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Artigo / Mercado

06 Setembro 2024

"O que é doze quadros por segundo?", perguntou meu primo de sete anos. Aqui a resposta.

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Estou no interior de São Paulo trabalhando em um roteiro bem intenso e poético de um longa-metragem de animação, “A benzedeira”, estava escrevendo até o começo da noite de hoje, sábado, e parei pra jantar com a família (mesmo querendo continuar o processo de escrita). Foi gostoso, vou pular o jantar, caldo verde delicioso, e focar no que interessa pro artigo. O Caio, um menino de sete anos, meu priminho que conheci esse ano, filho do meu primo, me chamou pra desenhar. O Caio queria que eu desenhasse uma cobra (por causa de outro projeto que estou escrevendo). Ele desenharia no computador. Eu ia no papel. Não tinha lápis de cor, peguei uma folha de sulfite, encontrei uma caneta na bolsinha da minha tia e comecei a desenhar o rosto dele. Observei direitinho, tentei fazer o cabelo, os fios pretos que eram como linhas que partiam do topo da testa e iam mais pra cima, mas o movimento não era pro alto exatamente, eram muitos fios de cabelo que iam todos da esquerda para a direita, tinha um ondulado, não entendi direito como desenhar, eu olhava, via e não entendia como colocar no papel aquele movimento reto e ao mesmo tempo curvado que tinha o cabelo do Caio. Nisso ele ia me perguntando sobre cinema e animação (mostrei o storyboard de “Tubaroa” e o menino me veio cheio de questões, que foram desde a “o que é p o v”, que expliquei que era ponto de vista, aquilo que a gente vê, do lugar que a gente assiste a cena acontecendo no filme, até a “o que é doze quadros por segundo”, que entendi que não sei explicar de um jeito fácil, por isso parei pra escrever e o Caio está me olhando e esperando a resposta, vou falar com ele e volto logo aqui pro artigo).

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Voltei. “Coisa de louco que é trabalhar com animação, né?”, o Caio falou quando tentei responder a primeira vez. “Quantos desenhos tem no seu filme, então? Você sempre demora assim?”, perguntou, enquanto eu desenhava o olho dele. Daí pesquei o entendimento do menino. Caio entendeu que trabalho com desenho animado, daí ele queria que eu desenhasse, é um pensamento lógico, direito, reto: trabalha com desenho animado, logo desenha animado, ué! Tem sentido nesse pensamento. Mas ele não funciona para todo mundo. Enfim. Terminei o desenho e entreguei pra ele. “Tá muito feio!”, falou na lata quando viu. Daí rabiscou tudo. Primeiro. Ele pediu desenho de uma cobra com lápis de cor e ficou bravo porque eu desenhava com a caneta azul tradicional, olhava feio mesmo. E eu continuei. Segundo. O meu desenho estava estranho mesmo. “Mas eu não entendi esse negócio de desenhar por segundo, como é mesmo?”, perguntou de novo. Eu precisava dizer a mesma coisa só que de um jeito ainda mais simples agora. Respondi: “quem anima um segundo de cena, Caio, precisa desenhar doze desenhos, ou seja, pra cada um segundo que a gente assiste de desenho animado podem ter sido necessários doze desenhos com os movimentos da ação em sequência. Mas às vezes precisa de mais desenhos e às vezes de menos também. Entendeu?”, perguntei. “Não”, respondeu. Sorte que o Caio e eu gostamos de conversar e a gente continuou o “cocoricó”. “Vou tentar explicar, ô criança, mas presta atenção”, falei. “Imagina que pra contar a história do seu filme você precisa desenhar doze desenhos para ter um segundo de cena… O número varia, pode chegar até a vinte e quatro… Mas também dá pra fazer cena com um só desenho durante um ou mais segundos”. O Caio, nessa hora, já estava recortando o bigode de uma imagem da internet e colando na ilustração que ele fazia no computador. Ou seja: ele estava “cagando” pro que eu falava. Sei que também me compliquei, né? Vou pra casa terminar de escrever no computador. Vou dar tchau pra família e já venho. Peraí. Toma o seu tempo aí também.

Tocando: “The Rise and Fall of a Midwest Princess” (Chappell Roan).

Pronto. Respira fundo que nós vamos mergulhar. Aqui vou entrar um pouco no que penso sobre cinema de animação. Um quadro parado pode segurar um bom tempo na cena se ele estiver bem composto com a história e se a imagem for poética o suficiente para funcionar como contemplação ao público e como complementação à narrativa. Sacou? Você pode desenhar doze desenhos (até mais) para um segundo de uma cena. Você também pode segurar um só desenho por doze segundos de outra cena. A ideia que quero passar é que o desenho que vai ficar, pelo tempo que for ficar, estático na tela precisa servir como apreciação poética para o público e expansão narrativa para o filme. Se quem assistir à cena ficar os tais segundos observando, viajando pela imagem, mas se esses pensamentos aleatórios pessoais servirem para compor com a trama do filme, aí o quadro estático funcionou. Nossa... Está fazendo sentido isso? Por exemplo: “Sangro” tem vários momentos que a cena fica parada em partes do quadro “O jardim das delícias terrenas”, de Hieronymus Bosch, enquanto o relato sonoro segue, tudo encaixado, pois o Caioh, o outro, meu amigo que protagoniza o filme, ele começa a narrativa no pesadelo, na escuridão, no medo da descoberta da vivência com HIV, é como se ele visitasse o inferno de Bosch, entende? Então, para isso, usamos as cenas do quadro. Depois o personagem vive um purgatório até chegar no paraíso da aceitação e do amor de si mesmo (e o filme ilustra tais momentos com cenas do purgatório e do paraíso no tríptico “boschiano”). O negócio é que durante todo o pensamento que o protagonista desenvolve sobre a condição de sua vida, a animação segue “estática”, apenas com trocas de cenas escolhidas no quadro para compor (e ampliar) sensorialmente a narrativa. Fez sentido?

Assim chegamos ao último parágrafo. Uma vez minha guruzinha Rosana Urbes me falou, numa das oficinas de modelo vivo para filmes de animação que a gente fazia, ela contou sobre um animador oriental que trabalhou com ela, se não me engano, em “Mulan”, mas eles estavam numa das aulas e o exercício era desenhar a pose da modelo durante cinco minutos. Tinha gente que finalizava o desenho, fazia contorno, cor, detalhes e afins. Tinha quem desenhava tudo com pontinhos. Gente que fazia aquarela. As pessoas se soltavam nessa atividade, pois cinco minutos é um tempo enorme durante as aulas de modelo vivo (as poses iniciais duram poucos segundos, depois sobe pra um minuto, varia até três e chega em cinco minutos de desenho no final, é uma delícia, recomendo demais fazer as aulas). Espera. Lembrei. O amigo oriental da Rosana, ela me falou que ele desenhou por cinco minutos todos os pêlos do braço da modelo. Pelinho por pelinho. Foi alguma coisa assim, posso ter aumentado algo, mas a mensagem que guardei foi essa: olha o quão específico e direcionado precisa ser o olhar de um artista de animação. Primeiro você fraciona a realidade em doze (ou mais) mini unidades de um segundo. Segundo, eu não sei o segundo ponto, não tem uma ordem sequencial. O que tem é uma fragmentação criativa, temporal e espacial da vida por parte de quem anima. “É uma loucura mesmo, Caio”, lembro que falei pro menino. Tá dando pra entender o que digo? Tô sendo muito específico? Ai, caramba. Melhor continuar em outro momento. Começou a tocar After Midnight bem aqui no final. Agora são duas e trinta e nove da madrugada de domingo já, vinte e cinco de agosto. “I love a little drama”. É isso. Obrigado quem leu. E até já.

 

Bruno H Castro
Bruno H Castro

Roteirista com projetos premiados, como as animações “Sangro” e “Guida”, em que o segundo venceu quatro prêmios no Anima Mundi Animation Festival e dois prêmios no Annecy International Animated Film Festival de 2015. Fez vários projetos voltados para a comunidade LGBTQIAPN+, como a coleção de literatura infantil sobre gênero e sexualidade “Amar”.Atualmente está com o filme “A Metade de Nós” em cartaz, o qual escreveu o roteiro em conjunto do diretor Flávio Botelho.

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