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30 Agosto 2023 | Gabryella Garcia

Casa do Cinema de Porto Alegre celebra 35 anos e vê cenário positivo para retomada do audiovisual brasileiro

Celebrando mais de 35 anos de existência, a Casa do Cinema de Porto Alegre é uma das homenageadas da Expocine 2023

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(Foto: Rodrigo Gorosito)

Em 2023 a Casa do Cinema de Porto Alegre celebra mais de 35 anos de existência e tem muito o que comemorar em sua trajetória de ser uma das pioneiras da produção audiovisual brasileira fora do eixo Rio-São Paulo. Hoje, liderada pelos quatro sócios que são Jorge Furtado, Nora Goulart, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis, a produtora vê com bons olhos a perspectiva de retomada do setor audiovisual nacional desde que Ancine e MinC olhem atentamente para as demandas de toda a cadeia de produção.

Diante de toda a trajetória que proporcionou o crescimento do audiovisual para além de Rio de Janeiro e São Paulo, ou como os próprios sócios afirmaram ao Portal Exibidor "fazer cinema no Brasil nunca foi moleza, mas antes só era possível no eixo Rio-São Paulo e hoje é difícil em todos os lugares, de uma forma mais parelha", a produtora será uma das homenageadas neste ano na Expocine 2023, que acontecerá entre 3 e 6 de outubro para todo o mercado de cinema.

Mas, para uma retomada efetiva do setor e crescimento do cinema nacional, é necessário valorizar a produção brasileira em todos os seus aspectos de diversidade e deixar um pouco de lado as influências estrangeiras. Para Jorge Furtado, por exemplo, é necessário deixar a "americanização" um pouco de lado para que a própria indústria e também os exibidores valorizem um produto nacional de qualidade.

"A indústria audiovisual é dominada pela expertise americana e as referências são as séries e filmes americanos. As pessoas ficam fazendo projetos que seguem as regras do cinema americano então parafraseando o Paulo José, 'nós fazemos o melhor cinema brasileiro do mundo' e acho que também fazemos 'o pior cinema americano do mundo'. O pior cinema americano que existe é o brasileiro porque ele tenta imitar o cinema americano em um negócio de escola com pessoas disputando a preferência dentro da escola e também em padrões de beleza e tudo o que não tem nada a ver com o Brasil. Não tem nada a ver com o Brasil então fica horrível e não faz sucesso. (...) Se você pensar em filmes como Marte Um, A Febre e Noites Alienígenas, são coisas totalmente brasileiras. Esses filmes são muito brasileiros mas não tem espaço no cinema", disse ao Portal Exibidor.

Mas, o cenário ideal de retomada vai para além da valorização do produto nacional, também é necessário o incentivo público após um período em que a cultura brasileira foi bastante maltratada pelo último governo. Nos últimos anos o volume de trabalho das produtoras brasileiras independentes diminuiu e hoje as políticas públicas são de extrema importância para uma retomada, sobretudo diante de um cenário pós-pandemia em que as plataformas de streaming começaram a atuar como produtoras e, sem qualquer tipo de regulamentação, dominaram o mercado. Mas, com um trabalho sério do Ministério da Cultura, é possível vislumbrar dias melhores e mais otimistas.

"É importante como perspectiva que a gente volte a ter a Ancine trabalhando pelo audiovisual brasileiro e defendendo toda a sua cadeia e discutindo essa cadeia. Protegendo o produtor onde é necessário e o distribuidor também onde precisa e criando políticas conjuntamente para o desenvolvimento do audiovisual. A política pública é fundamental e ela tem que ser criada coletivamente, junto com toda a cadeia. Esse espaço é fundamental e acho que isso é o que mais muda nesse novo momento de governo e consequentemente de Ancine, MinC e da retomada de todo setor audiovisual", afirmou Ana Luiza Azevedo.

E, diante desse cenário de otimismo, a perspectiva de uma das mais antigas produtoras independentes do Brasil é de voltar a produzir com frequência e também sempre acompanhando as novidades do mercado e das novas tecnologias. A produtora que foi responsável pelo primeiro longa-metragem em vídeo para passar no cinema no Brasil, com Houve Uma Vez Dois Verões, também já fez produções para streaming, TV a cabo e agora pensa nos primeiros projetos com telas de LED.

