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Artigo / Legislação

04 Junho 2020

A meia-entrada está em análise pela Ancine e seus efeitos em tempos de Covid-19

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A ANCINE abriu para consulta pública uma análise de impacto regulatório sobre a influência da obrigatoriedade legal da meia-entrada sobre o mercado brasileiro. A agência identifica como problemas várias leis que concedem esse benefício para estudantes, idosos e outros beneficiários, em todos os níveis legislativos, seja federal, estadual e municipal.

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O documento constata o que o setor já conhecia, ou seja, todos os 26 (vinte e seis) estados e o Distrito Federal possuem alguma legislação de concessão do benefício da meia-entrada. 

Inicialmente vale notar que o assunto aqui não é exatamente uma questão regulatória, mas sim um emaranhado de leis que interferem nas atividades culturais, cinemas incluídos.  É bastante interessante os quadros estatísticos e informativos sobre a evolução da incidência da meia entrada nas bilheterias.

A ANCINE conclui que meia-entrada é uma política pública custeada por subsídios cruzados, pelos pagantes de ingresso inteiro e pelos exibidores. A distribuição destes custos depende de como os consumidores reagem a variações no preço do ingresso inteiro.

Fica evidente que, como se diz, não existe “almoço grátis” e a conta sempre chega, causando um efeito perverso na formação de público que é o preço do entretenimento de público é mais caro do que realmente custa, porque a incidência da inteira vem reduzindo ano a ano. Diz a ANCINE que na situação atual, na qual 80% dos ingressos são comercializados com desconto, o efeito prático da livre ação do exibidor sobre os preços é a neutralização de boa parte dos efeitos da política de meia-entrada. O preço-alvo do exibidor passa a um valor próximo à meia-entrada, e o ingresso inteiro se torna apenas uma referência, aplicável àquela parcela da população que não acessa nenhuma das hipóteses de desconto legal ou promocional.

Em que pese o acadêmico esforço da ANCINE em desenhar o contorno da situação da meia-entrada nos cinemas, parte, a nosso ver, de três premissas que discordo: diz que  na forma como esta regulação foi desenhada, com garantia de desconto para parte da população, mas com a manutenção da liberdade de preços, é necessário que o público-alvo da política represente uma proporção menor da demanda da firma.  Apenas assim teríamos a possiblidade de concessão de desconto real para o público-alvo.

A primeira delas é que as leis de meia entrada são uma regulação. Não são. Na verdade, são idiossincrasias do sistema jurídico brasileiro, feitas e forma caótica e replicada, no mais antigo modelo de “fazer cortesia com o chapéu alheio”.

A segunda é que essa “política” foi desenhada. Também não foi, ela é fruto de um processo de “copia e cola” entre estados e municípios do pais (sem mencionar, meia entrada para doador de sangue; para professor municipal, professor estadual, diretor de escola, para jovens, para inscritos no cadastro único, cursos de pós-graduação, cursos técnicos, cursos de idiomas, policiais,  e até mesmo gratuidade para idosos em alguns municípios). Não houve desenho lógico estruturado e não há concatenação sistemática entre essas leis todas.

E, a terceira, é de que deve haver uma lei e um público alvo beneficiário.

A atividade de exibição é uma atividade privada como outra qualquer. As razões desse “benefício” que evidentemente somente pode ser suportado por “subsídios cruzados” dos que não tem o “benefício” não mais se justificam. O ideal é que a meia entrada fosse para todos, ou seja, que o mercado regulasse os preços reais e não tivesse que fixar preços com base em cálculos atuariais, trazendo mais público para os cinemas, teatros e shows. Não existe meia para livros, para assinatura de televisão, para assinatura de plataformas de VOD, para locação de filmes, para acesso a internet ou meio preço de remédio para doentes, idosos, pessoas com deficiência em farmácia ou ainda meio preço de alimentos em supermercados para pessoas do cadastro único.

A conclusão da ANCINE identificou como problema regulatório a ser trabalhado a partir da análise acima que, no âmbito das salas de cinema do país, a aplicação a política de “meia-entrada” federal, em seus termos atuais, resulta em distorções que mitigam sua eficácia plena no que tange a proporcionar, de forma progressiva, uma maior igualdade no acesso a recursos culturais como forma de inclusão social e desenvolvimento econômico.

A partir dessa avaliação a AIR apresenta possibilidades de atuação a partir de três ações: a manutenção da política atual, a adaptação da política diante dos fatos observados na análise encontradas e a extinção da política como um todo como forma de correção dessas distorções.

Ocorre que não se trata de um problema regulatório, pois não há competência da ANCINE sobre a matéria, talvez infelizmente, pois quem sabe fosse melhor somente um agente tratando do assunto do que milhares de Municípios e dezenas de Estados, mais a União.

É certo, todavia, que a conclusão é correta quando afirma que as distorções resultantes dessa interferência caótica são prejudiciais à incentivar o acesso a pessoas de menor renda e que não conseguem se incluir entre os beneficiários dos privilégios de descontos concedidos pelas leis. E também pode estar vislumbrando o correto que seria eliminar essas políticas de privilégios legais como forma de corrigir uma distorção histórica.

Contudo a ANCINE teria que encontrar a fórmula mágica para: (i) revogar todas as leis federais, estaduais e municipais; (ii) impedir que esses entes no futuro legislassem sobre a matéria. Nesse viés o estudo da ANCINE assume que haveria concorrência de competência entre União, Estados e Municípios para legislar sobre a matéria, com base no art. 24 da Constituição Federal  porque “a matéria relativa à meia-entrada é matéria que diz respeito à direito econômico”. Isso não é totalmente correto, porque legislar sobre direito econômico não autoriza a intervenção em política de preços de agentes privados, todavia há precedente na AID 1950-SP admitindo essa interpretação, com voto vencido.

Também é questionável  dizer que os municípios teriam competência concorrente para editar normas sobre a matéria com base no art. 30 da Constituição que fala que eles podem legislar sobre matérias de interesse local e de suplementação de legislação federal.  Primeiro porque meia-entrada não seria um assunto de interesse local e segundo porque essa competência concorrente é suplementar, ou seja, adicionar algo a uma lei que já exista. Todavia, vários municípios fazem leis originárias, concedendo meia entrada para professores da escola municipal e até mesmo gratuidade para idosos.

Há ainda que se observar  exercício e desenvolvimento de atividade normativa a Constituição Federal efetuou a repartição de competências entre a União, os Estados e os Municípios. Assim, a Constituição Federal adota um sistema que busca realizar o equilíbrio federativo, por meio de uma repartição de competências que se fundamenta na técnica de enumeração de poderes da União (art. 21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1o.) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (art. 30).  É no Capítulo da Comunicação Social que a Constituição estabelece reserva de competência legislativa dizendo que:  “Compete à lei federal (...) regular as diversões e espetáculos públicos(...)”.  

A atividade de exibição de obras audiovisuais cinematográficas em salas de espetáculos públicos ou diversões (cinema) é uma atividade voltada ao lazer, e, portanto, ligada ao artigo 6º e ao artigo 170 da Constituição, este último que cuida da liberdade no exercício da atividade econômica.  A questão de espetáculos públicos se traduz em assunto eminentemente nacional, que atinge igualmente a todas as empresas exibidoras e todos os cidadãos, não havendo como permitir que se regule fragmentariamente, segundo conveniências regionais ou particulares de um determinado Município ou Estado.

O espaço de possibilidade de regramento pela legislação estadual, em casos de competência concorrente abre-se: (1) toda vez que não haja legislação federal, quando então, mesmo sobre princípios gerais, poderá a legislação estadual dispor; e (2) quando, existente legislação federal que fixe os princípios gerais, caiba complementação ou suplementação para o preenchimento de lacunas, para aquilo que não corresponda à generalidade; ou ainda, para a definição de peculiaridades regionais, decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADI-MC 2396-MS Tribunal Pleno. 20/09/2001. Rel Ellen Gracie). E, em outro precedente, também decidiu que: “Não se compreende, no rol de competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ut art. 23 da CF, a matéria concernente à disciplina de "diversões e espetáculos públicos", que, a teor do art. 220, § 3º, I, do Diploma Maior, compete à lei federal regular, estipulando-se, na mesma norma, que "caberá ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada". (...) Ao Município fica reservada a competência, ut art. 30, I, da Lei Maior, para exercer poder de polícia quanto às diversões públicas, no que concerne à localização e autorização de funcionamento de estabelecimentos que se destinem a esse fim. [RE 169.247, rel. min. Néri da Silveira, j. 8-4-2002, 2ª T, DJ de 1-8-2003.].

Assim ao que nos parece, os esforços elogiáveis da ANCINE em analisar a matéria – que não é regulatória, passam por enfrentar o real desafio que seria varrer do mundo jurídico as inúmeras leis municipais e estaduais, de um lado e de outro resolver como tratar o assunto no âmbito federal, exclusivamente. E, federalizada a questão, avaliar: (i) se realmente ela é uma política que faz sentido; (ii) se é uma intervenção na atividade privada admissível, ou resultado de hermenêutica constitucional de um antigo julgamento do Supremo Tribunal Federal (ADI 1950-SP), que considerou constitucional uma lei paulista de meia entrada (Lei 7844/1992), com a discordância do Ministro Marco Aurélio que dizia ser inconstitucional essa intervenção na atividade sem a contrapartida ao exibidor, paga pelo Estado, pois “esse ônus acaba sendo suportado, ante a transferência, pela sociedade, tendo em conta a majoração da entrada para aqueles que não gozam do benefício, mediante uma norma, repito não razoável, porque nela não se contem a contrapartida, ou seja, uma compensação, havendo uma desvantagem significativa, da perda por aqueles que se lançam no mercado, na vida comercial, e precisam fugir à morte nessa mesma vida comercial, que é a falência”.

Resolver essa questão no Supremo Tribunal Federal é essencial para se evoluir no assunto.

Para piorar, em tempos de tentativa de retomada dos espetáculos públicos devido à Covid19 onde se prenuncia restrições de número de público nas salas de cinema, a meia entrada pode ser o fator determinante para inviabilizar economicamente a reabertura das salas com lotação parcial. Nesse momento seria essencial se fazer promoções para atrair público e a meia entrada é um entrave na precificação.

Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli
Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli | marcos.bitelli@bitelli.com.br

Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP Especialista em Direito do Entretenimento, Audiovisual, Propriedade Intelectual, Comunicações e Telecomunicações Sócio de Bitelli Advogados

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