03 Junho 2020
Casulos, história do cinema e sentido de coletividade em meio à covid-19
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Em um texto publicado em 1975 pela revista Communications, numa edição chamada Cinema E Psicanálise, parcialmente reproduzida no Brasil, cinco anos depois, pela Global Editora como livro homônimo, Roland Barthes comentou que, toda vez que falava sobre cinema, sentia-se impelido a pensar mais em sala do que em filme. No artigo Saindo Do Cinema, o escritor francês comparou a sala de exibição a um local de disponibilidade e liberdade do corpo, onde o espectador, como um bicho-da-seda num casulo, pode trabalhar o brilho em todo o seu desejo.
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O escuro-iluminado da sala de cinema é, de fato, um lugar de gestações e tessituras encravado no seio das cidades. Emoções, identificações, pensamentos, sonhos, encontros... Tudo isso é capaz de ser engendrado durante as poucas horas em que anônimos compartilham esse espaço, envolvendo-se na ambiência formada por imagens em movimento, luzes, sons, cheiros e narrativas. Somando aqui o hall, as filas e a bomboniere, não é difícil associar esse cenário a palavras como proximidade, troca e contato. Seguindo esse mesmo raciocínio, hoje, infelizmente assolados pela covid-19 desde o início de 2020, constatamos a urgência de mais atenção e responsabilidade com, justamente, o que há de mais precioso nos cinemas. Do lado de fora de nossas casas, é na sala de exibição que exercitamos, coletivamente e de corpo presente, um papel que, a despeito de tantas transformações no audiovisual e nas cidades, nunca desapareceu: o de membro efetivo das plateias de sessões cinematográficas.
Neste instante, as nossas práticas de ida ao cinema estão suspensas em boa parte do mundo, exceto por conta de iniciativas que revisitam o formato drive-in ou que trazem para o âmbito da exibição tradicional práticas comuns ao streaming e ao on-demand, como, por exemplo, a programação de sessões virtuais e a liberação para o público de títulos em plataformas on-line. Há companhias de exibição que, inclusive, apostam no delivery de itens de bomboniere em parceria com aplicativos como Rappi e iFood. Pipoca e outras guloseimas são entregues em domicílio para aplacar a saudade dos crocs-crocs, sabores e cheiros consumidos, nem sempre de forma educada, no escurinho do cinema.
Notícias sobre o planejamento, para junho, de uma moderada reabertura de salas em alguns países europeus – os quais, há de se frisar, já vivenciaram as fases mais tensas de contaminação e óbitos pela ação do vírus – deixam clara a dinâmica de cautela e restrições que deve ser adotada para a retomada das sessões. No entanto, apesar de todos os esforços e mecanismos para a alavancagem socialmente responsável do setor, nada é garantido diante da enigmática covid-19.
As autoridades sanitárias, lúcidas, devem ser os únicos faróis. Seguir as recomendações da ciência é o melhor caminho para que os cinemas não sirvam como focos de transmissão do coronavírus e casulos perfeitos para a morte e o luto, o que contraria a definição auspiciosa das salas como propulsoras da potência de vida dos espectadores. O momento é trágico, mas devemos enfrentá-lo de modo dialogado, propositivo e colaborativo. Ainda não é hora de reabrir cinemas no Brasil, em nenhuma cidade.
Recorrer à história do cinema para aprender com os episódios que a marcaram na época da gripe espanhola, por exemplo, é uma alternativa interessante, inteligente e cidadã, por mais que hoje vivamos outras conjunturas e infraestruturas sanitárias, urbanas, tecnológicas e culturais. Tomemos o caso dos EUA. Cinemas que se recusaram a interromper as atividades ou precipitadamente as retomaram no meio da “mãe das pandemias mortais”, mesmo com uma acirrada fiscalização estatal e algumas prisões de exibidores pela polícia, amargaram, em várias cidades americanas, o ônus histórico da contribuição para o avanço da Influenza entre 1918 e 1919. Nos Estados Unidos, a Gripe Espanhola causou a morte de cerca de 675 mil pessoas, entre elas, o jovem e promissor nome da exibição, Harold Edel, com 29 anos, que insistiu na manutenção das operações do cinema que gerenciava, o Strand Theater, localizado na esquina da Broadway com a rua 47, na Time Square, Nova York.
No auge da Gripe Espanhola, em outubro de 1918, Edel assegurou a estreia de Ombros, Armas! (Shoulder Arms), de Charles Chaplin, alcançando uma animadora bilheteria. Diante dos resultados, ele chegou, inclusive, a encorajar o público, via imprensa, literalmente parabenizando os espectadores que confiavam as próprias vidas às sessões. Pouco tempo depois, o rapaz faleceu em decorrência de um repentino agravamento da gripe. O fato, que chocou a Broadway, é relatado em jornais da época e no livro “Influenza: the hundred-year hunt to cure the 1918 Spanish Flu Pandemic”, lançado em 2018 pelo médico Jeremy Brown.
O mais curioso é imaginar que Edel, anos antes, havia elaborado um projeto de cinema associado a uma pista de dança, onde os espectadores teriam a chance de dançar enquanto viam filmes. Esse traço criativo é citado pela pesquisadora Kristina Köhler em um dos capítulos do livro Performing New Media: 1890-1915. Outra curiosidade se liga a informações publicadas pelo crítico Eduardo Escorel na Revista Piauí, em 7 de dezembro de 2017. Em junho de 1918, mesmo ano de sua morte, Edel programou o filme Os Sertões, dirigido pelo tenente Luiz Thomas Reis, no Strand Theater, garantindo a breve passagem do filme brasileiro pelos Estados Unidos, mediante imposições de corte de cenas por ele consideradas desinteressantes. Infelizmente, esse talento empreendedor foi interrompido quando o jovem manager subestimou a Gripe Espanhola, tal qual tantos outros nomes em ascensão na indústria cinematográfica da época.
Atualmente, para além de todas as angústias que a covid-19 nos impõe, as essenciais medidas de isolamento social interrompem o que antes ia tanto do banal ao mais memorável em nossas práticas de sociabilidade, ocupação urbana, mobilidades, atividades de negócios e consumo. A interdição da possibilidade de qualquer aglomeração pública, e privada, atingiu em cheio o equipamento de exibição naquilo que marca a sua razão de ser: a promoção de um espaço coletivo, cujos cernes são fruição fílmica e a partilha de emoções, experiências culturais, sonhos e territórios afetivo-existenciais entre pessoas que se desconhecem.
A noção de coletivo sempre foi uma característica intrínseca aos cinemas, sejam eles de rua, de shopping ou de galeria. Talvez, agora seja preciso apostar nessa ideia para, num futuro contexto pós-pandemia, retomarmos o setor exibidor e fortalecê-lo diante da crise que se anuncia, mas não sem antes assumirmos o sentido de coletivo como a principal régua e eixo de ponderação sobre os atropelos, egoísmos e miopias que geralmente espreitam o mercado e as políticas ligadas ao universo da exibição.
Coletivo pode igualmente ser lido aqui como diálogo em prol da democratização do acesso às telas, e aos filmes brasileiros, e da previsão de que a vida em sociedade exige de nós responsabilidade, generosidade, empatia e cuidado com os demais. Se, como disse Barthes, a sala de cinema é um casulo, que, então, nós, profissionais ligados ao enorme setor cinematográfico, saibamos tecer colaborativamente sedas de fato resistentes ao longo dessa pupa tão diferente de tudo o que já vimos. É mais do que necessário ter em mente que a metamorfose, já iniciada, será dolorosa para todos, sobretudo para os menos robustos com quem dividimos a presença nos assentos diante das telas.
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