30 Abril 2020
O audiovisual e a pandemia de coronavírus: novos formatos, velhos padrões?
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A covid-19 trouxe novos desafios, angústias e preocupações para a indústria do cinema. A realidade de um mundo em quarentena, com bilhões de pessoas amedrontadas, poderia ser exibida como ficção científica, com pitadas de terror. O distanciamento social, as tentativas de salvar vidas, afetaram intensamente o setor, incluindo toda a sua cadeia produtiva. Hoje as dúvidas predominam sobre as certezas.
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O isolamento social interrompeu a operação de salas de cinemas comerciais, adiou lançamentos de majors e independentes, cancelou festivais renomados, interrompeu ou cancelou produções de cinema, telenovelas e conteúdos para streaming. Contraditoriamente, nunca se consumiu tanto conteúdo audiovisual como nesses tempos de isolamento social. São filmes, séries, programas de TV, lives, aulas online, vídeos de youtube e tantos outros formatos que invadem nosso cotidiano enquanto permanecemos em casa.
A idealizada experiência coletiva do cinema, espaço próprio de encontro e de reunião, tornou-se um perigo. Grupos exibidores grandes e pequenos são os primeiros afetados da cadeia. Alguns executivos já anunciaram a necessidade de realizar demissões e outros têm dúvidas se conseguirão reabrir as portas. Da mesma forma, os distribuidores majors e independentes estão com seus filmes parados, sem previsão de lançamento. Adiar um blockbuster de lançamento mundial envolve custos internacionais significativos para os grandes estúdios. Da mesma forma, um filme considerado “de nicho”, distribuído por uma companhia nacional, pode ter espaço reduzido nas salas de cinema comercial frente ao acúmulo de tantos títulos adiados. Somado a isso, a comercialização de obras de perfil mais autoral será restringida em função da não exibição em eventos e festivais nacionais e internacionais. Portanto, grandes e pequenos perdem dentro do modelo clássico da indústria do cinema.
Agentes do setor demandam uma ação clara e firme de nossa agência reguladora, a Ancine, via Fundo Setorial do Audiovisual. O Fundo, principal fonte de financiamento do setor no Brasil, conta hoje com um volumoso recurso que é proveniente da própria atividade. Empresas brasileiras, que já vinham sofrendo com a paralisação e o desgaste institucional da Ancine no último ano, ficaram de braços atados com a pandemia.
Mais do que flexibilização de prazos e medidas regulatórias, as diversas instituições do setor reivindicam ainda ações efetivas para evitar o desemprego em massa, o fechamento de produtoras, distribuidoras, finalizadoras, exibidoras e todas aquelas empresas que prestam serviço para as atividades do audiovisual. O desmonte de companhias pode levar a uma asfixia do setor difícil de ser recuperada no curto prazo.
É imprescindível também jogar luzes sobre lacunas regulatórias. Enquanto o modelo clássico industrial sofre graves perdas, os serviços de streaming podem ter se tornado os maiores beneficiários do isolamento social. Ainda sem regulação no Brasil, o vídeo sob demanda pode ter crescido em número de assinantes e, dessa forma, aumentado suas receitas. Portanto, se alguém está ganhando, não são as empresas brasileiras, uma vez que a grande maioria dos serviços de streaming é estrangeiro (com exceção da GlobloPlay).
Subjacente à alteração na dinâmica de padrões produtivos consolidados no setor, novos formatos ganham força neste momento. Aulas, shows, tutoriais, debates e até mesmo festas passam ser frequentes via lives, Youtube, IGTV e aplicativos específicos para serem consumidos virtualmente. E o acesso a links gratuitos de filmes nacionais e internacionais rompeu fronteiras de exibição. A produtora Casa de Cinema, de Porto Alegre, e a distribuidora Embaúba Filmes, por exemplo, liberaram gratuitamente uma série de conteúdos audiovisuais, gerando novas relações de consumo com o produto nacional.
E quando a pandemia de covid-19 passar, o que será da indústria audiovisual? É plausível supor que haverá continuidades e rupturas simbólicas e econômicas, como em todo o processo histórico. Quando o isolamento social for suspenso, um novo desafio será imposto. De um lado, a abertura social deve acontecer de forma controlada, levando a um retorno gradual e cuidadoso dos espectadores às salas de cinema. Por outro lado, a crise econômica, que se aprofunda em níveis preocupantes no país, deve gerar uma diminuição da bilheteria e um aumento da elitização da frequência aos cinemas.
As distribuidoras independentes terão que disputar espaço de programação das salas de cinema em um cenário de excesso de lançamentos das majors e sem o aval de prestígio dos grandes festivais internacionais. As produtoras, por sua vez, deverão repensar suas produções tanto em termos econômicos quanto simbólicos. O que será produzido pós-pandemia? As obras que estavam em pré-produção ainda farão sentido?
Mas há um ponto que requer atenção, extremamente importante para que não misturemos realidade com ficção: diante do excesso de imagem e do consumo cada vez mais doméstico no mundo contemporâneo, sem a regulação do vídeo sob demanda no Brasil pouco poderemos avançar. Temos que nos perguntar: a quem interessa esse vácuo que estamos abrindo no nosso país? Estamos num processo de desestruturação de toda a cadeia produtiva que incide sobre o produto independente nacional, sobre nossa propriedade intelectual e sobre o que vamos consumir como imaginário em um mundo cada vez mais global. Isso interessa a alguém, mas não a realidade de um país que tem muito a avançar.
A pandemia explicitou a fragilidade da humanidade e assim facilita distinguir ficções, falsas premissas, entre as quais as vantagens de uma integração acrítica e subordinada a países mais afluentes. As medidas para o enfrentamento da pandemia e os casos de covid-19 registrados em cada país estão redesenhando um mundo no qual o comum e o singular são igualmente relevantes. É impossível prever o que acontecerá. Entretanto é inegável a carga de solidariedade subjacente ao isolamento social. A experiência de estarmos atentos uns aos outros e a possibilidade de discernir e equacionar alternativas para conectar a cadeia do audiovisual com um país real permite questionar, romper velhos padrões.
Lia Bahia
Doutora e mestre em comunicação social pela Universidade Federal Fluminense, com pesquisas sobre política, gestão, cultura e economia do cinema e televisão, Lia Bahia é professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM e da FGV. Ganhou Prêmio do Rumos Itaú Cultural de pesquisa concluída com sua dissertação “Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro”. Trabalhou em diversos órgãos públicos como Ancine, RioFilme e Secretaria de Estado de Cultura onde desenvolveu e implementou programas de fomento, formação e difusão.
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