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13 Agosto 2021 | Renata Vomero

"O cinema torna a vida na cidade melhor, mais democrática", afirma antigo presidente da Spcine

Livro conta a história da criação da Spcine até consolidação como força do audiovisual nacional

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(Foto: Spcine)

Concebida em 2013, a Spcine vem se firmando como uma das grandes forças do audiovisual. Sua fundação caminhou lado a lado com um projeto de democratização da cidade de São Paulo na gestão de Fernando Haddad (PT), com objetivo de integrar todas as frentes da sociedade, com acesso aos cidadãos da cidade.

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Desta forma, a ideia de criar uma empresa municipal do audiovisual voltada para a cidade, que tivesse como objetivo estimular a produção nela, movimentar sua economia, levar o cinema para a população, bem como apoiar os profissionais, fez todo sentido naquele momento e se mostra como uma decisão totalmente acertada oito anos depois.

Inspirado na criação da RioFilme, o projeto nasceu com a presidência de Alfredo Manevy, que ao lado de Fabio Maleronka, que integrou o conselho administrativo da empresa, organizou o recém-lançado livro Depois da última sessão de cinema: Spcine, audiovisual e democracia, da editora Autonomia Literária. O livro reúne 40 depoimentos de nomes importantes para o audiovisual paulistano e brasileiro, bem como de figuras centrais na trajetória da Spcine. Entre os entrevistados estão Anna Muylaert, Fernando Meirelles, André Sturm, Fernando Haddad, Laís Bodanzky, Adhemar Oliveira, Renata Almeida, entre muitos outros.

“Inicialmente a ideia era realizar um registro desse momento da política audiovisual brasileira que foi a criação da Spcine, e logo percebemos que naturalmente os depoimentos iriam registrar também a estrutura produtiva e criativa de audiovisual. Me pareceu que o momento é oportuno, porque hoje o Brasil coloca em xeque o acúmulo histórico na construção da indústria audiovisual brasileira, entendida aqui como um sistema que engloba produção, distribuição, exibição. O encurtamento do horizonte para o audiovisual brasileiro é próprio a um encurtamento mais amplo, da falta de um projeto de país, de retrocessos na educação, cultura e tecnologia”, explicou Manevy em entrevista ao Portal Exibidor.

O livro exalta, portanto, algumas das principais iniciativas da Spcine ao longo destes anos, como a criação da SP Film Commission, uma das principais da América Latina, a criação do Circuito Spcine e levando um novo circuito para as periferias da cidade, o Spcine Play, disponibilizando produções no online, além de editais e outras iniciativas em apoio dos produtores locais.

“Em quatro anos conseguiu-se implantar a empresa, que foi uma travessia em si, e colocá-la em funcionamento, com aqueles que são seus principais programas: ao mesmo tempo implantar um circuito de 20 salas de cinema e estabelecer a Film Commission como segunda maior da América Latina. Há também projetos como Spcine Play, que são formas importantes de fazer circular o cinema brasileiro. Os que me sucederam: Maurício Ramos, Laís Bodanzky e Viviane Ferreira foram na mesma linha. O desafio atual segue sendo propor que São Paulo assuma sua cidadania cultural, e perceba, como cidade, que o cinema torna a vida na cidade melhor, mais democrática, mais ligada ao século 21”, reforçou Alfredo.

Ao lado de sua criação, veio a necessidade de trabalhar pelo audiovisual brasileiro e andando lado a lado com a democracia, que sempre afeta a indústria cinematográfica quando enfraquecida. Desta forma, o projeto do livro destaca essa relação intrínseca entre ambos.

“A criação do Ministério da Cultura foi o primeiro gesto da redemocratização do país, com inúmeras contradições inclusive visto por parte da classe artística como alternativa a monopólio da então indústria cultural hegemônica na época que eram principalmente as grandes redes de TV aberta. Além é claro da distância da censura e do dirigismo estatal. Hoje no mundo das Big Techs a disputa é outra, e da democracia liberal está no meio dela”, pontuou Fabio.

Com isso, a caminhada da Spcine não deixa de encontrar no presente um momento de transformação do setor, impulsionado pela pandemia, mas também pela falta de uma atuação efetiva do Estado.

Desta forma, a discussão levantada pela empresa municipal e que culmina não só no lançamento do livro, mas de diversas lives e discussões que estão acontecendo durante todo o mês no YouTube, levam a repensar o futuro do audiovisual e também no papel da Spcine em meio a tudo isso.

“O audiovisual está passando por uma nova onda de transformações. O Brasil tinha tudo para ser protagonista dessas mudanças, com um projeto próprio de economia e tecnologia, mas o projeto nacional hoje em curso trabalha o país como grande fazenda, exportadora de commodities, uma opção pelo caminho mais fácil e atrasado de explorar as riquezas naturais e finitas do país. São escolhas estratégicas ruins para o futuro da indústria de conteúdo. É soja, minério, sem falar na desindustrialização. Na cultura, o que se vê politicamente é o país se projetando apenas como mercado de consumo e atender os lobbies que pressionam para promover um paraíso fiscal idealizado pelos grandes conglomerados. Estamos ficando exóticos também nisso, porque nenhum país europeu ou asiático abre mão de ter grandes e médias empresas de distribuição, de ter voz e mercado nesse jogo, que é geopolítico. No máximo, aqui e agora, consegue-se prestar serviço, que atende só um aspecto do problema e não gera desenvolvimento econômico no sentido mais amplo. É o que está na mesa agora. Acredito que a Spcine tem uma missão grande nesse contexto, de construir um modelo completamente diferente desse que está sendo imposto. Pensando no futuro”, finalizou Alfredo.

O lançamento do livro, foi marcado por uma live no YouTube da Blooks Livraria, que contou com a presença da Alfredo Manevy, Mauricio Barros (presidente da Spcine entre 2017-2019), Laís Bodanzky (2019-2021), Viviane Ferreira (2021 -) e Raul Perez, antigo responsável pela comunicação da Spcine. A conversa poderá ser acessada no link

Confira a entrevista com os organizadores do livro:

Como surgiu o projeto e a oportunidade de fazer este livro?

Alfredo Manevy: Inicialmente a ideia era realizar um registro desse momento da política audiovisual brasileira que foi a criação da Spcine, e logo percebemos que naturalmente os depoimentos iriam registrar também a estrutura produtiva e criativa de audiovisual. Me pareceu que o momento é oportuno, porque hoje o Brasil coloca em xeque o acúmulo histórico na construção da indústria audiovisual brasileira, entendida aqui como um sistema que engloba produção, distribuição, exibição. O encurtamento do horizonte para o audiovisual brasileiro é próprio a um encurtamento mais amplo, da falta de um projeto de país, de retrocessos na educação, cultura e tecnologia.

Fabio Maleronka: Eu acho que existe um debate colocado que é a questão do estudo de caso que o livro apresenta para implantação de empresas de audiovisual em grandes municípios. Durante o mestrado estudei a extinção do Ministério da Cultura no governo Collor. Como contrapesos históricos à extinção do MinC e da Embrafilme que aconteceram em março de 1990 - além da Lei Rouanet que é de 1992 -e logo depois a Lei do Audiovisual em 1993 - surgiram como reflexos daquele rompimento abrupto muitas Secretarias de Cultura - tanto em estados como nos municípios. É provável que nesse nosso contexto a implantação de empresas públicas de audiovisual se apresentem como uma necessidade da realidade multitela que se tornou evidente em 2021

O livro fala da relação da Spcine com a democracia, de que forma ambos se relacionam?

Alfredo: A construção da Spcine foi um processo embasado no diálogo e nas conquistas democráticas da sociedade brasileira após o fim da ditadura. É uma instituição que nesse sentido tem nas suas políticas uma percepção mais ampla tanto dos objetivos do investimento público, não só na produção de filmes, mas na formação do público, por exemplo, e na gestão das grandes cidades para que virem cenários de filmes e estruturas culturais vivas. No seu modus operandi, a empresa nasceu de uma ampla mobilização de sociedade e Prefeitura, naquele ano de 2013, quando Haddad assumiu a gestão da cidade. Esse relato é feito por múltiplas vozes.

Fabio: A criação do Ministério da Cultura foi o primeiro gesto da redemocratização do país, com inúmeras contradições inclusive visto por parte da classe artística como alternativa a monopólio da então indústria cultural hegemônica na época que eram principalmente as grandes redes de TV aberta. Além é claro da distância da censura e do dirigismo estatal. Hoje no mundo das Big Techs a disputa é outra, e da democracia liberal está no meio dela.

Outro ponto muito importante é sobre os pequenos, é sobre a massa que trabalha no setor com MEIs ou Simples e os micro- financiamentos para o audiovisual.  Lembro que quando chegaram as primeiras plataformas de financiamento coletivo no Brasil fomos discutir com o professor Paul Singer o termo Crowdfunding. E ele nos perguntou (nós sabíamos claro que ele tinha traduzido grandes economistas para o português): o que era afinal crowdfunding?  E dissemos que era financiamento coletivo por plataforma digital. E ele nos perguntou: “por que coletivo se, a palavra crowd não é coletivo, mas sim multidão?” E nos falou, “se vocês traduzem neutralizando, vocês tiram o sentido democrático da ação”. E a ideia é de mutirão, de muita gente querendo financiar algo ou de ajudar um projeto com trabalho. Essa é uma base que mudou o cenário de produção e pode mudar mais.

Como foi a criação da Spcine e a importância desta criação naquele contexto?

Alfredo: O prefeito e o secretário de cultura Juca Ferreira, à época (falamos aqui de 2013-14), criaram um grupo com representantes do audiovisual, em todas as suas manifestações. Fomos ao Rio de Janeiro e recebemos apoio e informações da Riofilme. Fixemos diagnósticos com dados sobre os filmes com e sem distribuição, e sobre os segmentos populacionais incluídos e excluídos da exibição comercial. Desse diagnóstico com muitos dados quantitativos e qualitativos saiu um anteprojeto. A mobilização do setor vinha de vinte anos, muito intensa, na cidade, e as entidades tinham muitos estudos também, que aproveitamos. A novidade foi a visão modernizadora do prefeito e da forma como o projeto de uma megalópole como São Paulo incorporou o audiovisual. O prefeito deu um enorme peso à cultura em todo o projeto de reforma urbana, que incluía ciclovias e ruas abertas. Ao mesmo tempo, não restringimos o debate apenas ao setor, mas buscamos envolver os bairros, para que a cidade entendesse a Spcine. Evitamos assim que o projeto fosse apenas uma demanda dos que produzem, mas também daqueles que percebem o impacto do cinema na qualidade de vida da cidade, no emprego, na educação.

Qual é o seu balanço do avanço da Spcine quando você esteve à frente dela e nos dias atuais?

Alfredo: Em quatro anos conseguiu-se implantar a empresa, que foi uma travessia em si, e colocá-la em funcionamento, com aqueles que são seus principais programas: ao mesmo tempo implantar um circuito de 20 salas de cinema e estabelecer a Film Commission como segunda maior da América Latina. Há também projetos como Spcine Play, que são formas importantes de fazer circular o cinema brasileiro. Os que me sucederam: Maurício Ramos, Laís Bodanzky e Viviane Ferreira foram na mesma linha. O desafio atual segue sendo propor que São Paulo assuma sua cidadania cultural, e perceba, como o cidade, que o cinema torna a vida na cidade melhor, mais democrática, mais ligada ao século 21.

O que ela representa neste momento e qual sua importância pensando nos desafios culturais da atualidade?

Alfredo: A Spcine sobreviveu a alternância de poder e se consolidou. Isso não é pouco. Ao mesmo tempo, seus serviços são reconhecidos como necessários pelo setor, e pela cidade (1.5 milhões de espectadores na periferia foram às salas da empresa) que é muito dinâmico. Ela também é importante politicamente, como entidade que dialoga e se posiciona sobre assuntos locais e nacionais. No momento em que vemos um retrocesso na política federal do cinema, a sobrevivência da Spcine até aqui pode ser vista como um contraponto importante.

Quais são os desafios do futuro para a Spcine e quais devem ser suas prioridades?

Alfredo: O audiovisual está passando por uma nova onda de transformações. O Brasil tinha tudo para ser protagonista dessas mudanças, com um projeto próprio de economia e tecnologia, mas o projeto nacional hoje em curso trabalha o país como grande fazenda, exportadora de commodities, uma opção pelo caminho mais fácil e atrasado de explorar as riquezas naturais e finitas do país. São escolhas estratégicas ruins para o futuro da indústria de conteúdo. É soja, minério, sem falar na desindustrialização. Na cultura, o que se vê politicamente é o país se projetando apenas como mercado de consumo e atender os lobbies que pressionam para promover um paraíso fiscal idealizado pelos grandes conglomerados. Estamos ficando exóticos também nisso, porque nenhum país europeu ou asiático abre mão de ter grandes e médias empresas de distribuição, de ter voz e mercado nesse jogo, que é geopolítico. No máximo, aqui e agora, consegue-se prestar serviço, que atende só um aspecto do problema e não gera desenvolvimento econômico no sentido mais amplo. É o que está na mesa agora. Acredito que a Spcine tem uma missão grande nesse contexto, de construir um modelo completamente diferente desse que está sendo imposto. Pensando no futuro.

Quais são suas expectativas para o audiovisual no Brasil, passando pela questão da memória, da produção e também das políticas públicas?

Alfredo: O aprofundamento da distribuição pela internet vai manter vivo os dilemas e (como, e se) o país vai assumir sua responsabilidade no desenvolvimento econômico e cultural, e de vai ter um projeto próprio de fomentar a criação e produção audiovisual. O quanto o país vai retomar investimentos e uma defesa mais articulada dessa indústria local é a questão dos próximos anos. Os produtores seguram fazendo como podem, mesmo em condições desvantajosas. A discussão do livro nesse sentido é atual por evocar a discussão do lugar do cinema na formação social brasileira e nos caminhos que o país vai ter depois da pandemia ser vencida.

Fabio: Eu acho que existe uma coisa curiosa, que a cidade de São Paulo tem essa feiura e aridez e a filmagem espelha isso. O carnaval de rua que teve sua regulamentação ao mesmo tempo da criação da Spcine reflete essa cidade também, e não é por acaso. É a felicidade tensa de um carnaval de rua tardio, liberado tanto tempo depois de outras capitais.

Em uma entrevista do livro perguntamos para o Ugo Giorgetti sobre a relação dos filmes dele com a cidade e ele responde: “a cidade tem que estar presente porque tenho que colocar o filme em algum lugar”. Acho que é um ótimo paralelo com o futuro do audiovisual. A outra boa metáfora tem um ângulo diferente. Eu lembro de uma entrevista que fizemos com o Moraes Moreira sobre os Novos Baianos. “Vocês ensaiavam o quê?”. “Para nós, a vida era o ensaio.”

Existe a possiblidade de não retomarmos da mesma forma. O título do livro, Depois da última sessão de cinema tem esse sentido também. E vamos ter que colocar os filmes em algum lugar.

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