"Neste momento estamos retomando, na verdade nunca paramos de fazer alguma produção ou algum filme, sempre continuamos mas o volume caiu muito nesses últimos três anos. Agora estamos retomando com vários projetos em andamento e voltando a fazer. Fazer cinema sempre foi difícil no Brasil e nunca foi moleza, mas o que o Brasil tem de melhor é sua diversidade e ela tem que estar representada nas telas de todas as maneiras. Pessoas de todas as cores, histórias de todas as pessoas, de todos os gêneros e de todos os lugares para todos os tipos de público porque quanto mais variado for o cinema brasileiro, melhor", disse Jorge Furtado.

Confira a entrevista completa:

Como surgiu a iniciativa de criar a Casa de Cinema de Porto Alegre e quais foram os marcos iniciais da produtora?

Ana Luiza - A Casa de Cinema começou como um condomínio de produtoras. Nós éramos quatro produtoras que decidimos criar um espaço para que uma produtora colaborasse com o projeto da outra e, principalmente, também trabalhar com a distribuição dos filmes. Era um momento lá nos anos 80 que tinha muita dificuldade de circulação de alguns filmes e até de curta-metragens que a gente fazia. Nesse momento a gente tinha vários curta-metragens feitos e premiados com uma repercussão importante em festivais e que a gente queria colocar isso em circulação, então foi criada essa estrutura para a gente trabalhar os nossos filmes. Depois as coisas foram acontecendo e ali nos anos 90, na retomada do cinema brasileiro, algumas produtoras fecharam e outras foram para publicidade antes da retomada, né? Na crise do governo Collor. E aí nós ficamos e criamos a produtora Casa de Cinema de Porto Alegre.

Giba Assis - Acho que faltou dizer que eram quatro produtoras no condomínio de produtoras, mas eram muito mais sócios, né? A gente tinha 13 sócios que depois, com o plano Collor, a gente vê que se desfez. A cultura quase desapareceu no Brasil porque estava muito difícil de fazer cultura, então a maior parte das pessoas foi fazer publicidade. Abriram outra empresa para fazer publicidade ou saíram de Porto Alegre. Inclusive, nós quatro estávamos em Berlim exatamente nos dias antes de o Collor fazer aquela loucura. Naquele momento a gente estava em Berlim com Ilha das Flores, o filme que o Jorge Furtado fez e aquilo abriu uma série de perspectivas, né? A Casa de Cinema de Porto Alegre existia desde 1987. Ela se desmanchou com o Plano Collor, mas a gente conseguiu abrir a produtora na época. Ainda tínhamos mais dois sócios, mas nós quatro estávamos em Berlim e graças aos contatos que a gente fez lá conseguimos durante um período que foi praticamente impossível fazer cinema no Brasil nos manter fazendo cinema para TV alemã e para TVs americanas. A gente sobreviveu nesse período por causa disso e a produtora na verdade, como produtora, surge a partir daí.

Jorge Furtado - Eu acho que faltou uma coisinha, que foi dizer que lá no início o nome Casa de Cinema de Porto Alegre surgiu porque era a ideia que nós tínhamos de fazer cinema em Porto Alegre. As pessoas que queriam fazer cinema iam embora para o Rio de Janeiro ou para São Paulo, então a gente queria ficar aqui e fazer cinema aqui. Esse foi meio o surgimento e como o Giba disse, teve esse ciclo curto que acabou e recomeçou de novo. Depois vieram os longas na televisão o tempo todo, e a gente fez televisão e cinema com essa ideia de viver fazendo audiovisual morando em Porto Alegre, de não sair daqui.

Nora Goulart - Também nesse período a gente começou a fazer produção independente para televisão porque era uma novidade total, né? Especialmente aqui em Porto Alegre. Foi isso também que nos possibilitou permanecer com um CNPJ, porque a gente tinha essa relação de trabalho com a TV e com a TV Globo, com o Guel Arraes que nos chamou através do Jorge Furtado para fazer produções independentes. Na época nós também éramos os representantes da Kodak para a região Sul, então nós vendíamos negativos para publicidade e isso também nos permitia ter uma renda para manter uma estrutura de produtora.

