21 Abril 2020
Instinto Selvagem
Compartilhe:
“...Sim, a tempestade irá passar, a humanidade irá sobreviver, a maioria de nós estará viva - mas habitaremos um mundo diferente”. Yuval Noah Harari
Publicidade fechar X
A velocidade com que a história está acontecendo e a sua estranheza nos surpreende e descoloca diariamente. Sabemos que estamos atravessando uma crise sem precedentes, e não é só pela eficácia intrínseca deste vírus em se propagar. O nosso desenvolvimento tecnológico, nossa mobilidade, concentração urbana, os mesmos fatores que alavancam nossa indústria audiovisual, facilita também o contágio. E não deixa de ser uma trágica ironia que a enorme capacidade de comunicação e informação instantânea, nos inunde de notícias falsas e abra a porta para uma feroz e incivilizada campanha anticiência. As ferramentas são sempre armas de dois gumes. E ante tanta incerteza, é inevitável o desejo de antever o futuro, enxergar alguma coisa que permita fazer melhores escolhas. Se a vida de profeta sempre foi difícil, agora está pior. Mas algumas coisas sabemos. Mirar a história e entender melhor o que somos pode dar algumas pautas do que pode vir.
O cinema já atravessou várias crises. Na Gripe Espanhola, de 1918 a 1919, o fechamento de eventos públicos e dos cinemas aconteceu, mas em forma parcial e localizada. Assim que a epidemia regrediu, os cinemas abriram na sua totalidade, e o público retornou em forma maciça. Claro que era uma realidade bem diferente da de hoje, onde o cinema era a única arte audiovisual disponível. E foi imprescindível, não só pela necessidade de distração, a de alienar-se da realidade angustiante. Na recessão dos anos 30 e as épocas terríveis da Segunda Guerra Mundial, os cinemas serviram também para difundir propaganda oficial ou a informação sobre a guerra. Assim que esta acabou, a televisão comercial chegou a milhões de lares nos Estados Unidos e em 1950, só cinco anos depois do seu lançamento, veio a segunda crise da nossa indústria. Ao ponto que o legendário produtor David O. Selznick disse em 1951 que “Hollywood é como Egito, cheio de pirâmides em ruinas. Nunca retornará”. Errou feio. O cinema se reinventou e em grande estilo, colorido, com telas grandes e som multicanal. E veio um terceiro tsunami nos anos 80. As fitas Beta Max e VHS. Lançada em 1976 e tremendamente popular, colocou o cinema em xeque novamente. Mas em pouco tempo os estúdios entenderam que isto podia ser um rabicho lucrativo depois do lançamento em cinemas. E ainda incrementaram a paixão do público de assistir os filmes novos, os dos seus diretores favoritos na telona. E não faz muito tempo, o crescimento da largura de banda disponível em casa e até na mão, abriu a possibilidade do streaming. Que hoje ajuda a transitar o confinamento. Mas porque a sala de cinema sobreviveu a tantos finais do mundo?
Em parte, porque é uma experiencia única, ao mesmo tempo individual e coletiva, a de estar numa sala escura junto a outros, numa atmosfera carregada de drama ou adrenalina, onde essa sensação se realimenta entre todos. Há algo de essencial e primordial no ato de se reunir com outros numa sala escura para ouvir uma história, de assistir um grande filme. Sim, existe mesmo uma magia nesse ato de sair de casa, o ritual de sentar-se junto aos outros, de aguardar as luzes diminuírem e se entregar a esse jogo de faz de conta que se estabelece entre o diretor e espectador. A tela grande tem definitivamente um fascínio. O envolvimento na história contada não pode ser experimentado da mesma maneira na telinha de um celular quando viajamos no metrô, ou mesmo na super TV de casa. E essa mesma experiência limitada valoriza mais a exibição na tela grande.
Sabemos que iremos atravessar um longo tempo de salas necessariamente fechadas. Serão tempos duros, inevitavelmente o barco irá perder mastros e a gávea. Mas acontece que depois de meses trancados em casa, assistindo filmes no computador ou na TV, quando o bom senso indicar que o confinamento pode diminuir, a primeira coisa que a maioria vai querer fazer é sair. Repetir as experiências dos velhos e bons tempos. Como contar e ouvir histórias, porque adoramos.
O cinema sobreviverá a este final do mundo também. Citando novamente a Harari, “... habitaremos sim, um mundo diferente. Mas continuaremos sendo animais sociais. E agora é preciso manter esse isolamento social e ser inteligente e agir com a cabeça, e não apenas com o coração..., mas é muito difícil para nós, como animais sociais. Acredito que quando a crise acabar, as pessoas sentirão ainda mais a necessidade de estabelecer vínculos sociais. Não creio que possa haver uma mudança fundamental na natureza humana”.
Carlos Klachquin | CBK@dolby.com
Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.
Compartilhe: