Exibidor

Publicidade

Artigo / Inteligência Artificial

03 Março 2020

As fronteiras da inteligência artificial na criação dos filmes

Compartilhe:

Quando, em 1997, o Deep Blue da IBM derrotou o Kasparov no xadrez, absolutamente ninguém pensou que uma super tecnologia também poderia escrever um roteiro. 

Publicidade fechar X

Ritmo, temporalidade, verossimilhança e diálogos que funcionem são fruto de estofo, pesquisa, técnica e, claro, inspiração.    A estrutura narrativa de um roteiro, contudo,  não é oriunda unicamente da inspiração humana. Ela exige o domínio de regras e a capacidade de quebrá-las, orientadas, principalmente, pelas escolhas dos personagens. 

Uma das maiores polêmicas recentes (e já datadas) tem sido os softwares que escrevem roteiros. “Sunspring” é um curta de ficção científica de 2016 sobre três pessoas dentro de uma espécie de estação espacial vivendo um possível triângulo amoroso. Um filme B escrito inteiramente por inteligência artificial. Essa rede neural de programação se denominou “Benjamin”. O diretor Oscar Sharp queria fazer o filme para o Sci-Fi London, festival britânico. Enquanto o elenco se reunia em torno de uma pequena impressora, “Benjamin” cuspiu o roteiro, um conto de romance e assassinato ambientado em um futuro sombrio. Ele ainda compôs a música do filme depois de aprender analisando 30.000 outras canções do universo pop. A única coisa que “Benjamin” não conseguiu foi aprender nomes próprios, porque estes não são usados ​​como outras palavras, por isso se tornam muito imprevisíveis, mas ele aprendeu sobre padrões na narrativa de ficção científica, e isso é o mais importante, ela é baseada no que os humanos escrevem. “Benjamin” só cria roteiros com base no que as outras pessoas escreveram, então, por definição, não é realmente autêntico. Ou é? 

A Inteligência Artificial existe desde a década de 1950, mas foi com o Big Data nos anos 2010 que ela se consolidou como um determinante do século XXI. Eu já disse por aqui que o termo "big data" se refere aos dados que estão por toda parte. Quando os dispositivos que usamos começaram a produzir dados massivos sobre nosso comportamento (e respostas) no contato e na produção de conteúdos isso provocou essa uma mudança de paradigma. 

Considere aí os dados gerados por serviços de geolocalização das fotos que você bate com seu celular, ou os históricos de seu navegador da web. O tempo que você passa em um filme no Netflix. Seus likes nas mídias sociais. A quantidade de vezes que você atrasa o pagamento da conta. O perfil das pessoas que você escolhe no Tinder. Seu condicionamento físico (se você usar algum gadget que afere isso). Tudo isso é Big Data. Nós não temos capacidade de colher dados tão aleatórios, transformar esses dados em informação em tabelas e cruzar esses dados gerando um conhecimento sem ajuda da inteligência artificial. A coleta e análise de grandes quantidades de informações digitais para produzir inteligência de negócios. As plataformas de streaming, por exemplo, colhem em tempo real. Armazenam, gerenciam e analisam seus dados. Isso lhes dá uma indiscutível vantagem comparativa no mercado de produção. As possibilidades e armadilhas são infinitas. Falaremos disso em um artigo específico mais para frente. 

Com base nisso, a chamada Business Intelligence está ajudando as Majors de Hollywood a melhorarem seus filmes e terem mais recursos na tomada de decisões em suas produções. Correção de cor, por exemplo, já conta com ajuda da IA. A distribuição certamente é a primeira a ser impactada, com possibilidades reais de melhora nos resultados de bilheteria. Mas existem hoje, muitos, mas muitos softwares de análise de roteiros, identificando possíveis problemas com base na análise de bilhões de dados, como resultados de bilheteria, cast and crew, e claro milhares de outros roteiros. 

 Recentemente li em um artigo do Los Angeles Times que o Entertainment Technology Center, em Los Angeles, apresentou uma análise mostrando que filmes que começam com sequências de ação, como o assalto em " Batman - O Cavaleiro das Trevas” (2008), ou a batalha em "Como Treinar o Seu Dragão", de 2010, tiveram desempenho 13 vezes melhor nas bilheterias do que todos os filmes similares que que começaram com sequências mostrando o passado de um personagem. Já a Fox em parceria com o Google Cloud, a divisão da gigante da tecnologia que vende serviços de computação em nuvem, criou uma tecnologia para analisar trailers de filmes. Os algoritmos previram com precisão os filmes que os espectadores de "Logan" haviam visto no passado. A análise preditiva ajudou a Fox na distribuição. A Fox também usou o Watson, a inteligência artificial da Microsoft, para criar um trailer de filme de terror chamado “Morgan”. Watson analisou centenas de filmes de terror para construir o trailer. “Morgan” curiosamente é um filme sobre Inteligência artificial. 

Há 5 anos, na Antuérpia, o ScriptBook já era capaz de identificar uma falha nas bilheterias muito antes do filme ser feito. Elaborando uma análise dos personagens e estrutura do roteiro, e a partir da nuvem de palavras ao redor do tema, o algoritmo analisa bilhões de dados na internet e indica o público-alvo e a possível bilheteria. Ele também diz se o filme passa no “Bechdel Test”, os critérios criados pela jornalista Bechdel para indicar se um filme é machista. O Scriptbook já tem uma dezena de concorrentes pelo mundo, e com uma taxa de sucesso de 84%, o software previu que “La La Land”, de Damien Chazelle ganharia apenas U$60 milhões. O filme, entretanto, rendeu mais de U$100 milhões. Os criadores dizem que só é uma questão de tempo para a precisão aumentar ainda mais. Não duvide.

Em Toronto, existe a Wattpad Studios, que identifica histórias populares na internet e as sinaliza para que os estúdios as transformem em filmes e shows. Em breve, boas histórias ao redor do mundo estarão disponíveis a todos os produtores?  

A Creative Artists Agency opera uma plataforma chamada CAAintell, que com dezenas de fontes, apoia recomendações aos estúdios sobre o casting. A Adobe está desenvolvendo uma tecnologia de IA que cria uma versão sintética da voz de uma pessoa ouvindo apenas 30 minutos de áudio. Já se sinaliza usar o recurso na dublagem, por exemplo. Já pensou ouvir o Mel Gibson falando português? Seria irônico, vez que ele teve que ser dublado no primeiro “Mad Max” porque tinha muito sotaque. 

A USC e o Instituto Geena Davis sobre Gênero rastreiam o rosto e analisam o áudio nos filmes para identificar com que frequência as mulheres são vistas ou falam em filmes, os classificando e indicando aos estúdios sobre a desigualdade de gênero. Analisando todos os filmes do IMDB, 68% dos atores e atrizes tiveram um único papel na carreira. E 5.146 intérpretes masculinos (0,00034%) tiveram mais de 100 filmes.  

Em todos esses casos o ser humano não é substituível. Mas estes e outras dezenas de exemplos (que caberão nos próximos artigos) são importantes para pensarmos nos rumos do nosso setor. Isso torna mesmo um filme mais eficiente, ou faltam analisar outros elementos interseccionados? Isso funciona em todos os lugares do mundo? Existe sentido em fazer uma obra burocratizando o processo a este ponto? Isso tem limites, ou estaríamos marchando contra a guitarra elétrica como fez o Gil? 

Sempre bom lembrar que esse processo é estrutural do sistema produtivo, a indústria cultural não passará incólume, e é chover no molhado dizermos que a tecnologia é dialética truncada, com ciladas éticas insolúveis. Por isso, óbvio que sem análise crítica os efeitos práticos destas transformações podem comprometer profundamente nossa experiência cultural e identitária. 

Desde os gregos é um erro desconsiderarmos que o homem é também natureza, e é epistemicamente importante dizer que a máquina é, também, o homem. Só que levamos 2 mil anos para se dar conta dessa simples constatação e agora vivemos correndo atrás do prejuízo de nossa leniência, prejuízo esse talvez irreversível. Esperemos que com inteligência artificial sejamos mais rápidos em preservar nossa própria diversidade. É nosso legado artístico e civilizacional que dependerá disso.  

 

Steven Phil
Steven Phil | steven@institutodecinema.com.br

Steven Phil é pesquisador da Educação e da Cultura pela Universidade deSão Paulo. É autor, diretor e produtor de cinema. Diretor Executivo do Instituto de Cinema e do Instituto Cultura e Mercado.

Compartilhe: