19 Fevereiro 2025
A indústria do audiovisual e a política da instabilidade crônica
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No início de qualquer trajetória profissional, a falta de experiência e formação costuma nos levar a acreditar que a dificuldade em conquistar oportunidades e estabilidade no mercado é consequência direta da ausência de expertise individual. Com essa percepção, seguem-se anos de dedicação e trabalho árduo em uma busca incessante por aprimoramento. Cursos e formações em instituições de renome, workshops, masterclasses, participação em eventos do setor, laboratórios de desenvolvimento e uma série de outros espaços de qualificação surgem como alternativas para expandir o repertório dos recém-chegados. A promessa implícita? Que, ao seguir esse caminho, estarão devidamente preparados e bem-posicionados na indústria. Mas será que realmente é assim?
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É inegável que, em algum grau, o espectro da instabilidade pairou sobre o mercado audiovisual nos últimos anos, envolto em uma névoa futurística e apocalíptica alimentada pelo avanço de uma direita anticultura. Para além da pandemia, que transformou profundamente as dinâmicas de trabalho e a concepção de conteúdo, os profissionais do setor sempre viveram sob a tensão da possível ascensão abrupta da extrema direita — um cenário que poderia desencadear o retrocesso de tudo o que havia sido construído até então.
A chegada de Bolsonaro e de sua trupe do patriotismo antipatriótico não foi exatamente uma surpresa. Ainda assim, sua gestão conseguiu fragilizar ainda mais um ecossistema já vulnerável. Com o desmonte deliberado da Ancine, a asfixia dos mecanismos de fomento e a paralisação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, centenas de produções foram interrompidas, produtoras fecharam as portas e um medo genuíno se instaurou entre os profissionais do setor. Mas, afinal, em algum momento houve uma projeção real de melhora? E, se houve, essa melhora incluía os profissionais freelancers e de base, ou apenas aqueles já consolidados no topo da cadeia?
Diante da incerteza constante do mercado audiovisual, muitos profissionais buscam os poucos cargos fixos em produtoras como forma de alcançar algum grau de segurança, tentando evitar a instabilidade intrínseca ao modelo freelancer que permeia amplamente o setor. No entanto, do ponto de vista financeiro, essa escolha raramente se mostrou vantajosa. Em São Paulo, os valores pagos por projetos semanalmente superam de forma expressiva os salários fixos, mesmo nas maiores produtoras. Além disso, a erosão da política de CLT torna essa alternativa ainda mais fragilizada. A crença de que, ao optar por essa trajetória, se conquista estabilidade profissional nem sempre se confirma. Resta a dúvida: essa estrutura realmente oferece a segurança que se busca?
Se é verdade que, nos últimos tempos, diversos contextos — tanto locais quanto globais — evidenciaram fragilidades no setor, também é fato que houve motivos para celebrar. A chegada dos streamings e seu interesse em produzir no Brasil trouxeram um nível de estabilidade e investimentos (mais o segundo do que o primeiro) nunca antes vistos. Mesmo em meio ao caos, um grupo seleto de empresas conseguiu ganhar força e relevância. Enquanto os projetos estavam em andamento, o mercado viveu um momento de efervescência que parecia anunciar tempos mais promissores para os profissionais. No entanto, olhando para o cenário atual, neste período pós-boom do streaming, quem realmente se beneficiou desses investimentos? Além das escassas produtoras que fortaleceram seus caixas e garantiram algum capital de giro, qual é, de fato, o legado deixado por esses aportes no país?
Não é novidade, nas dinâmicas impostas pelo capitalismo se sobressai a política do lucro acima de qualquer necessidade. Em todos os outros negócios feitos no Brasil, o descompromisso a nível de vínculo empregatício se tornou um objeto de desejo das empresas, que viram em um modelo de pejotização a possibilidade de garantirem um profissional sem o demérito de sua permanência.
O movimento de pejotização no Brasil intensificou-se especialmente após a Reforma Trabalhista de 2017, que flexibilizou diversas normas da CLT. Essa prática consiste na contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas (PJ), em vez de empregados com carteira assinada, reduzindo encargos para as empresas e ampliando a informalidade estrutural do mercado. Embora represente uma aparente vantagem para os profissionais de algumas áreas, como maior flexibilidade e possibilidade de ganhos mais altos, a pejotização fragiliza a proteção social ao eliminar direitos trabalhistas como 13º salário, férias remuneradas, FGTS e benefícios previdenciários. No longo prazo, essa lógica compromete a construção de uma cadeia de trabalho estruturada, promovendo instabilidade econômica e dificultando o acesso dos trabalhadores a direitos básicos, além de enfraquecer a arrecadação do Estado, impactando diretamente políticas públicas e a seguridade social.
Para além disso, no setor audiovisual, sempre prevaleceu um modelo de trabalho concentrado em poucos cargos estratégicos, enquanto a maioria dos profissionais é contratada de forma rotativa, seguindo a lógica do freelancer. Esse sistema atribui pouco ou nenhum valor à construção de carreiras a longo prazo, deixando à margem aqueles que sustentam a engrenagem do setor. O resultado? Uma legião de profissionais altamente qualificados à míngua. Destituídos do devido reconhecimento, são lançados a um cenário de vulnerabilidade, onde a permanência no mercado se torna uma luta constante. Produções dependem da disponibilidade de indivíduos que, ou estão sobrecarregados, ou aceitam condições muito abaixo de seus tetos salariais apenas para garantir um mínimo de sobrevivência.
O contraste com mercados como o francês e o alemão evidencia o abismo entre o modelo brasileiro e estruturas que realmente valorizam os profissionais do setor. Na França, o regime "Intermittence du Spectacle" assegura direitos trabalhistas e benefícios previdenciários aos trabalhadores intermitentes do audiovisual, permitindo que tenham acesso a seguro-desemprego e estabilidade mínima entre projetos. Já na Alemanha, a formalização do trabalho e a forte atuação sindical garantem que técnicos e artistas sejam devidamente remunerados e protegidos por contratos que respeitam sua longevidade no mercado. Enquanto isso, no Brasil, o setor se apoia em um modelo de pejotização forçada, onde a falta de segurança jurídica e de garantias sociais empurra até mesmo os profissionais mais experientes para a instabilidade crônica.
Diretores de arte, diretores de fotografia, figurinistas, chefes de maquinária, produtores — uma lista extensa de talentos que, por mérito, já teriam repertório suficiente para ocupar os maiores palcos e premiações do mundo. Mas, diante de um modelo de indústria desestruturado (se é que podemos chamar de indústria), muitos acabam na porta das produtoras, não como profissionais disputados, mas como suplicantes por oportunidades.
As grandes produtoras frequentemente questionam a forma como o audiovisual é conduzido no Brasil, colocando em xeque a descentralização de recursos. O argumento? A ideia de que essa distribuição pulverizada enfraquece um mercado já carente de investimentos quando comparado a potências internacionais, dificultando a consolidação de uma indústria verdadeiramente estruturada. Mas a questão que permanece é: na retórica que defende o fortalecimento do setor, não há espaço para reconhecer que uma indústria não se constrói apenas a partir do favorecimento estatal ao grande empresariado? A solidez do mercado também depende da valorização das equipes que, na prática, dão vida às produções.
Os sindicatos paulistas, sempre tão atentos às diretrizes da Ancine, não se percebem também como agentes ativos das dinâmicas que criticam? Enquanto nos percentuais administrativos de cada projeto se projeta um futuro e a sustentabilidade dos negócios, a mão de obra qualificada segue desvalorizada. Que tipo de indústria se pretende construir quando aqueles que a movem são deixados à margem, para depois se lamentar a falta de expertise no setor?
Se a cultura é, em certo sentido, a “tábua de salvação” para um mundo centrado no ego e movido pelo lucro como princípio de existência e valor humano, é essencial que ela esteja mais alinhada com os verdadeiros desejos de um futuro mais justo. Enquanto os grandes produtores do país não compreenderem que as relações de trabalho em um contexto de desigualdade social não são apenas fundamentais para o fortalecimento, mas também para a sustentação de uma força de trabalho essencial à realização de seus próprios negócios, não haverá base sólida sobre a qual se erga algo duradouro. E isso se torna ainda mais crítico diante do futuro alarmante que se desenha, com o avanço do fascismo e a ameaça constante à conquista de direitos que antes eram garantidos a todos nós.
Permitam-me, então, lançar uma provocação: o empresariado audiovisual brasileiro está mais próximo dos assistentes de maquinária do que dos executivos dos grandes conglomerados. É importante não perdermos de vista essa realidade. Sem unidade, não se constrói uma base sólida, sem uma visão coesa, não há projeção assertiva, e sem essas condições, o futuro do mercado audiovisual está comprometido.
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William Diniz
Com quase uma década de experiência no mercado, William Diniz traz sua bagagem das Relações Internacionais para a produção executiva, consolidando-se na área de conteúdo, com foco em longas e séries. Ao longo de sua trajetória, colaborou com grandes nomes da indústria, como Academia de Filmes, O2 Filmes, Tambellini Filmes, Rosza Filmes e Cinerama. Nos últimos anos, tem se dedicado a desenvolver modelos de negócio inovadores, facilitando a entrada de marcas e investidores – tanto nacionais quanto internacionais – em projetos cinematográficos, atuando estrategicamente desde o desenvolvimento até a comercialização. Atualmente, está à frente do mais novo projeto do renomado diretor austríaco Hans Weingartner.
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