Ana Luiza - E isso que a Nora falou eu acho que é importante porque a Casa de Cinema, desde que a gente criou, nós tínhamos muito claro que nós tínhamos que trabalhar para cinema e televisão, e naquele momento existiam as produtoras que trabalhavam com vídeo e publicidade para televisão e as produtoras de cinema. A gente sempre teve muito claro que isso era uma coisa só e que a única possibilidade de sobrevivência de uma de uma produtora de audiovisual no Brasil era que a gente conseguisse trabalhar com todas as mídias possíveis.

Jorge Furtado - Mas não fazendo publicidade especificamente. Fizemos publicidade política e campanha política, mas uma produtora que faz só a publicidade acaba sendo dominada porque ela [a publicidade] tem muito dinheiro e tem muita atividade. O cinema fica sempre sendo empurrado para depois e então a gente decidiu que não faria publicidade diretamente.

E nesse outro período no final da década de 80 e depois durante o governo Collor, quais foram os principais desafios e marcos desse período que vocês enfrentaram e também como sobreviveram?

Jorge Furtado - Eu acho que o audiovisual brasileiro já morreu algumas vezes, ele vai e volta porque sempre tentam matar ele. O Collor tentou, agora esse último inelegível tentou também acabar com o cinema porque o cinema precisa do apoio do Estado em todo mundo. Existem raríssimas exceções, mesmo nos Estados Unidos tem muito apoio e em todos os outros países da Europa, todos têm muitas leis de apoio para a produção audiovisual do país. Sem essas leis e sem esse apoio não dá para sobreviver, então o audiovisual tem ciclos no Brasil. Quando acabou a Embrafilme parou tudo e por um momento não tinha como fazer filme. A gente fez um filme que foi o Felicidade é..., que é um longa de quatro episódios e ganhou três prêmios de melhor filme brasileiro. Ganhou em Gramado, em Brasília e em Cuiabá por um motivo simples, era o único filme brasileiro que existia. Não tinha nenhum outro, então era o único longa do ano. Depois teve a retomada que voltou mesmo com o filme da Carla Camurati, o Carlota Joaquina (Warner). Esse foi o filme que marcou a retomada do cinema e agora de novo, com esse governo também parou tudo. Não chegou a interromper a produção porque agora está muito mais diversificada, mas prejudicou muito a produção de cinema de novo e, felizmente, já está sendo retomada.

Hoje vocês já estão com mais de 35 anos de estrada desde aquela primeira formação que era o condomínio de produtoras. Como hoje, depois de mais de três décadas, vocês avaliam a trajetória de vocês dentro do mercado?

Nora Goulart - Eu acho que tem uma questão que a gente sempre acreditou em um trabalho de equipe, de grupo e de socializar as nossas ideias. Chamar pessoas daqui de Porto Alegre para contribuir conosco e criar projetos juntos e poder fazer disso a nossa marca. Acho que dividir o trabalho e acreditar realmente que o cinema é um trabalho de equipe e de criação coletiva também é uma marca nossa. Acredito bastante nisso e acho que isso nos deu uma base de sustentação e de criação coletiva. Acho que isso é uma marca bem importante nossa da Casa de Cinema nessa nossa trajetória.

Ana Luiza - Acho também que essa decisão de fazer cinema morando em Porto Alegre nos dava uma responsabilidade que a gente assumiu de desenvolver o cinema fora do eixo Rio-São Paulo, então para isso tem que ter responsabilidade de formação de equipe. Não adianta a gente querer fazer um cinema que tem que importar tudo, desde o técnico de som ao eletricista. Tem que ter a responsabilidade de criar esse mercado nesse lugar, que é em Porto Alegre. Então a cada trabalho a gente entendia que era um trabalho importante para nós porque a gente estava fazendo, desenvolvendo e aprendendo como trazer gente para aprender e fazer conosco. Ter uma equipe capaz de fazer o audiovisual fora do eixo Rio-São Paulo era uma responsabilidade que a gente entendia e por isso acreditava nesse cinema de grupo.

E para além dessas questões que acho que são as maiores dificuldades, que é a falta de incentivo, por exemplo, a Cota de Tela desde 2021 sem ser renovada e questões políticas de falta de incentivo, o próprio mercado audiovisual e cinematográfico se transformou de forma acelerada na última década. Então queria saber como vocês observam essas mudanças da indústria e também como vocês como uma produtora independente acabaram se posicionando diante dessas mudanças tão aceleradas para se adaptar ao mercado?

Jorge Furtado - A gente sempre fez cinema e televisão e a gente foi acompanhando a tecnologia que foi mudando a todo tempo. A gente fez aquele que talvez foi o primeiro filme de longa-metragem em vídeo para passar no cinema que foi Houve Uma Vez Dois Verões. A gente fez produções para streaming, a gente fez produção para TV a cabo, a gente fez coisas para internet. A gente tem um blog desde que existe o blog, então enquanto a tecnologia foi mudando a gente foi tentando se atualizar e correr juntos. Agora também pensamos nos primeiros projetos com telas de LED. Enfim, continua mudando a todo tempo, né? Mas uma coisa que a gente tem que se perguntar sobre esses 35 anos são sobre os filmes que ficam. A gente sempre procurou fazer trabalhos duradouros e os curtas que produzimos há anos você também pode ver agora, eles têm uma durabilidade que o cinema precisa ter. Não é uma coisa só para ver agora e acabou, pode ser visto um tempo depois também. Essa é uma preocupação que temos além dessa questão do coletivo, que é muito marcante.

Ana Luiza - Acho que também temos que entender essas mudanças como um desafio, mas sem aquele saudosismo de dizer que temos 35 anos e naquela época que era boa. As coisas mudam e elas têm vantagens e desvantagens. Tem possibilidades também, então acho que entender essas mudanças do audiovisual e não só de tecnologia, mas também de possibilidades de exibição, como essa de formatos também são desafios. Então se hoje tem espaço para séries, vamos aprender a fazer narrativas seriadas e com longa duração, cada cada momento é um desafio novo.

E diante desse cenário de transformações e novas tecnologias, e também sendo uma produtora independente, como vocês enxergam essa relação e qual ou quais são as principais dificuldades de ser uma produtora independente no Brasil com essa falta de incentivos que já foi comentada?

Nora Goulart - Acho que as políticas públicas estão dadas e temos algumas delas. O Fundo Setorial existe, quer dizer, está voltando, e os editais também. Existem políticas públicas que foram trabalhadas durante anos para que os produtores independentes permaneçam e façam seu portfólio de trabalho para que isso depois vire renda no seu escopo de licenciamento. Hoje o que aconteceu pós-pandemia é que as plataformas de streaming começaram a atuar como produtores e nós prestamos serviços, mas não como produtores independentes. O que está se discutindo agora é uma regulação para o streaming  porque o que a gente fez até agora é uma prestação de serviços, nós somos produtores independentes na medida que temos os direitos sobre nosso trabalho, nossos produtos e nossos filmes.

Jorge Furtado - Além dessa questão do direito autoral e do direito de ser parceiro e ser dono do trabalho para poder participar do risco e também dos lucros de um trabalho, uma coisa que é importante ressaltar é que estamos vivendo um período de crise do que é a criação audiovisual. Ela é uma indústria mas também é uma arte, e a indústria tenta fazer fórmulas de produções em série para fazer coisas assim "da moda". Existe pesquisa de tendência, mas só isso não produz nada de bom. Isso sozinho não dá resultado e existe um outro lado artístico que é o "mover-se do caos para a ordem" que só é possível com a liberdade criativa, com riso, palhaçada, com perda de tempo jogando conversa fora, mas isso não se junta aos ideais na indústria. Então o que está acontecendo é que as pessoas tentam fazer fórmulas para produzir coisas e não dá certo. Às vezes dá certo, mas o que dá certo mais frequentemente é a criatividade de pessoas artísticas e suas particularidades. São coisas ousadas que não vão obedecer uma fórmula e que não seguem clichês, então a indústria fica pagando mico e correndo de um lado para outro e dizendo "agora é porrada e bomba", então precisamos de tiro e porrada porque todo mundo quer ver isso. Todo mundo começa a fazer tiro, porrada e bomba, mas daqui a pouco o legal é uma coisa alegre, então todo mundo corre para ser alegre e no final ninguém sabe o que está fazendo porque não faz para si. Um filme sempre tem alguém que torce por ele e quer que ele seja bom até o fim. Precisa de alguém que acredite no que faz e de equipes que torçam para que o filme seja bom, então a gente luta com ele desde o nascimento até o fim do filme. Se a indústria quiser fazer coisas boas, duradouras e lucrativas, ela vai ter que aprender a conviver com a criação artística. Do contrário, não irá dar certo.

E como atingir o público com essas produções independentes tendo em vista que até o início de agosto apenas 1% dos ingressos vendidos nos cinemas brasileiros foram para produções nacionais? Como atingir esse público?

Jorge Furtado - Tem dois filmes, Barbie e Oppenheimer, com 80% das salas. Dois filmes pegam 80% das salas e sobra 20% das salas para 100 filmes, então essa equação não funciona.

Giba Assis - E o detalhe é que a diversidade da exibição é relativa. Se for ver em um final de semana tem filme francês, tem filme italiano e tem filme iraniano para ver, mas é na sessão das 14h ou das 16h. É só o Homem-aranha e a Barbie que tem diversidade e não é possível ver um outro filme de noite.

Jorge Furtado - E também são raros os filmes em que os protagonistas são pessoas e seres humanos. Oppenheimer é uma pessoa e eles fizeram a bomba atômica, mas a Barbie não é uma pessoa, o Homem-Aranha e Velozes e Furiosos também não, são carros. Não tem seres humanos de protagonistas e isso é uma loucura, o cinema virou um negócio de games. Tudo bem como negócio, mas não é uma coisa que vai durar.

Ana Luiza - Também é sempre importante lembrar que a tela do cinema é uma importante janela, mas ela não é a única. Os filmes têm que durar e podem ser vistos a vida inteira. Temos nossos filmes que estão sendo exibidos que fizemos há 35 anos e continuam passando em escolas e voltando em algumas salas de cinema, então um filme é para sempre. Se a gente analisar só isso, estamos restringindo muito a utilidade e a vida do filme, mas ele é mais do que isso. Ao mesmo tempo acho que quando falamos dessas mudanças de tecnologia e do mercado, temos que pensar em parcerias até para a sobrevivência da produção independente. É fundamental a parceria com televisões e com os streamings, mas tem que ser uma parceria horizontal em que exista uma troca de verdade. Tem a nossa expertise ao contar uma história e saber narrar essa história e isso tem que ser creditado e levado em conta. Às vezes é frustrante em discussões quando a gente faz algumas observações e as pessoas não querem melhorar a história, mas sim seguir algumas tendências de pesquisas.

Jorge Furtado - Outra questão importante é que a indústria audiovisual é dominada pela expertise americana e as referências são as séries e filmes americanos. As pessoas ficam fazendo projetos que seguem as regras do cinema americano então parafraseando o Paulo José, "nós fazemos o melhor cinema brasileiro do mundo" e acho que também fazemos "o pior cinema americano do mundo". O pior cinema americano que existe é o brasileiro porque ele tenta imitar o cinema americano em um negócio de escola com pessoas disputando a preferência dentro da escola e também em padrões de beleza e tudo o que não tem nada a ver com o Brasil. Não tem nada a ver com o Brasil então fica horrível e não faz sucesso. Se fosse bom e desse dinheiro, tudo bem, mas é ruim e não está dando dinheiro.

Nora Goulart - E existem muitos filmes brasileiro muito bons, muitos filmes e muitos curtas surpreendentemente bons. Nós que dependemos de políticas públicas e estamos inseridos vemos como é surpreendente a quantidade de filmes que existem hoje no Brasil para serem lançados e são filmes ótimos, com muito talento e muita gente talentosa desde a direção, passando por atores e diretores de arte e fotografia. Um país de tamanho continental como Brasil tem uma produção muito rica e já sofremos bastante, porque o cinema sempre morre, se levanta e ressuscita, então acho que temos essas questões que o Jorge levantou de tentar fazer uma dramaturgia americana, mas tem uma brasilidade muito boa também.

Jorge Furtado - Se você pensar em filmes como Marte Um, A Febre e Noites Alienígenas, são coisas totalmente brasileiras. Esses filmes são muito brasileiros mas não tem espaço no cinema. Agora tem uma tentativa da indústria, especialmente nos streamings, de padronizar e ir para um outro tipo de coisa que não é exatamente o que funciona.

