Exibidor

Publicidade

Notícias /mercado / Panorama

18 Junho 2021 | Cris Guzzi e Renata Vomero

Com mais de 20 anos de carreira, Laís Bodanzky tem trajetória construída lado a lado ao fortalecimento do cinema nacional

Bodanzky traçou panorama dos anos que vem atuando como cineasta e em prol da indústria audiovisual

Compartilhe:

(Foto: Exibidor)

Cineasta, produtora e atuante em prol do audiovisual brasileiro, Laís Bodanzky está entre os nomes mais relevantes da nossa indústria na atualidade. Responsável por marcos do nosso cinema, como O Bicho de Sete Cabeças, que comemora 20 anos em 2021; Como Nossos Pais, As Melhores Coisas do Mundo, Chega de Saudade, além de curtas e documentários, ela acaba de encerrar sua gestão de dois anos à frente da Spcine.

Publicidade fechar X

“Sempre fui uma artista, cineasta...mas, desde o início, quando eu era ainda estudante de cinema, eu sempre participei de movimentos políticos, fazendo política cinematográfica e sempre que vou em uma palestra com estudantes e eles me perguntam o que eu recomendo, eu faço questão de dizer: ‘se vocês querem trabalhar com isso, vocês também precisam não só se informar e se formar do ponto de vista artístico, mas também do ponto de vista político’, porque se você não tem consciência política da necessidade da política cinematográfica, essa profissão é engolida, desaparece”, ressaltou Laís Bodanzky em entrevista exclusiva ao Portal Exibidor. 

E não é só isso – como se fosse pouco –, Bodanzky já se prepara para o lançamento de seu próximo filme, em fase de finalização e pós-produção. O longa se chamará A Viagem de Pedro, protagonizado por Cauã Reymond, e conta a história de Dom Pedro I no Brasil. Ela retoma o projeto depois de sua experiência à frente de uma empresa pública e vinte anos depois de seu primeiro lançamento.

Não é exagero dizer, portanto, que parte da história do cinema nacional e muitas de suas conquistas se misturem com a própria trajetória da cineasta, que viu a Ancine nascer, em meio ao nascimento de seu primeiro longa-metragem, viu a indústria se desenvolver e se fortalecer, tornando-se um dos principais nomes do setor.

Neste ano tão importante de sua carreira ainda há o enfrentamento de dois grandes desafios: a pandemia e o desmonte do setor, causado pelo Governo Federal. Não é exagero também que muito do que Laís Bodanzky presenciou há vinte anos, quando se aproximou da luta antimanicomial e a luta do setor pela criação de uma agência reguladora, esteja se repetindo nos dias atuais, como em uma retrospectiva ou reprise mal programada.

“É muito estranho que 20 anos depois a gente volta para uma situação muito semelhante, quase que desperdiçando todo um conhecimento, um know-how que foi desenvolvido e toda uma indústria que foi alavancada, novos talentos, novos profissionais, e agora a gente tem essa estagnação, uma puxada de freio de mão violenta na nossa indústria”, afirmou Bodanzky.

No entanto, como quem também já presenciou muitas conquistas e vitórias, há na cineasta o otimismo de que esse período será superado e de que muito do que foi obtido não será  perdido. Há também neste otimismo um conhecimento de quem atuou “do outro lado”, criando políticas e iniciativas frente ao poder público para o desenvolvimento da indústria brasileira, no caso a paulistana, por meio da Spcine, referência na América Latina.

Um novo fator também se soma à perspectiva de mercado de Laís Bodanzky, a criação e introdução de um novo ator no meio, o streaming e as plataformas digitais, que ela reforça precisarem ser regulados no Brasil, bem como uma equalização mais justa, na conversão, inclusive, das moedas, nos pagamentos em termos de valorização dos nossos profissionais. No entanto, estes novos players chegam em momento fundamental abrindo um novo caminho de oportunidades para os profissionais do setor atuarem, ajudando assim a dar visibilidade ao cinema nacional, não só em nosso país, ampliando seu acesso por meio da internet, mas também no exterior.

“Teve um lado, também, muito curioso da pandemia: se você analisar as empresas que se beneficiaram economicamente durante a pandemia, as dez empresas que mais lucraram durante a pandemia, você tem ali, pelo menos, duas plataformas de streaming. Isso significa que o audiovisual nunca foi tão consumido pelo público no mundo inteiro, não só no Brasil, que é um mercado importante. Então você tem aí as plataformas necessitando, buscando conteúdo, desenvolvendo conteúdo. Então, durante esse momento de pandemia, muitos projetos estão sendo desenvolvidos. A área de roteiro, os roteiristas, as equipes de desenvolvimento continuaram seus trabalhos, muitas delas para as plataformas de streaming, porém, mais uma vez, a produção independente parou, porque temos um Fundo Setorial (FSA) parado, temos poucos recursos dos estados e municípios que deem conta da quantidade de projetos com potencial para serem desenvolvidos”, reforçou.

Se há vinte anos, Bodanzky iniciava um ciclo importante de sua carreira, hoje ela ela se encontra em um lugar totalmente diferente, como uma profissional, sempre sedenta por novos riscos, em constante estado de alerta e construindo, por onde passa, um sólido e frutífero diálogo com o setor do qual não só faz parte, como o representa em âmbito nacional e internacional. Conversamos com ela sobre sua visão nestas décadas e, claro, sobre o que espera do futuro do nosso cinema, fazendo parte dele, obviamente.

Confira a entrevista na íntegra:

São 20 anos desde o lançamento de “O Bicho de Sete Cabeças”, como você enxerga a evolução da discussão sobre a luta antimanicomial nestes anos? Como acredita que seria este filme se produzido nos dias atuais?

 

L: Há 20 anos, quando o filme foi lançado, o movimento antimanicomial atuou bastante, na época do lançamento, por entender justamente que o filme contribuía para essa bandeira que era explicar, para a sociedade, a importância do movimento antimanicomial, mas também sensibilizar a sociedade para que apoiasse e fizesse pressão para a lei da reforma psiquiátrica fosse aprovada, como de fato foi. O filme teve uma sessão no Ministério da Saúde na época, eu mesma participei de vários debates, mas principalmente o Carrano [Austregésilo Carrano Bueno - escritor] - o filme é inspirado na história dele, que aconteceu nos anos 1970, porém adaptada para o final dos anos 1990, início dos anos 2000 e mostrando que era uma realidade completamente atual. E o filme, de fato, contribuiu. O próprio movimento antimanicomial e a área da saúde mental da FioCruz, nos procuraram para fazer um debate 20 anos depois e fazendo exatamente essa reflexão sobre a atualidade, principalmente, nesse momento em que temos um governo que não respeita e não compreende a importância dos direitos humanos, não respeita a ciência, não respeita a educação, não respeita a cultura. Todo o movimento antimanicomial e todo trabalho humanista desenvolvido, de lá para cá, na saúde mental brasileira, está colocada de lado. Sem seu espaço, sem sua valorização. O filme, infelizmente, é completamente atual. Se o filme fosse feito hoje, ele seria adaptado, assim como na época eu adaptei para o início dos anos 2000. Eu adaptaria para hoje e a história seria idêntica. Infelizmente. Essa é uma triste realidade que permanece.

 

Qual panorama você traça do audiovisual brasileiro nestes 20 anos? Quais eram os maiores desafios do passado e quais são os desafios do presente?

 

L: Na época que o filme foi feito, Bicho de Sete Cabeças, não existia ainda a Ancine. Existia, na verdade, três Congressos de Cinema Brasileiro que foi justamente o início do projeto e da importância que o setor se organizou, refletiu e lutou para que a Ancine passasse a existir. Nesse sentido, o filme,  ele é anterior a toda uma política pública cinematográfica que foi feita da maior importância nesses últimos anos. Eu não diria nesses últimos vinte anos, eu diria nos últimos, sei lá, 17 anos, pois já estamos há mais de 3 anos com a Ancine praticamente parada, no sentido que ela perdeu sua função primordial que era justamente agilizar a economia do setor, defender o setor audiovisual, colocar ele em destaque na economia brasileira. Porém ela deixou, ela perdeu completamente essa função. É muito estranho que 20 anos depois a gente volta para uma situação muito semelhante, quase que desperdiçando todo um conhecimento, um know-how que foi desenvolvido e toda uma indústria que foi alavancada, novos talentos, novos profissionais, e agora a gente tem essa estagnação, uma puxada de freio de mão violenta na nossa indústria. Também um retrocesso e, mais uma vez, assim como na pergunta anterior sobre a discussão da luta manicomial, na qual nós voltamos 20 anos atrás , a industria audiovisual brasileira também. Tudo isso demonstra uma falta de política pública em várias áreas de nossa sociedade, não só na área da saúde, na área da cultura e, principalmente, no audiovisual que há um desmonte sendo feito. Não só não está sendo feito nada, como está sendo desfeito muita coisa, como a própria Cinemateca que está abandonada, correndo risco de vida, com toda nossa memória lá dentro.

