21 Janeiro 2021 | Malu Andrade, diretora de desenvolvimento de políticas audiovisuais da Spcine
Balanço de políticas afirmativas em 2020 e porque olhar fora da caixa nos faz melhores
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Recentemente saiu na imprensa o mapeamento dos filmes com maior bilheterias lançados em 2020, 16% foram dirigidos por mulheres.No streaming, Shonda Rhimes, a deusa da televisão, fechou um acordo provavelmente com valores hiperlativos com a Netlfix; a primeira produção de Shondaland, The Bridgerton, fez 63 milhões de espectadores em menos de 1 mês, ficando em primeiro lugar em 76 países (Brasil incluso) e no TOP 10 em 93.
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O número de séries e filmes dirigidos ou produzidos por mulheres ou profissionais negros ainda é muito pequeno perto da enormidade de coisas produzidas por homens brancos, entretanto a paisagem vem ficando mais colorida e diversa. Segundo os dados do IBGE, mulheres são 51% da população e negres são 54%, há uma clara discrepância no mercado de trabalho. Os dados da Ancine são estarrecedores: na média 20% das produções audiovisuais são dirigidas ou roteirizadas por mulheres, quando o recorte de raça é aplicado, é ainda mais desolador. Temos 03 filmes lançados comercialmente dirigidos por mulheres negras: O Caso do Homem Errado, da Camila de Morais, e duas co-direções com homens: Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa e Pitanga, co-direção da Camila Pitanga com Beto Brant. Pode parecer um choque, uma revelação, mas mulheres, pessoas negras, população LGBTQIA+ querem se ver na tela, e não querem se ver pelo olhar do outro, geralmente o homem branco. Eu sei, estarrecedor, mas é a verdade nua e crua.
Evidentemente, nenhum grande executivo coloca mais mulheres, transgênero ou negres na frente ou atrás das câmeras por um ato de bondade. Na verdade é muito bom para os negócios, para o público que quer se ver e quer consumir. Pouco me importa, sempre me interessou hackear o sistema por dentro, ao invés de ficar num embate pouco produtivo. Porém, quem pode ir para o embate de frente e vencer batalhas? As políticas públicas.
Sim! As políticas públicas, aquelas que quando interessam, geralmente isenção fiscal, são boas, quando mexem em privilégios, são coisas de comunista. E a Spcine dando continuidade às políticas afirmativas iniciadas em 2015 estabeleceu em setembro de 2019 que todos os investimentos em editais lançados à partir de então estariam dentro de um sistema de políticas afirmativas.
Para chegar no desenho feito, peguei referências de políticas de muitos países europeus com modelos dos mais diversos. O mais interessante, de longe, é o sistema do BFI, completo, complexo e eficiente. As novas regras da Academia para o Oscar? Tiradas das regras criadas para o BATFA neste grande pacotão inglês, mérito de uma mulher,negra e deficiente física chamada Debora Williams, absolutamente brilhante. Pois bem, mergulhei neste caldo de referência para criarmos a nossa própria política, condizente com a nossa realidade e, claro, início do programa. Pode parecer simples mas se provou bastante eficiente.
A política é formada por um tripé:1- júri composto no mínimo por 50% de mulheres, 25% de negres. Cabe ressaltar em caps lock e negrito a composição do júri: MERCADO. Sim, são escolhidos dentro do setor de forma a colocar produtores executivos com larga experiência, distribuidores, executivos de canais, roteiristas com bastante experiência em empresas grandes para analisar. Eu sei, mais um choque, mas pois é, mulheres, negres e mercado não são excludentes. 2- pontuação indutora nos editais, dependendo do foco e público alvo, muda. 3- capacitação, um sistema, por ora, de uma incubadora informal com mentorias, workshops, masters, mesas, fechadas ou abertas, para mulheres, transgêneros e negres contemplados ou suplentes, visando projetos ainda melhores para captar ou para serem vendidos. A metodologia trabalha com sistema de meta, chegar a meta e sustentá-la por um período de 50% dos projetos contemplados serem de mulheres e 25% de empresas com quadro societário majoritário de negres. Para atingir ou sustentar a meta, o trabalho de capacitação é importante, não só para formar novos quadros que se inscreverão em editais, mas também para ajudar que os projetos contemplados, excelentes projetos, sejam ainda melhores e possam ganhar prêmios e/ou ter uma boa bilheteria. Um ciclo virtuoso que se retroalimenta.
Estamos na primeira volta do círculo. Terminamos batendo a meta, com 50% dos projetos contemplados em nossos editais sendo de mulheres e 25% de empresas com quadro societário majoritário negro. No edital de Produção B.O, 7 entre 8 contemplados tinham alguma pontuação e no Start Money, 5 de 8 projetos. Cabe ressaltar que neste bolo da pontuação podem estar projetos de homens cis brancos, uma vez que há pontuação para direção de fotografia, roteirista e supervisão de pós. Uma forma de estimular outras áreas que carecem de profissionais mulheres e diversificar um pouco a panelinha sempre formada nas produções, dando espaço para mais profissionais.
Além dos editais, instituimos o selo de Bechdel no Spcine Play, o teste não mostra se o filme é feminista ou não, nem é o intuito, ele é ainda mais frugal: se existe duas personagens mulheres com nome, que falem numa cena de no mínimo 1 minuto sobre qualquer coisa senão homem. 20% dos filmes globalmente passam. Chocante. E também patrocinamos ou apoiamos institucionalmente muitos eventos com foco em cinematografia negra ou de mulheres, dando ampla difusão a estes conteúdos.
O balanço da política neste primeiro ano de implementação foi muito positivo, agora 2021 é o ano da prova de fogo e onde a capacitação tem grande importância: manter bons projetos criativamente e do ponto de vista de negócios para estarem aptos a ganharem novos editais e, assim, conseguirmos manter a meta. Do ponto de vista da difusão, manteremos o apoio aos eventos e daremos continuidade ao selo de Bechdel no Spcine Play, expandindo para o Circuito Spcine.
Políticas afirmativas tem tudo a ver com negócios hoje. Ninguém precisa tacar fogo no Capitólio por isto...
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