Ana Luiza - Para complementar eu acho que uma das diferenças nesses 35 anos de trajetória da Casa do Cinema de Porto Alegre é que hoje se faz cinema em todos os cantos do Brasil. No começo era uma decisão nossa fazer cinema no Rio Grande do Sul, fora do eixo Rio-São Paulo e não era uma coisa simples, mas hoje se faz audiovisual em todos os cantos do país. Desses filmes que o Jorge citou eu acho maravilhoso que Noites Alienígenas tem grande parte da equipe do Acre, então é muito legal ver um audiovisual realmente diverso e feito por pessoas de todos os lugares. São olhares distintos que não são estrangeiros, é um olhar de alguém do centro do país que vai filmar no Amazonas ou qualquer outro lugar com seu olhar. Existe um olhar de dentro e acho que isso faz muita diferença.

E diante de tudo que já conversamos, gostaria de saber como vocês descreveriam o atual momento da Casa de Cinema de Porto Alegre e quais são as perspectivas para o futuro?

Jorge Furtado - Neste momento estamos retomando, na verdade nunca paramos de fazer alguma produção ou algum filme, sempre continuamos mas o volume caiu muito nesses últimos três anos. Agora estamos retomando com vários projetos em andamento e voltando a fazer. Fazer cinema sempre foi difícil no Brasil e nunca foi moleza, mas antes só era possível no eixo Rio-São Paulo e depois isso foi se ampliando até que hoje é difícil em todos os lugares, é difícil de uma forma mais parelha. É difícil no Rio de Janeiro, é difícil em São Paulo também, mas o que o Brasil tem de melhor é sua diversidade e ela tem que estar representada nas telas de todas as maneiras. Pessoas de todas as cores, histórias de todas as pessoas, de todos os gêneros e de todos os lugares para todos os tipos de público porque quanto mais variado for o cinema brasileiro, melhor. Tinha uma época que eu chegava nas locadoras de vídeo e filme brasileiro não tinha gênero, era ficção, comédia, terror e brasileiro como se isso fosse um gênero. Agora "brasileiro" não é mais um gênero e não existe esse gênero cinema brasileiro, o que existem são vários cinemas brasileiros e isso é ótimo!

E as perspectivas para o futuro? Vocês enxergam uma possibilidade de melhora, até levando em conta as mudanças no governo, a retomada da Cota de Tela e os editais da Ancine? Como enxergam as perspectivas para o futuro?

Nora Goulart - As perspectivas são do Brasil inteiro e não só da Casa de Cinema de Porto Alegre. Acho que existem boas possibilidades de produções vindo por aí, então acredito que a partir do ano que vem a gente vai estar filmando nossos longas outra vez. Se tiver que fazer curta também faremos e se precisar fazer séries, faremos. Acho que vamos conseguir escolher os projetos com temas que a gente quer falar sobre e poder decidir sobre nossos próprios projetos. Acho que as perspectivas são boas e vejo que tem um trabalho sério acontecendo dentro do Ministério da Cultura para que essa retomada realmente leve a gente a conseguir trabalhar com mais regularidade.

Ana Luiza - Acho que também é importante como perspectiva que a gente volta a ter a Ancine trabalhando pelo audiovisual brasileiro e defendendo toda a sua cadeia e discutindo essa cadeia. Protegendo o produtor onde é necessário e o distribuidor também onde precisa e criando políticas conjuntamente para o desenvolvimento do audiovisual. A política pública é fundamental e ela tem que ser criada coletivamente, junto com toda a cadeia. Esse espaço é fundamental e acho que isso é o que mais muda nesse novo momento de governo e consequentemente de Ancine, MinC e da retomada de todo setor audiovisual.

Giba Assis - É importante também política pública para a regulação de streamings. Chegou a se discutir isso no governo Dilma e depois de tudo o que aconteceu no Brasil essa discussão ficou parada. Agora os streamings tomaram conta do mercado de uma forma absurda e a gente não tem nenhuma legislação e nenhuma política pública para lidar com isso. Existindo uma política pública a gente tem possibilidade de negociar, mas tendo essa política é a lei da selva e só o mais forte sobrevive. Quem não for o mais forte que se vire. O ideal seria que os streamings não produzissem e a gente deveria retomar aquele princípio que Hollywood tomou nos anos 1940 que era separar produção de exibição. Na televisão brasileira a gente nunca conseguiu fazer isso direito, mas a Ancine estava mais ou menos conseguindo fazer até que a televisão perdeu completamente o poder que foi parar nas mãos dos streamings. Isso que está acontecendo aqui está acontecendo em Hollywood também e não é à toa que estão em greve atualmente, é justamente por causa disso e por não ter essa separação histórica entre quem produz e quem exibe.

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