Porém, não dá para dizer que é a mesma coisa de há 20 anos, porque nós temos hoje, uma industria que já existe. Sólida. No sentido de que surgiram grandes talentos, filmes importantíssimos, grandes bilheterias, ou seja, temos todo um histórico que comprova a importância do nosso setor e que mostra nossa contribuição para o PIB brasileiro, para a economia e nossa importância, também, na nossa memória cultural no nosso país. Nesse sentido, é diferente de 20 anos atrás, porque temos uma qualidade e uma quantidade de filmes que foram feitos que demonstra o tamanho do nosso país e a nossa diversidade cultural. Isso, de fato, é muito diferente. Não tínhamos essa quantidade de filmes produzidos, nem a grande diversidade de filmes produzidos. Isso chama muita atenção.

E hoje, numa crise, diferente de 20 anos atrás, nós temos um novo mercado que não existia antes, que é o da plataforma de streaming, que tem aí por trás grandes estúdios, então existe ainda um mercado funcionando, não da forma ideal, mas que bom que ele existe também, que é, na verdade, a garantia que uma produção brasileira, com a nossa indústria local, porém com um formato de service. O que é interessante porque as pessoas são remuneradas pelos seus trabalhos, muito bom, porém nós sabemos que a remuneração no Brasil dessas produções, os salários não são, ao serem passado para o dólar, não são os mesmos salários que são pagos em países vizinhos aqui da América Latina, por exemplo. Há um descompasso do nosso país em relação a países vizinhos, sendo que nosso audiovisual é tão importante ou até maior do que dos nossos países vizinhos, mas sem concorrência, de forma alguma. Eu acho importante esse alerta. Os nossos serviços de finalização, de pós-produção - se você compara com outros estúdios de outros países em dólar - você percebe que não se paga tão bem para gente aqui, no Brasil. Estamos, digamos assim, um pouco vendidos, entre aspas, porque como a nossa indústria foi desmontada de repente, todo mundo precisa aceitar o que é oferecido e não há espaço para negociação, até porque a propriedade patrimonial quanto intelectual não pertencem as produtoras e aos talentos brasileiros no cerne. Isso é entregue junto. O que, para mim, revela um dos maiores problemas, das maiores questões, que precisam ser abordados, resolvidos, tanto pelo setor, como por parte de Governo, por todos os atores envolvidos. E, claro, junto também, como outro grande tema, que é a regulação do VOD.

 

Este importante marco de sua carreira vem a culminar em um ano de pandemia, em que a indústria de cinema foi duramente afetada, como você vê os efeitos dela na cadeia toda de cinema no Brasil?

L: A pandemia afetou toda a sociedade de forma dura e a área da cultura de forma mais ríspida ainda. Mas dentro do setor audiovisual não dá para gente fazer uma análise que os efeitos que a pandemia foram da mesma forma em todas áreas, não. Impactou de forma diferente, sem dúvida nenhuma. O setor de animação, por exemplo, não foi impactado, porque a forma de  produzir permaneceu absolutamente igual. O que tinha era os estúdios de animação presencial, todos os profissionais continuaram produzindo home office, mas sem afetar o ritmo da produção. Assim como no game. O que afetou, claro, foram nas filmagens. O que a gente  nota, no entanto, é que tem mais brasileiro filmando no Uruguai do que no Brasil. Ou seja, se manteve, de certa forma, um ritmo de filmagem, claro, que com muito custo, mas que as plataformas de streaming, com seus conteúdos, conseguiram de alguma forma amenizar esse impacto, uma vez que o Uruguai, com índices bem melhores do COVID, pôde receber e continua recebendo muitas equipes brasileiras lá. Isso foi um lado que, digamos, amorteceu um pouco, mas, mesmo assim, quando se analisa o tamanho da indústria, as produções independentes brasileiras, todas pararam, porque seus orçamentos são diferentes, suas estruturas são diferentes. As grandes produtoras estão trabalhando para os streamings, mas são poucas. Talvez a gente possa colocar aí 10/15 produtoras, mas e todas as outras de pequeno e médio porte? Essas não conseguiram manter suas estruturas vivas. E muitas delas foram violentamente impactadas.

Além das produtoras pequenas, eu diria que quem mais sentiu mesmo foram as salas de cinema. As salas de cinema que foram obrigadas a fechar suas portas, elas, mesmo depois que puderam abrir, não conseguem recuperar mais o seu público e, aí, a matemática não fecha. Como é que você mantém a estrutura, o aluguel do espaço, mais licenciamento do conteúdo para exibição?  É muito difícil manter. Da área da indústria, as salas de cinema de rua, principalmente, foram as mais afetadas.

Dentro do setor de produção, acho que a área mais impactada foram os atores. Eles foram os mais expostos. Mesmo em uma produção, temos cuidados diferentes em cada departamento e o departamento de atuação foi o mais exposto ao risco. E os atores, quando a gente observa, que eles não podem fazer teatro, porque os teatros também fecharam, as produções de audiovisual que estavam trabalhando, tanto de tv quanto de cinema ou de conteúdo ou produção independente, pararam, tiveram suas equipes reduzidas, roteiros modificados, então mesmo os que voltaram a trabalhar, voltaram de uma forma mais lenta, ou seja, um impacto muito grande no bolso das pessoas.

E, aí, nesse sentido, tudo o que surgiu de lá para cá, através de toda luta do setor, como a Lei Aldir Blanc ou mesmo os fundos que vieram de emergência, muitos deles administrados pelo ICAB, surgiram no momento de muita importância, para dar um fôlego, e ainda precisam continuar. O ICAB, junto com a Netflix, acabaram de lançar mais um fundo. Isso vai ser necessário, acredito, mais um ano, a gente precise ainda pelo menos desses amortecedores.

O audiovisual, por ser uma indústria, não pode perder seus talentos, não pode perder seus técnicos, você perde, por exemplo, um maquinista. É muito difícil você recuperar um bom maquinista se ele vai trabalhar em outra área. Para você formar um bom maquinista, essa pessoa precisa de muita experiência. Isso leva tempo. E isso é uma pena. Porque temos aí 20 anos de estrada do nosso audiovisual no qual formamos excelentes técnicos, mas com o desmonte desse governo com o audiovisual, mais o impacto da pandemia, corremos o risco de perdermos esses profissionais para outras áreas, porque é natural que todo mundo precise pagar suas contas.

Esses auxílios que estão vindo, eles são fundamentais para que a gente não perca os nossos melhores profissionais e os novos também não desistam dessa profissão, porque a gente precisa cada vez de mais e mais equipes, mais e mais talentos.

Teve um lado, também, muito curioso da pandemia: se você analisa as empresas que se beneficiaram economicamente durante a pandemia, as dez empresas que mais lucraram durante a pandemia, você tem ali, pelo menos, duas plataformas de streaming. Isso significa que o audiovisual nunca foi tão consumido pelo público no mundo inteiro, não só no Brasil, que é um mercado importante. Então você tem aí as plataformas necessitando, buscando conteúdo, desenvolvendo conteúdo. Então, durante esse momento de pandemia, muitos projetos estão sendo desenvolvidos. A área de roteiro, os roteiristas, as equipes de desenvolvimento continuaram seus trabalhos, muitas delas para as plataformas de streaming, porém, mais uma vez, a produção independente parou, porque temos um Fundo Setorial (FSA) parado, temos poucos recursos dos estados e municípios que deem conta da quantidade de projetos com potencial para serem desenvolvidos.

 

Este também foi o ano em que você encerrou sua passagem de dois anos à frente da Spcine, qual balanço você faz de sua gestão?

L: Foram dois anos muito intensos em que eu aprendi muito e espero que tenha contribuído bastante também para o setor e o setor da cidade de São Paulo que é responsável por 1/4 da indústria do audiovisual brasileiro.

Eu destaco algumas frentes que foram feitas na Spcine, sempre com toda equipe engajada dos funcionários e que isso faz toda diferença. Uma das frentes é a política afirmativa que foi escrita, desenvolvida, formalizada e que acho que é um marco no audiovisual brasileiro, uma referência para dentro da Prefeitura na forma de trabalhar; uma política afirmativa com objetivo de garantir a diversidade de gênero e de raça que não trabalha com cotas, mas com metas e o tempo inteiro sempre em sintonia com as associações do Comitê Consultivo da Spcine. Norteando não só os editais, a formulação dos editais, a formulação do júri, daqueles que avaliam e discutem, mas também todas as outras áreas de formação e, aí, a própria área, por exemplo, da São Paulo Film Commission.

Destaco também a área da Film Commission também fortificando a sua atuação na América Latina, trazendo números importantes e ser tornando a segunda maior cidade que se filma na América Latina, colocando no mercado internacional, participando de mercado, mesmo na pandemia, mercados online, mas em especial, a confecção e a formalização de um decreto que implementou a política de atração de filmagens, através do formato cash rebate, que foi a primeira vez que foi feito no Brasil e isso chamou a atenção do mundo inteiro. Foi feito também ouvindo o setor, ouvindo conversas tanto Brasil como o internacional e com um política de atração de filmagens muito moderna, contemporânea que já levou em consideração os efeitos da pandemia e a política afirmativa e as questões do meio ambiente. É, então, um modelo de política de atração de filmagem que chamou atenção das mídias internacionais, dos produtores internacionais. Importante lembrar que esse cash rebate tem várias linhas e ele inclui, também, publicidade e inclusive, também, uma linha "Brasil interno", também para co-produções brasileiras e isso também é um diferencial desse cash rebate da Cidade de São Paulo. 

E nesses dois anos, foi muito intenso, mas na hora que eu vejo, um ano foi de pandemia e isso é muito forte. Porque na hora que ela chegou, uma vez que você está no Poder Público, você tem que tomar atitudes e medidas urgentes e observar o setor como um todo e isso não foi fácil. Explicar para o setor que ele precisa parar. Não é parar daqui alguns dias, é parar imediatamente, então, principalmente com o mercado publicitário, foi um diálogo tenso. Intenso e tenso, as duas coisas (risos). Mas enfrentamos todos juntos, os protocolos foram escritos, o protocolo de espaço público dos equipamentos públicos também foi escrito em sintonia com o protocolo do setor. Então, a SPCINE não seu ausentou em nenhum momento da seriedade que o momento exigia e garantiu, rapidamente, para que o setor, principalmente os mercados e festivais que dependiam dos contratos, nós asseguramos na época e refizemos esse compromisso, no início desse ano, que esses contratos seriam todos honrados com os valores combinados e que eles não teriam impacto e que era aceito uma adaptação para os formatos online e tudo o que fosse necessário, entendendo que os festivais e os mercados são muito importantes, são os motores da indústria. Não é só um espaço de exibição, é muito mais do que isso. Ali é justamente onde se nasce os projetos, onde se trocam os cartões, onde se vende os produtos, onde se anuncia o que vem por aí, as novas tendências, então isso não pode parar. E a Spcine entendeu isso e honrou todos os seus contratos tanto do ano passado e deste ano também. E foi fundamental, pois para muito deles foi o único recurso que tiveram para poder realizar seus eventos.

A área de formação, com o online, ela cresceu, ela ampliou. Aliás, eu destaco também como algo muito importante dessa gestão o surgimento dos cineclubistas, dos agentes cineclubistas, do Circuito SPCINE, justamente levando um foco temático e buscando um novo público na periferia da cidade de São Paulo e isso se tornou também um projeto de sucesso pela qualidade e pelo impacto e pelo número de pessoas impactadas e continuam sendo. É um projeto que continua vivo. Lembrando que os agentes cineclubistas, eles são agentes da periferia, das várias regiões da cidade de São Paulo, e muito deles entraram no mercado de trabalho a partir do momento que se tornaram cineclubistas, então sempre vivemos bons problemas que foram perder mais um cineclubista para o mercado. São pessoas todas muito especiais e que estavam ali camufladas e que, de uma certa forma, a SPCINE colocou um holofote nelas, deu oportunidade para elas aparecerem e mostrarem o quanto são competentes.

 

Além disso, como você acredita que sua visão de artista e cineasta influenciaram sua gestão na Spcine e como acredita que a passagem pela empresa transformou seu olhar de cineasta a partir de agora?

