13 Março 2020
Representatividade em filmes históricos
Os protagonistas brancos em filmes antirracistas
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Filmes históricos são a versão contemporânea de uma prática milenar: contar histórias ambientadas no passado. Podemos recuperar parte dessa tradição com Homero e seus versos a respeito da guerra de Tróia, passando pelas pinturas em cavernas da arte cristã primitiva, as peças de Shakespeare, os romances de Cervantes e José de Alencar até, finalmente, o cinema de Steven Spielberg. Assim, as narrativas históricas se consolidaram como um dos gêneros mais celebrados da humanidade. Sua importância na constelação de narrativas ocorre, entre outras razões, por sua capacidade de dar um senso de coesão, identidade coletiva e autoestima para grupos sociais. As histórias ancestrais conectam a comunidade a um passado comum onde diferentes gerações reconhecem sua própria cultura, seus mitos e descobrem ídolos e referenciais para suas trajetórias. Pelo menos, é assim que essas histórias tocam alguns grupos, pois nem todos têm o privilégio de ter seu passado como ambiente narrativo.
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Por essa razão, a temática dos filmes históricos é um campo extremamente sensível quando tratamos da representatividade no audiovisual. Muitas minorias sociais tiveram seu papel na História apagado ou minimizado nessas narrativas, reduzindo a capacidade desses indivíduos se enxergarem como sujeitos da História.
Para citar alguns exemplos que ocuparam as telas de cinema nos últimos anos; é difícil medir o quão potente foi para algumas comunidades descobrirem que o matemático Alan Turing (1912 - 1954), o grande pioneiro da informática, era homossexual. Ou descobrirem o papel ativo e decisivo das mulheres para o fim da ditadura argentina, em especial de Estela de Carlotto, nascida em 1930 e fundadora do movimento Abuelas de Plaza de Mayo. Por fim, o quão estimulante deve ter sido para quase metade da população brasileira ver o mais celebrado escritor brasileiro, Machado de Assis (1839-1910), representado como um homem negro.
Contudo, apesar de um cuidado crescente com uma melhor representatividade em filmes históricos, alguns problemas persistem. Persistem mesmo entre os títulos que narram o passado de grupos sociais marginalizados. Isso porque o problema da memória social não está somente na invisibilidade desses rostos na História, mas do papel que exerceram nos eventos históricos.
Para demarcar essa diferença, comparamos dois longas-metragens no cinema de grande circulação - aquele com seus orçamentos generosos e com alcance de grandes públicos em diferentes países. Os dois títulos estão engajados e comprometidos com questões da população negra. Mas, em pelo menos um deles, é possível reconhecer o que se convencionou chamar popularmente de histórias do Branco Salvador.
Os contos do tipo Branco Salvador são uma espécie de vício narrativo recorrente em muitas histórias que almejam o rótulo de antirracistas. Não são exclusivas dos filmes históricos. Embora sejam filmes muitas vezes solidários às questões da população negra, seguem uma estrutura narrativa calcada na ideia de que essa mesma população não seria capaz de ser protagonista de sua própria história. Ela precisa ser salva por um herói estrangeiro. Um herói não negro. Um herói branco.
Pense em quantas histórias de luta contra o racismo (ficcionais e não-ficcionais) você não conhece que se utilizam desse expediente? Provavelmente, a maioria. O cinema de grande circulação está recheado de títulos com esse vício. Alguns desses filmes são belíssimos (é preciso admitir) e estão no imaginário de gerações de espectadores como referências de um cinema antirracista. E isso é um problema. Apesar de todas as qualidades estéticas e de seus louváveis engajamentos políticos, esses títulos acabam por reforçar um signo do racismo estrutural.
Um dos elementos desconcertantes nesse modelo de histórias é o protagonista-salvador. São heróis ou heroínas aparentemente imunes ao contexto de racialização, descritos muitas vezes como o branco de bom coração. Ingênuos a respeito das relações de poder que os cercam, eles são movidos por um sentimento humanista anacrônico e, não raro, estabelecem uma relação quase paternalista com os grupos que dão suporte. A jornada desses heróis não apenas nega a complexidade das relações raciais - como se bastasse ter bom senso e força de vontade para encarar o problema - como reforça um papel passivo da população negra frente as suas próprias questões.
Realizar críticas às narrativas do tipo Branco Salvador é sempre uma questão delicada. Envolve apontar falhas cometidas por autores e cineastas com evidente simpatia pelas causas de igualdade racial. E se trata de uma crítica sofisticada, somente possível em um momento em que já não precisamos apenas de filmes que tratem das questões e dilemas da população negra, mas de títulos que também reflitam a respeito de como esses problemas são apresentados e conduzidos. Assim, é preciso um olhar mais reticente sobre filmes como Histórias Cruzadas ou Green Book. Sobre esse último, o ator Mahershala Ali telefonou para a família do músico Don Shirley para se desculpar depois que essa se manifestou: "Que tipo de relacionamento ele tinha com o Tony? Ele demitiu Tony, o que é consistente com muitas das demissões dos motoristas ao longo dos anos".
