02 Janeiro 2020
Para além da Ciência de Dados
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Toda vez que citam a famosa frase de Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”, seguem-se inúmeros discursos sobre a complexidade de nossas relações e dilemas civilizacionais. Bem, um texto só faz sentido em um contexto. Tom proferiu esse lema brincando com o título de um polêmico livro de 1961, "Brasil para Principiantes", do húngaro Peter Kellemen. Peter, um estrangeiro desacostumado com as vicissitudes da desigualdade, fez uma obra irônica e moralista sobre golpes que brasileiros davam para sobreviver. A frase, assim, teria muito mais a ver com a dificuldade em confiar na nação do que de fato explicá-la.
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Acontece que nenhum país é para principiantes. Achar que é mais difícil entender o Brasil do que os Estados Unidos faz parte de nossa “síndrome de vira-lata”. O problema em entender nosso país é que é preciso encará-lo de frente. É preciso se olhar no espelho. E isso nunca é fácil em um país tão desigual.
Temos o tamanho de 17 Franças, mas a mesma quantidade de salas de cinema de Paris. Temos 210 milhões de habitantes, mas só 20% da população vai ao cinema. E a resposta está longe de ser apenas econômica. Desigualdade é também social, cultural, identitária. Quantas pessoas você conhece que tem recursos, moram em capitais, e não frequentam cinema? Falta a classe média brasileira ímpeto para ir até a sala. Faltam códigos culturais introjetados que impelem o indivíduo a ir ao cinema.
Mas isso é apenas um ponto. Outra questão é que o consumo cultural do brasileiro é feito a partir de uma cultura de comunhão, de propósito coletivo e repertório compartilhado. Em um país com nossa oralidade e sociabilidade, tão importante quanto assistir um filme é poder falar sobre ele. O brasileiro vai assistir a um filme majoritariamente acompanhado, não raro, em grupos. Quais são os produtos eficientes a esse tipo de consumo? Isso influencia o que o brasileiro escolhe assistir?
Nos últimos anos temos que comédia representa pouco mais de 10% dos ingressos vendidos aqui. Agora, se levarmos em conta somente filmes nacionais esse número sobre para 62% dos ingressos. Drama, que representa apenas 14% da bilheteria dos filmes estrangeiros, sobe a 30% nos filmes nacionais. Isso significa que comédia e drama são responsáveis por 90% das bilheterias de filmes brasileiros. Números anômalos ao mercado internacional. Por que isso acontece? É mais difícil produzir outros gêneros?
Quando falamos de cinema comercial, os maiores players da distribuição e da exibição já possuem departamentos de B.I. (Business Intelligence) que utilizam-se da bigdata e da inteligência artificial para introduzirem uma cultura de data-driven na empresa, ou seja, decisões orientadas com o processamento de uma quantidade massiva de dados. Isso funciona bem em grande escala, principalmente para infoprodutos (produtos vendidos na internet).
Mas, quanto mais especificidade e assertividade o mercado buscar, mais você dependerá de análises qualitativas concomitantes, ou o que conhecemos por analytics-driven. Esse é um passo além e exige mais do que Ciência de Dados. É preciso de uma abordagem multidisciplinar, trazendo a filosofia, antropologia, psicologia e sociologia para o centro da tomada de decisões. E não estamos falando só dos métodos tradicionais de pesquisa de mercado. Estamos falando de descobertas de padrões relevantes nesses dados e a explicação desses padrões utilizando-se dos clássicos da história do pensamento social brasileiro, de trabalhos de campo etnográficos, de macro teorias científicas na área da cultura. Uma mudança paradigmática para o mercado brasileiro até aqui.
O cinema é uma das grandes referências estéticas da Indústria Cultural. E cultura é o elemento constitutivo de nossa identidade. Entender os hábitos de consumo de um povo é reconhecê-lo. Por isso, para desenvolver nosso mercado de cinema precisamos de dados, mas, antes de tudo, precisamos dialogar com os “brasis” dentro Brasil. E isso também não é para principiantes.
Steven Phil | steven@institutodecinema.com.br
Steven Phil é pesquisador da Educação e da Cultura pela Universidade deSão Paulo. É autor, diretor e produtor de cinema. Diretor Executivo do Instituto de Cinema e do Instituto Cultura e Mercado.
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