08 Março 2021 | Ylla Gomes
Superação
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Por Ylla Gomes Publicidade fechar X
Fiquei muito animada com o convite para escrever um artigo para a Revista Exibidor em parceria com o +Mulheres. Quando me propus a compartilhar minha experiência, fiquei com receio de trazer muitas informações que trouxessem mais desalento nesse momento. Sei que os horrores que estamos sofrendo nos impossibilitam de estar otimista, mas acredito na superação, na força do coletivo, no Contrato Social e na boa-fé. São tempos mais difíceis que aqueles esquecidos na memória da redemocratização. E, algumas de vocês bem sabem, a década de 1980 foi um período de penúria, fome, recessão, inflação, mas o advento de uma nova Constituição fez parecer que as coisas iam melhorar. Demorou, mas aconteceu! E após vivenciar anos tão promissores, é muito custoso nos adaptarmos a novos retrocessos, por isso preciso acreditar que esses tempos de prosperidade vão voltar - o mais rápido possível. Espero que todas estejam com saúde e se cuidando, àquelas que perderam entes queridos, meus sentimentos e minha solidariedade (sinto muito de verdade). Viver é um ato de resistência e, por resistimos a inúmeras dificuldades todos os dias, o tema de hoje é superação.
É quase impossível não traçarmos um paralelo entre o que vivemos nesses dois últimos anos no audiovisual (2019 – 2020) com o que aconteceu no início da década de 1990. A Embrafilme tinha acabado de ser desconstituída e o cenário era desolador. Cheguei a ouvir de algumas pessoas que não suportariam voltar a viver o que experimentaram com o fim da estatal. Talvez o sentimento atual traga um certo desconforto – o mito do eterno retorno -, e isso tem suas razões. Na década de 90, logo após a extinção da empresa, o país levou alguns anos até conseguir voltar a produzir um volume expressivo de filmes. Os recursos eram escassos e havia uma certa indisposição com a classe, mas o setor se reinventou, novos incentivos foram conquistados, um debate amplo fora construído e vivemos uma revolução tecnológica! Não de repente, depois de muito trabalho árduo, tínhamos um setor econômico em plena expansão. É claro que precisávamos (e ainda precisamos) nos adequar às novas demandas de conteúdo, mirar diferentes modelos e fazer adequações, afinal, aprimorar é um ato intrínseco da atividade econômica. Uma outra novidade ficou evidente ao longo desse processo: se no passado tínhamos uma produção cinematográfica predominantemente localizada em São Paulo e Rio de Janeiro, nos dias de hoje experimentamos a delícia de ver na tela a diversidade da produção brasileira. Sei que ainda falta muita coisa, mas crescemos muito e os incentivos foram justificados. No ano de 2018 chegamos à marca de 171 filmes nacionais lançados - “um crescimento de 131% em relação a 2010, quando foi criado o Plano Nacional de Cultura” – isso sem contar a produção de programas, filmes e séries destinados à televisão.
Nem em nossos piores pesadelos imaginávamos o que viria em 2020, mas não podemos esquecer que o ano de 2019 começou com muita preocupação sobre os rumos do Brasil e das políticas públicas conquistadas, participei de diversas reuniões, encontros, seminários e mostras. Enquanto o cinema brasileiro brilhava em diversos festivais internacionais, conquistando prêmios renomados e ampliando sua participação no mercado interno e externo, a Ancine tornou-se palco de disputas políticas e alvo de diversos ataques. A paralisação completa aconteceu ainda no primeiro semestre em decorrência de problemas com o Tribunal de Contas da União: o TCU condenou a agência por conta do Ancine+Simples - sistema aprovado e regulamentado por decreto válido. Além disso, outros problemas permanecem até hoje sem solução, a manutenção de questões sob judice, a revisão de prestações de contas já analisadas e o sentimento de perseguição/ retaliação trouxeram instabilidade ao corpo técnico. A partir de então, travou-se uma cruzada por diversas instâncias em batalhas quase que diárias.
Aos poucos surgiam demandas em diferentes esferas. Acompanhamos com apreensão questões relativas à Lei do SEAC sendo discutidas em um processo (Claro X FOX) na Anatel, enquanto projetos de lei eram apresentados na correria, pois a discussão na referida agência aguardava uma chancela de legalidade. No senado, semana após semana, vi e vivi a angústia de bater de porta em porta de gabinete explicando a importância da não aprovação do PL 3832/2019 (alteração da Lei do SEAC – que precisava atender as demandas em pauta na Anatel), aguardando ansiosamente pelas informações e pelos acordos feitos nas reuniões de líderes. Enquanto acompanhava com atenção audiências públicas em comissões nas duas casas, monitorava as emendas aos projetos já em andamento. Foram inúmeras iniciativas em várias frentes partindo de diferentes atores. Nesse período também pude acompanhar e participar da criação de uma associação de produtores independentes, da Frente Parlamentar em Defesa do Cinema e Audiovisual (presidida pelo Deputado Tadeu Alencar, a quem sou muito grata), da luta e da resistência no Congresso Nacional.
Fomos surpreendidos pela a suspensão do edital de TV’s Públicas, sem que pudéssemos acreditar nas razões apresentadas e na forma cruel e arbitrária utilizada para expor os colegas. Oportunamente, fiquei orgulhosa do acolhimento desta questão pelo Ministério Público e por alguns partidos, também da prontidão com que o fato foi recepcionado para debate no STF, posso dizer que tive o privilégio de acompanhar a liberação e contratação do edital linha após linha.
Ainda sem solução, a questão da cota de tela tem sido tratada com descaso tendo a lei caducado, isso que causou enorme prejuízo à colocação de títulos nacionais. Basta lembrar a retirada de cartaz do filme “De pernas pro ar 3”, dentre outros, para uma ocupação de 92% das salas de cinema com apenas UM título estrangeiro.
Algo semelhante poderia ter acontecido com um importante mecanismo da Lei 8685/1993(decaimento dos arts. 1º e 1º-A da e Recine), contudo conseguimos a aprovação do projeto de lei de renovação desses incentivos por iniciativa do Dep. Marcelo Calero, no último dia da Sessão Legislativa de 2019. Logo após outra surpresa desagradável, no momento da sanção a Lei 14.044/2020 foi vetada gerando enorme insegurança jurídica e transtorno para produtores e investidores, uma vez que todos estavam contando com essa renovação. Ainda no início de 2020, na expectativa da convocação de uma reunião do Comitê Gestor que anunciasse os rumos do orçamento para o setor, vi os trabalhos serem interrompidos enquanto tentávamos pautar a derrubada do Veto 62 (Lei 14.044/2020) – que somente voltaria a ser debatido em agosto no Congresso Nacional.
Víamos também surgir um embate na esfera judicial entre produtores que sofriam no aguardo da liberação de contratos e de recursos e a Ancine, chegando-se a ter Mandados de Segurança na casa das centenas. Enquanto choviam processos na justiça, a agência resolveu apresentar importantes propostas de alteração de procedimentos administrativos internos. Procedimentos que inviabilizariam a já sofrida produção, as entidades se reuniram e conseguiram mobilizar o segmento que seria diretamente impactado, fazendo com que a agência suspendesse temporariamente algumas alterações para o público. Além de amargarmos a lentidão na contratação e na liberação dos recursos, a agência ainda nos oferece procedimentos confusos, poucos esclarecimentos, falta de transparência, em síntese, desrespeito a princípios constitucionais de direito administrativo - para dizer o mínimo.
Nesse biênio acumulamos tristeza, desencanto, dificuldades sanitárias, e financeiras, mas o FSA (Fundo Setorial Audiovisual) continuou crescendo e recebendo as contribuições devidas, por exemplo, no ano de 2020, 100% do que deveria ser investido foi mantido no fundo como mostram os dados da série histórica da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) – ou seja, o recurso aprovado na LOA 2020 foi todo contingenciado. Contudo o recurso está lá, a lei ainda diz que deve ser investido no setor.
Muitos podem não perceber essa história como de superação, mas tenho certeza, tantos outros compreenderão os esforços necessários para evitar o aumento do desemprego e manter suas empresas de “portas abertas”; realizar e filmar após um longo período de discussão sobre as adequações necessárias para não expor a saúde dos profissionais; conseguir finalizar e entregar seus projetos, enfim, manter a esperança de um dia voltar a produzir como antes. Minimizamos as perdas e seguimos lutando.
Sei que há mais de “uma gota no oceano” para alimentar as esperanças, há contratos sendo assinados e recursos chegando, bem abaixo do ritmo esperado. Soube que, finalmente, uma amiga produtora poderá realizar e dirigir seu primeiro longa aprovado em 2018 pois o recurso fora contratado e depositado, um sonho possível suspenso por hora, mas pronto para sair do papel e ir para a rua. Agora é esperar pelas vacinas da forma mais segura.
Se cuide,
Até a próxima
Ylla Gomes, brasiliense, antropóloga, estudou Direito no UniCEUB e Direito Constitucional Público no IDP, trabalhou no projeto PADOS da BrasilTelecom, tem uma empresa e produz filmes. Faz parte do grupo +MULHERES lideranças no audiovisual brasileiro e sofre com a saudade de um set.
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