), um adolescente que vive em 1999, na véspera do bug do milênio, recebe misteriosos áudios do futuro. Com uma Internet muito lenta, ele precisará encontrar uma forma de salvar a humanidade.

O filme chega aos cinemas brasileiros depois de colecionar 27 seleções e 15 prêmios em festivais de cinema de gênero em 12 países, incluindo o Boston Sci-fi Film Festival, um dos mais importantes eventos da categoria. Já a curadoria do Other Worlds Film Festival (EUA), de onde o longa saiu com o prêmio de melhor direção de arte, descreve o longa como um coming of age "Matrix", com menos lutas e mais romance.

Desta forma, não deixa de ser interessante pensar na importância de um filme do gênero chegando aos nossos cinemas já com esse reconhecimento, tendo em vista que faz parte de um estilo que não tem uma tradição tão grande entre os brasileiros.

“O projeto foi recusado inúmeras vezes, chegando a receber o retorno de parecerista alegando que esse tipo de filme não era possível de ser realizado no Brasil. Nem preciso dizer que essa frase me ajudou bastante a mostrar que eles estavam errados (risos). Mas eu de fato compreendo esse preconceito com obras nacionais do gênero, como não temos tradição, não tem como comparar com outras obras. Parece que somos todos pioneiros no segmento, o que não é bem verdade, temos iniciativas muito interessantes do Cláudio Torres com "O Homem do Futuro", Eder Santos do "Deserto Azul", “Uma História de Amor e Fúria” de Luiz Bolognesi, e mais recentemente do "Divino Amor" do Gabriel Mascaro e "Nuvem Rosa" da Iuli Gerbase. O próprio "Bacurau" dá uma passeada no gênero mesmo sendo de forma mais light. Isso sem falar das séries, "3%" e "Onisciente" que fizeram um grande sucesso. Tenho a sensação de que o público está se abrindo para as obras brasileiras do gênero fantástico, mesmo com um certo nível de desconfiança. Precisamos de mais e mais obras do gênero para enfrentar essa barreira.

Contos do Amanhã é uma realização da Bactéria Filmes, com coprodução da Druzina Content, e associação com o estúdio de pós-produção Forno FX. A distribuição é da Europa Filmes, em colaboração com Araçá Filmes e Cavideo, com financiamento do Fumproarte da Secretaria Municipal de Cultura - Prefeitura de Porto Alegre.

 

Confira a entrevista com Pedro de Lima Marques na íntegra:

Como surgiu a ideia de desenvolver Contos do Amanhã e como foi o processo de filmagens e desenvolvimento?

A ideia surgiu por volta de 2004 quando comecei a escrever alguns contos de ficção científica para um blog que eu mantinha na época. Aos poucos essas histórias foram crescendo e em 2007 escrevi o primeiro roteiro de curta-metragem. Tinha a intenção de fazer alguns curtas e depois de um tempo unir tudo numa antologia. Em 2008 inscrevemos no primeiro edital para financiar o curta, um edital do Fumproarte da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Fomos recusados. Melhoramos o projeto e voltamos no ano seguinte. Sem sucesso. Tentamos de novo em 2010, 2011, 2012 e em 2013 e como o projeto já tinha amadurecido, decidimos ampliar e inscrever no edital a versão longa-metragem. Nesse meio tempo já tínhamos gravado um curta-metragem experimental para testar a viabilidade das cenas com fundo chroma que seriam necessárias para a realização do filme. Com a bagagem recheada de ideias e soluções para viabilizar o projeto, conseguimos a aprovação.

Começamos a produção em 2014 e fizemos uma ampla seleção e preparação do elenco. Decidimos que faríamos uma chamada pública, abrindo oportunidade para quem quisesse participar. Divulgamos nas redes sociais e tivemos mais de 700 inscritos. Fizemos testes com mais de 450 pessoas e chegamos num número de quase 100 atores e atrizes para participar do filme. Separamos o núcleo de 1999, que era mais adolescente, e o de 2165, que era mais adulto. Ofertamos um workshop com essa pré-seleção e dentro dessas atividades fizemos o processo de escolha. Foi uma experiência incrível, pois inserimos todos no universo do filme antes mesmo deles saberem quem seriam os personagens. Costumo comentar que o processo de seleção na verdade foi mais um processo de encontro, onde encontramos os personagens que já existiam ali naqueles grupos. (video do workshop: https://youtu.be/cXaHVhj_zUE)

No final do ano de 2014 iniciamos as gravações, que por diversos motivos se estendeu durante o ano inteiro de 2015 e finalizamos as gravações em 2016. Como o filme tem essa característica fragmentada isso foi possível. Podíamos gravar uma sequência de diárias e depois fazer uma pausa. Em 2016 iniciamos a montagem e a composição da trilha sonora. Ainda em 2016 começamos a trabalhar nas pré-visualizações dos efeitos visuais, principalmente para as cenas que eram 100% CGI ou para aquelas onde a interação com os elementos reais seria fundamental para avaliar o timing do plano. Com o corte fechado e a trilha sonora composta, partimos para os efeitos visuais que só finalizamos em 2019 junto com o sound design e o color grade. Durante o processo de pós-produção, eu abri uma empresa de efeitos visuais, a Forno FX, que acabou abraçando por completo toda a pós-produção do filme. A Forno FX era um núcleo, uma unidade de negócios, dentro da Bactéria Filmes, onde eu atuava como supervisor de pós-produção e efeitos visuais para outras produções de conteúdo. Com o amadurecimento da empresa, também evoluímos em termos de processos de produção ao longo de toda a pós do filme. Apesar de ter uma empresa dedicada aos efeitos, éramos na verdade quatro pessoas realizando todos os efeitos do filme. Foram quase 500 planos com alguma manipulação digital. Mesmo já tendo uma carreira de mais de dez anos com VFX, esse foi sem sombra de dúvidas o maior trabalho (e desafio) de pós-produção realizado por mim até aquele momento.

O filme tem inspiração em alguns clássicos da ficção científica, como foi pensar nele trazendo para a realidade do Brasil?

Eu sou um fã de filmes de ficção-científica e essas inspirações e referências fazem parte da minha 'alfabetização' audiovisual. Desde muito cedo, quando eu decidi fazer cinema, lá pelos meus sete anos de idade, quando eu não fazia ideia do que era 'fazer cinema', eu queria muito contar histórias fantásticas situadas aqui, onde eu vivo. Não que isso tivesse alguma marca nacionalista ou algo do gênero, mas queria ver e ouvir histórias com a linguagem que eu estava acostumado. Ficava imaginando o meu colégio como cenário, o parque onde eu frequentei durante a infância, a praia que eu ia no verão. Queria essa proximidade, e coloquei tudo isso no filme. Eu estudei no colégio que serviu de locação, morava do lado do parque que aparece no filme e ia para o litoral no verão. Esse processo de trazer para a nossa realidade foi bastante natural nesse sentido. Alguns filmes que me marcaram muito, como "Vanilla Sky" e "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", também me influenciaram na ideia de uma câmera mais orgânica, mais próxima do elenco. E a parte do futuro eu imaginava algo mais gráfico, com mais interferências, para distanciar cada um dos momentos. Pensando na realidade brasileira de produção, eu precisei elaborar formas de contar e ampliar a história com os recursos que eu tinha, e pra isso eu abusei de diálogos. Deixei o mais latino possível nesse sentido, verbalizando a ação em determinados momentos, mas sempre de olho no subtexto, naquilo que não está na fala em si.

Inclusive, como muitas ficções científicas abordam, de que forma o longa retrata a realidade atual e qual o olhar dele sobre ela?

Costumo comentar que o "Contos do Amanhã" é a apresentação de um universo. Temos diversos personagens, várias histórias que se cruzam e algumas não ficam tão claras numa primeira leitura. Acompanhamos a aventura do Jeferson, fundamentalmente, mas somos apresentados a núcleos e personagens com tramas e subtramas variadas. Se eu fosse tentar resumir o filme, o que nem sempre é recomendado, pois já dizia Glauber que "cinema é para ver e ouvir,não pra ficar explicando" (risos), mas para além da aventura, eu diria que é a história de um jovem tentando despertar para a realidade. Existe um mundão de coisas acontecendo 'lá fora', complexas e que em diversos momentos nos causam medo e aflição, mas por algum motivo não sabemos como responder a elas porque parecem que estão tão distantes, e que não fazem parte da nossa realidade, mas de alguma forma precisamos compreender para avançar, para seguir em frente com a nossa vida.

Para você, quais são os desafios de fazer um filme de ficção científica no Brasil e também pensando que a gente não tem tanto essa tradição tanto de consumir o gênero quanto de produzi-lo?

Os desafios de fazer cinema no Brasil são gigantescos, seja qual for o gênero. Fazer cinema fantástico e especificamente de ficção-científica é uma camada extra de dificuldades sem sombra de dúvidas. Como comentei antes, o projeto foi recusado inúmeras vezes, chegando a receber o retorno de parecerista alegando que esse tipo de filme não era possível de ser realizado no Brasil. Nem preciso dizer que essa frase me ajudou bastante a mostrar que eles estavam errados (risos). Mas eu de fato compreendo esse preconceito com obras nacionais do gênero, como não temos tradição, não tem como comparar com outras obras. Parece que somos todos pioneiros no segmento, o que não é bem verdade, temos iniciativas muito interessantes do Cláudio Torres com "O Homem do Futuro", Eder Santos do "Deserto Azul", “Uma História de Amor e Fúria” de Luiz Bolognesi, e mais recentemente do "Divino Amor" do Gabriel Mascaro e "Nuvem Rosa" da Iuli Gerbase. O próprio "Bacurau" dá uma passeada no gênero mesmo sendo de forma mais light. Isso sem falar das séries, "3%" e "Onisciente" que fizeram um grande sucesso. Tenho a sensação de que o público está se abrindo para as obras brasileiras do gênero fantástico, mesmo com um certo nível de desconfiança. Precisamos de mais e mais obras do gênero para enfrentar essa barreira.

Acho que o maior desafio para os realizadores, além do 'fator Brasil' está no entendimento sobre a viabilidade dos efeitos visuais. Até há pouco tempo esse não era um recurso muito utilizado nos filmes nacionais. Não que não seja possível fazer filmes de ficção-científica sem recursos digitais, mas ficamos mais limitados ainda. E ter o entendimento sobre a viabilidade desses recursos e como podem ser aplicados mesmo sem um orçamento astronômico, é o grande desafio na minha visão. Eu escrevi o "Contos do Amanhã" com um olhar atento à produção, pensando no que era possível fazer com os recursos que eu tinha à disposição. Pensando em formas de decupagem que me possibilitassem economizar em alguns planos e extravasar mais em outros. Acho que precisamos explorar processos de inovação e criação de pipelines que viabilizem as obras com os recursos que temos à disposição aqui.

Quais são suas expectativas para o filme?

Olha, pra ser bem sincero, o filme superou todas as minhas expectativas iniciais. O filme estreou no Festival de Cinema de Gramado de 2020 e depois disso passamos por 27 festivais no mundo todo, a maior parte festivais dedicados ao gênero. Fomos selecionados para o Boston SciFi Film Festival, que é o segundo festival mais antigo dedicado ao gênero. Foi lá que o George Lucas apresentou pela primeira vez o Star Wars. E tivemos uma receptividade incrível. Só nos EUA passamos por mais de dez festivais. Ganhamos ao todo 15 prêmios e fomos considerados um "coming-of-age Matrix" com menos lutas e mais romance pela imprensa especializada de Austin, depois de participar como filme de encerramento do Other Worlds Film Festival, além de ganharmos o prêmio de melhor design de produção. Acho interessante destacar isso porque os EUA tem uma longa tradição de cinema de ficção-científica e o nosso filme ganhou espaço e chamou a atenção lá. Os retornos, durante os festivais, foram ótimos. Ganhamos seis prêmios de melhor filme de ficção-científica, um deles na PopCon em Indianápolis, evento dedicado à cultura pop. Depois disso tudo, agora é o momento de celebrar com o público e marcar presença no espaço comercial aqui do Brasil, mostrando que sim, nós fazemos ficção-científica também. Nós podemos pensar e criar novos mundos. Isso não é restrito ao estrangeiro. Podemos contar histórias da nossa forma, com o nosso olhar de latino-americano inserido no mundo.

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