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Artigo / Audiovisual

10 Junho 2020

Nosso Renascimento

Uma crônica sobre as dores e as delícias de um roteirista em quarentena, e o olhar para a pandemia com óculos que enxergam a chegada de uma nova era

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É fácil acordar borocoxô. Estamos vivendo o mesmo dia, todo dia - algo desalentador. O café da manhã, antes um excelente motivo pra sair da cama, de repente virou teaser do tédio. Qualquer coisa que eu pretenda fazer pra tirar a nhaca da manhã (ovos com presunto, granola, feijoada) é também mais trabalho pra mim, que já acordo desanimado com a faxina inescapável. Ler o jornal ficou também triste, porque as manchetes não me parecem relevantes. O Brasil vive numa Twilight Zone onde o que importa são as tramas políticas, o twitter, o ódio - e não a Peste voltando depois de setecentos anos.

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Mas resisto. Nem abro o jornal e tomo meu café da manhã embaixo do sol, coisa que não faço em períodos de saúde impecável. Ponho pra ouvir Kind Of Blue, do Miles Davis. Não fosse o Miles, talvez já estivesse derrotado. Com ele no trumpete abafado, achei meu caminho para sair do buraco do Corona: decidi que ia aproveitar a quarentena para me tornar uma pessoa melhor.

Não é projeto impossível. Tenho aqui em casa cinco mil livros nunca lidos, entre outras cousas que sempre comprei esperando invernos como esse. Li duas peças do Edward Albee. Eu, como roteirista, não podia passar pela vida sem ter lido “Três Mulheres Altas”, por exemplo. Depois, fui ler a Olga Tokarczuk, que não conhecia. Adorei “Sobre os Ossos dos Mortos”. Corri pro “Marcas de Nascença”, do Arnon Grunenberg. Esquisitíssimo, recomendo. Passei por Joseph Conrad, autor do conto que originou “Apocalypse Now” – eu achei que tinha a ver. E agora estou lidando com a biografia do Michelângelo, de 700 páginas. É lindo, com todas as obras dele para consulta. Você lê sobre a Sibila de Cuma que ele pintou no teto da Sistina, corre pro final do livro e lá está ela, pra você ficar deslumbrado. É a mulher mais musculosa de toda obra do Miguelito, uma espécie de Ronda Rousey da renascença. Monique Gardenberg me contou que está assistindo os cem maiores filmes da história na Apple TV, como se fosse MBA. Monique é foda. Eu me contento em rever os episódios do “The Office”. Aprendo muito, também. Principalmente no que se refere à desenho de personagem.

Minha mulher está montando um quebra cabeça impossível: Guernica, do Picasso. Ela achou que tinha a ver. Três mil peças, todas da cor cinza. Tem cinza quase branco, cinza claro, cinza mais ou menos, cinza penumbra, cinza mais pro escuro e cinza tipo preto. A dúvida é o que termina primeiro; a quarentena ou o quebra cabeça? Depois de 75 dias em casa, vejo ainda muito Guernica pela frente. Vejo também o zap do Frank, gerente de uma loja de bebidas. Ele entrega aqui em casa.

E o trabalho está bombando, incrível. Isso sim. Roteirista já é home office por natureza, então minha vida não mudou muito. Mas, importante: home office é quando você opta por trabalhar em casa. Quando você é obrigado a isso tem outro nome: quarentena. Faz falta poder sair pra tomar um cafezinho. Faz mais falta ainda as outras pessoas da casa saírem para você trabalhar em paz. Estou um azougue no zoom, no meets, no hangout. Sei até compartilhar tela - outra conquista desse recesso. E sei da importância disso que estou fazendo. Roteirista é o primeiro a trabalhar de verdade num projeto. A gente entra pra parir a história  - e sai quando bate a primeira claquete. Então eu e meus colegas estamos tratando do que vai ser o cinema brasileiro, quando tudo voltar ao normal. Nossa segunda retomada. Vai passar. E quando passar, eu vou estar pronto. Saudável, respirando maravilhosamente, com todos os meus queridos ao redor. Mais lido, mais culto, mais paciente. Mais tolerante. Em resumo: eu e o cinema brasileiro vamos sair da quarentena melhores do que quando entramos. Será nosso renascimento. Seremos como Michelângelo, Leonardo e Rafael. Firenze é aqui em casa.

Lusa Silvestre
Lusa Silvestre

O roteirista Lusa Silvestre escreveu os longas “Estômago” (2007), “E Aí, Comeu?” (2012), “Muita Calma Nessa Hora 2” (2013), "Roubo da Taça (2016) e "Um Namorado para Minha Mulher (2016). Publicitário de formação, foi redator e diretor de criação da McCann no Brasil e em Los Angeles e redator senior da W/McCann em São Paulo. É parceiro do Estúdio Escarlate no roteiro dos projetos “Quem Matou Celso Daniel” e “ O sequestro do voo 375”.

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