L: Há dois anos, quando eu recebi o convite do Secretário de Cultura Alê Youssef para fazer parte da equipe dele, eu entendi que era um momento em que era necessário todo mundo que pudesse dedicar o seu tempo para trazer força para o setor cultural e, no caso, para o setor audiovisual, era importante justamente por conta de um Governo que tem como projeto desmontar a cultura, enfraquecer o audiovisual. Então, é muito difícil você remar contra a maré, ou seja, é um esforço necessário. Na época, eu lembro que eu tinha um convite para um outro trabalho em que eu receberia muito mais, mas nem me passou pela cabeça não aceitar o convite do Alê e justamente emprestar um pouco da minha experiência, do meu nome como cineasta, também como um ato simbólico, mostrando “olha, o cinema, o audiovisual está em estado de alerta e nós não vamos dar um passo para trás. Muito pelo contrário. Nós vamos seguir a nossa cadência de crescimento e de reconhecimento já de anos". Eu acredito que o fato de eu ser uma cineasta, de ter uma produção já reconhecida, isso chamou atenção e trouxe atenção do próprio setor para a Spcine que já era muito respeitada. Aliás, também foi por isso que eu aceitei o convite porque eu sabia que eu estava entrando em uma Instituição que tinha um trabalho de ponta, de grande reconhecimento e que era necessário dar um passo além. Não desfazer o que estava sendo feito, muito pelo contrário, ir além e que acho que foi isso que a minha gestão, com toda equipe, nós conseguimos fazer. É avançar. Minha preocupação era justamente avançar e não retroceder, como é o esforço deste atual Governo Federal. Esse foi o motivo do porquê entrei. Eu lembro, quando entrei, que dentro da Prefeitura muita gente não conhecia a Spcine e o fato de eu ser cineasta, muitas pessoas conheciam os meus filmes e através de mim passaram a olhar a SPCINE com um olhar diferente. Porque o cinema, a gente sabe, tem o glamour (risos), então, na época também, quando eu comecei, eu fui convidada a ser membro da Academia do Oscar para votar, isso também chamou a atenção de muita gente que não é do cinema, mas sabe o que é o Oscar. Eu acredito que eu emprestei um certo “glamour" que o cinema tem para a própria empresa da SPCINE, trazendo respeito. Mas além disso, eu acho que minha contribuição para na SPCINE, além dessa de fato eu conhecer, de eu ter um produtora, de ser um produtora, além de ser diretora, de conhecer as dificuldades e, então, de uma certa forma, contar um pouco o outro lado para quem está na área administrativa da Prefeitura, então ter essa visão dos dois lados, às vezes corta caminho. Porque conseguia, às vezes, antecipar algumas questões, algumas dúvidas e entendia a importância do diálogo. Então, quando, assim que eu entrei,  fiz questão também de reorganizar o Comitê Consultivo que tinha sido abandonado, ou seja, o diálogo com o setor estava mais enfraquecido e o objetivo foi trazer transparência. Contar para o setor tudo o que estava acontecendo na Spcine inclusive suas questões financeiras e suas dificuldades e, de forma alguma, esconder, até para poder convidar o setor a achar soluções. Mas também fazer com que toda a equipe da SPCINE olhasse para o setor e se aproximasse do setor como um todo e não de uma forma segmentada. Porque temos que ter de fato, por sermos uma indústria, essa visão holística do todo. E aí, também, emendo para dizer que foi um aprendizado meu. Eu não tinha essa visão holística, eu tinha uma visão segmentada da minha área de produção de filmes, mas não tinha tão claro, por exemplo, sobre o setor da publicidade e me aproximei, da área de distribuição, da área de exibição, o drama dos cinemas de rua, a necessidade da distribuição e, é claro que já sabia da verdadeira questão do nosso país, e nem é uma característica só de São Paulo, de dizer que a distribuição de bens culturais que, numa cidade em que a periferia não tem acesso, mas como ampliar isso? A Spcine já tinha o Circuito de Salas Spcine, mas como dar continuidade e ampliar esse Circuito? Então, assim, surgiu o Circuito Cineclubista. Mas, ainda, por exemplo, eu desconhecia todo o potencial plataforma de streaming da SPCINE Play e, entendendo a sua importância e o quanto ela foi fundamental na pandemia que eu nem sabia que viria, ninguém sabia. Eu, enquanto artista, me surpreendi com a variedade de braços que a Spcine tem e o tamanho da importância dela. Eu não sabia, por exemplo, que a cidade de São Paulo é a segunda cidade que mais se filma na América Latina. Era um informação que eu desconhecia e ficava pensando que, se eu desconheço, o setor desconhece. Precisávamos contar para todo mundo. Então a necessidade de sair falando, contando, participando de eventos, dando entrevistas para ventilar informação, isso era muito importante.  E era ventilar informação para o setor, para a sociedade, ventilar nos mercados internacionais e ventilar informação para dentro da Prefeitura, buscando parcerias internas na Prefeitura que acho que isso, também, foi um marco dessa minha gestão. Pelo fato de ser cineasta, sempre que eu pedia uma reunião, sempre todo mundo aceitava. Muitos me procuravam também e, então, tinha um diálogo muito fácil dentro da Prefeitura e que resultou em grandes parcerias e em grandes projetos.

Eu não conhecia o lado de dentro da política pública, do Poder Público, tinha uma visão restrita, achando que o fato da Spcine pertencer à Secretaria de Cultura eu ficaria restrita à Secretaria e não. Eu circulei em todas as áreas da Prefeitura e isso trouxe também um respeito maior, um holofote para a Spcine, para dentro da Prefeitura, dando espaço para que mais projetos fossem realizados. Um exemplo disso é justamente todo o trabalho da política de atração de filmagens que resultou no cash rebate.

E, claro, que meu olhar mudou completamente agora que eu não estou mais na Spcine e olho o setor de outra forma. Com mais sutileza e entendendo a engrenagem, entendendo a importância de cada departamento para que essa indústria fique viva e seria muito burro (risos), da minha parte, se eu não me transformasse. Dois anos dentro do Poder Público e sair igual é muito triste (risos). Ao contrário, eu saí animada, entendendo que é possível fazer política pública e entendendo que o próprio setor tem que cuidar do setor. A gente não pode tirar o nosso pé dali, terceirizar. A gente tem que estar de olho e tem que rolar um revezamento. Por isso, também, a minha saída e a entrada da Viviane Ferreira me trouxe uma tranquilidade de saber que ela vai olhar com o mesmo grau de atenção ou até maior que o meu. Além dela também ser do setor, cineasta, ela é advogada. O que é uma experiência interessantíssima.

E ficou claro para mim, também, observando a importância, principalmente no momento que nós temos um Governo Federal que não faz nada ou, ao contrário, atrapalha o setor, eu compreendi a importância das várias associações e que muitas delas surgiram recentemente. A importância das articulações delas. A política pública é feita na construção com essas associações e essas associações, às vezes, precisam, sim, serem bravas, no sentido de serem rígidas nos seus propósitos que, às vezes, são contraditórios entre uma associação e outra. É preciso ter o debate. Até para um entender o outro e entender a holística da nossa indústria. Eu saí da SPCINE compreendendo e respeitando a importância de todas as associações, mesmo as pequenas e o como elas são importantes. Às vezes ela é pequena, mas é fundamental para a indústria e tem que ser escutada da forma forma que as grandes associações que representam, por exemplo, as grandes empresas. Uma grande empresa não vive se ela não escuta os seus novos talentos, as pessoas que estão chegando, com ideias novas, com perguntas. Então, esse diálogo com essas associações, acredito ser uma das funções da SPCINE que é botar todo mundo junto para conversar e não só quando acontece a urgência. Me lembro quando se tem um debate urgente todo mundo saindo, querendo escrever uma carta. Não….Um diálogo entre as associações tem que ser constante e isso vem acontecendo. E não pode parar nunca mais.

Me lembro da primeira reunião, quando entrei, que a gente fez, ainda presencial, não tinha pandemia, do Comitê Consultivo, as associações não se conheciam, uma boa parte delas. E foi um tal de troca de cartão. Ou seja, a própria reunião em si, mesmo que não tivesse a reunião, mas só de unir essas pessoas e elas pararem um tempo para conversar, trocar ideia e se ouvir, já era muito importante.

 

Você está em processo de finalização do longa A Viagem de Pedro, como está sendo todo este processo, tendo em vista os desafios da pandemia e do cenário atual do cinema brasileiro?

L: Quando aceitei o convite da Spcine, eu tinha acabado de filmar “A Viagem de Pedro” e eu achava que era possível conciliar a finalização do meu longa com o trabalho na Spcine. Me esforcei muito, mas foi muito puxado e não consegui finalizar ele totalmente. Foi um processo muito lento de montagem, de finalização que, na verdade, só estou conseguindo fazer justamente agora quando saí da Spcine. Não era possível antes. Agora, sim, estou me me dedicando à finalização e também à pós-produção deste longa. Um longa que, de fato, eu acho, que é meu maior desafio até hoje no audiovisual. E estou muito contente com tudo o que está vindo e com o resultado que está nascendo e que estou vendo. Espero que, em breve, eu possa dividir com o público (risos!). Vamos aguardar… Esse momento da pandemia é difícil pensar em como lançar o filme. A distribuição é da Vitrine Filmes e existe essa dúvida, que é uma dúvida geral, aguardar ou não aguardar, lançar só no streaming ou lançar no cinema, mas como? É um ponto de interrogação.

 

Com tantas experiências diversas, passando por diferentes momentos políticos, sociais e culturais do Brasil, quem você é hoje como cineasta? E como avalia sua própria trajetória desde seu primeiro longa até este próximo lançamento?

L: Sinto sempre que estou fazendo um projeto autoral, que eu acho que essa é a minha característica, não que eu só faça trabalhos autorais, mas sou conhecida pelos meus trabalhos autorais - autoral no sentido de ter uma assinatura, de eu emprestar o meu olhar e assumir riscos do meu olhar. Eu não sou uma diretora que fico camuflada em um projeto. Posso e já fiz isso para outros projetos e que não tem a minha assinatura, mas eu não sei fazer sem correr riscos (risos). Eu gosto de correr risco. Acho instigante. Me faz acordar de manhã, me faz andar na rua e ficar mais atenta a tudo o que está ao meu redor e porque eu associo àquele projeto que eu estou fazendo. Eu gosto de ficar nesse estado de alerta, me faz bem. Se eu não tenho isso, é estranho. Eu já não sei mais o que não é ter isso. Eu preciso disso (risos). Acho até que é por isso que é uma profissão que eu jamais vou me aposentar, porque como é que é não ter isso? Eu não sei (risos). É fundamental para eu acordar.

Eu sempre fui uma artista, cineasta, mas, desde o início, quando eu era ainda estudante de cinema, eu sempre participei de movimentos políticos, fazendo política cinematográfica e sempre que vou em uma palestra com estudantes e eles me perguntam o que eu recomendo, eu faço questão de dizer: “se vocês querem trabalhar com isso, vocês também precisam não só se informar e se formar do ponto de vista artístico, mas também do ponto de vista político”, porque se você não tem consciência política da necessidade da política cinematográfica, essa profissão é engolida, desaparece. O estado de alerta é constante e eu continuo, mesmo fora agora da SPcine, em estado de alerta como eu era antes e vou continuar sempre para sempre. Até porque eu gosto também. Acho interessante observar os movimentos da política cinematográfica do nosso país, dentro de um contexto mundo que está cada vez mais conectado, então sigo da mesma forma como era antes. Olhando de perto todos os movimentos, as leis, a nossa Agência, o que é que tem sido feito, as associações, os seus discursos, estou sempre acompanhando. De uma forma online e, na medida do possível, contribuindo e ventilando informações.

E confesso que morro de saudades da SPCINE. Parar a minha rotina com toda a equipe deu uma saudade e dá muita saudade. É apaixonante. Conversei recentemente com a Viviane Ferreira [atual presidente da Spcine] e ela me falou: “Laís, quando você me falou que a SPCINE é apaixonante, agora eu posso te dizer que é realmente, agora entendo”.  Ela é apaixonante. Pelo seu propósito. Pela sua equipe. Pelos seus resultados. E, agora, a importância dela como modelo para o Brasil. A Spcine é procurada por várias outras instituições e as pessoas querem saber como vocês fazem isso aí. Então servir de modelo é muito interessante. É muito estimulante.

 

Para você, quais são as maiores características do cinema brasileiro e o que você mais gosta nele?

L: Eu lembro em 2017, no Festival de Gramado, o Cacá Diegues - que era Presidente do Júri - e eu estava lá com o filme “Como Nossos Pais” e o Cacá fez um discurso muito bonito, falando: “olha, eu acompanho a trajetória do cinema brasileiro há muito tempo, passando por vários movimentos, passando por vários governos, e eu posso falar, com certeza, que o cinema brasileiro nunca foi tão interessante como nos dias atuais, justamente porque ele tem a diversidade. Ele nunca teve tanta diversidade, tanta qualidade como nos dias atuais.” E isso foi em 2017. Foi muito interessante ouvir isso dele. Eu achava isso, mas eu achava que fosse talvez uma visão minha mais egóica, no sentido que as novas gerações que vieram mostraram um novo cinema brasileiro. Mas quando o Cacá falou isso, eu pensei que interessante ele reconhecer isso porque eu penso a mesma coisa. Continuo achando a mesma coisa. A nossa diversidade, os nossos talentos - é a nossa maior riqueza. Quando vocês me perguntam o que eu mais gosto, eu não sei dizer, porque eu sempre me surpreendo com coisas que eu nem sabia que eu gostava, com novos gêneros. Da animação ao filme infantil…a comédia romântica. O que é interessante é o que eu gosto no cinema brasileiro não é o cinema que eu faço, é justamente o que eu não faço (risos). Que eu viro espectadora, pois não faço aquele outro cinema. Gosto da diversidade. Fico muito surpresa e orgulhosa quando vejo e penso “nossa, gente, olha só o cinema brasileiro o que ele está fazendo!!! Olha os nossos técnicos!!! Os nossos talentos!!!”. É surpreendente e muito bacana e saber que isso está viajando o mundo ou pelos festivais ou pelas plataformas de streaming que, hoje, ventilam as produções nossas locais para o mundo inteiro e vira TOP10 no mundo. Dá muito orgulho.  Sem dúvida nenhuma!

 

Como você enxerga o futuro do mercado audiovisual no Brasil e em que papel você se enxerga neste futuro?

L: Eu enxergo um futuro promissor, por incrível que pareça. Estranho falar isso, né? Mas não é não. Mas é porque o nosso mercado é muito importante, muito significativo e nossos consumidores de audiovisual no Brasil, eles nem sabem o quanto eles gostam do nosso produto. Porque nosso produto vende, é assistido , é desejado. Então isso é um casamento eterno. E eu vejo que a tendência no mundo são as conexões internacionais, ou seja, acho que para o nosso audiovisual, a tendência é que ele esteja cada vez menos dependente de um mercado interno e conectado com um mercado externo. Então sou otimista no sentido de que a nossa onda é que a gente surfe para além de um Governo que luta contra o nosso setor. Nossa tendência é crescer e não é andar para trás. Mas é claro que têm várias maneiras de você crescer e é nisso que nosso setor tem que ficar em estado de alerta. E eu me sinto parte dessa fiscalização, desse acompanhamento, contribuindo na reflexão da gente ter que esse mérito, esse reconhecimento econômico, do nosso setor, que seja dividido e de forma condizente com os nossos técnicos e nossos talentos brasileiros. Então, esse lucro tem que ficar na nossa indústria, fortalecer a nossa industria, porque ela é muito importante e forte. Então, eu me enxergo, da mesma forma, como sempre fui até aqui: fazendo política cinematográfica e realizando os meus próprios filmes.

 

Compartilhe:

  • 1 medalha