As narrativas do tipo Branco Salvador são particularmente interessantes de serem observadas em filmes históricos. Primeiro porque alguns realizadores acreditam encontrar neles um refúgio seguro contra essas críticas já que apostaram em personagens e eventos reais. "Não fui eu que decidi tirar o protagonismo deles, foi dessa forma que aconteceu" ou "quem assinou o papel foi ela. O que vocês queriam? Que eu inventasse que foram outras pessoas?" Frases ditas por alguns cineastas para justificarem suas escolhas estéticas e narrativas em alguns de seus filmes. Outro ponto de interesse sobre esse cinema é que, apesar de comporem um hall de filmes antirracistas no senso comum, eles refletem mais uma memória branca da desigualdade racial do que uma memória negra.
Por isso, escolhemos dois filmes sobre emancipação da população negra nos Estados Unidos para discutir. Os dois com um olhar celebrativo sobre esses eventos. Duas histórias baseadas em eventos reais, cujos protagonistas são personagens históricos. Em ambos os casos, a figura do presidente da República é central no desenvolvimento dos eventos e está retratado no filme entre os personagens de maior tempo de tela. Dois filmes de grande circulação, sucessos de público e premiados. Mas bem diferente em alguns cuidados.
O filme Lincoln, dirigido por Steven Spielberg, trata dos momentos finais da guerra civil nos Estados Unidos (1861-1865) quando já estava evidente a derrota do exército confederado. Baseado na parte final do livro “Team of Rivals”, de Doris Goodwin, a narrativa se concentra na atuação do presidente Abraham Lincoln em postergar propositalmente o final da guerra para acumular capital político para garantir a aprovação da 13.ª emenda constitucional - que acabaria com a prática de escravidão legal no país.
Em quase três horas de duração, o fim da escravidão foi apresentado como um árduo processo político-burocrático, realizado em uma arena etnicamente restrita a população branca em meados do século XIX. Nesse cenário, a liderança de um homem com notável senso de humanidade e capacidade estratégica foi fundamental para que os Estados Unidos avançassem essa barreira civilizatória. Um branco salvador.
A população negra é o grande debate do filme. É sobre eles que o filme trata. Mas onde eles estão ao longo da história? A verdade é que existem poucos personagens negros em Lincoln. Na sequência em que aparecem em maior quantidade, estão na galeria do congresso, torcendo pelo resultado da votação da emenda.
Dois anos depois do lançamento de Lincoln, a diretora afro-americana Ava DuVernay dirigiu Selma. Esse filme trata de manifestações públicas no estado do Alabama no ano de 1965 pelo direito a voto da população negra. Cem anos após os acontecimentos retratados no filme de Spielberg, persistiam uma série de restrições no estado sulista que tornavam praticamente impossível o registro de eleitores negros. Sua trama se foca na atuação do pastor e ativista político Martin Luther King, a época já uma celebridade e vencedor do Nobel da Paz, na condução das marchas.
Mais do que se concentrar na edificação de uma personalidade icônica, DuVernay se ateve em descrever os entrelaçamentos entre opressão da população negra, o peso da vida pessoal dos seus líderes, micropolíticas e macropolíticas. Na narrativa da diretora, o direito ao voto foi conquistado nas ruas, em três marchas entre as cidades de Selma e Montgomery. E mesmo as ações macropolíticas tiveram como protagonista a figura de Martin Luther King e suas incansáveis negociações - as vezes duras - com o presidente Lyndon Johnson.
Lyndon Johnson, aliás, é um personagem recorrente e importante no filme. Tacitamente, ele realiza o mesmo papel de Lincoln no filme de Spielberg - usa de seu poder para pressionar políticos a aprovar uma reforma legislativa que parecia em inconformidade com os valores da época. Mas sob o olhar da diretora, não é possível chamá-lo de condutor ou protagonista do processo. É um político pressionado que hesita várias vezes em aderir a agenda de Martin Luther King pela possibilidade de perda de capital político.
As diferenças entre essas duas obras mostram um olhar atento às estruturas narrativas do chamado protagonista Branco Salvador. A população negra nutre expectativa de assistir nos filmes históricos narrativas que tratam do papel decisivo de seus ancestrais nas conquistas de seu próprio grupo. O acúmulo dessas histórias ao longo de décadas e séculos é determinante na forma como construímos nossa memória histórica.
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