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Artigo / Mercado

22 Maio 2024

O audiovisual como instrumento de luta para as pautas sociais

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Dona Iracema, mulher preta, nordestina, pobre, na época repositora de supermercado e evangélica, recém separada de seu marido, considerou que a vida já estava melhorando apenas por ter deixado de morar com um agressor em um cômodo de 10 m2, para ir morar em uma casinha de dois cômodos e sozinha com seu filho de três anos.  Tudo estava melhor. Só de não apanhar e ouvir xingamentos o tempo todo, tudo já estava melhor. Porém, logo ela se deparou com uma primeira barreira; não tinha com quem deixar seu filho para que pudesse trabalhar. Por mais que encontrasse alguém, ela não teria dinheiro para pagar. Realmente tudo havia mudado. Mas, ela ainda considerava que era para melhor, só de não apanhar.

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Ela sempre tinha um jeito para tudo, e conseguiu dar um jeito nisso também. Subverteu os conselhos da igreja em não permitir que o demônio entrasse em casa pela tela da TV. Ela não só desobedeceu a esse conselho santo, como deixava o “demônio” tomando conta do filho dela das oito da manhã até às onze da noite.

Não, ela não tinha escolha.

Aquele demônio quadrado de plástico, que atendia por Telefunken (parece um nome de demônio mesmo, não?), não só tomaria conta do seu filho, mas chegaria a provocar o destemor do garoto a tal ponto que ele, um dia, enfrentaria o demônio eletrônico e arrancaria o traseiro dele com uma faca para entender como as pessoas entravam ali. Como é possível? Ele também queria entrar naquela merda e viver como aquele pessoal.

Tinha até um pessoal parecido com ele vivendo num certo sítio. Eles comiam bem, pareciam felizes, conversavam com animais, boneca de pano e espiga de milho falante. Aquele mundo parecia muito mais legal! Inocente.

Tudo que dona Iracema aprendeu com o episódio de o filho abrir a TV é que ela deveria deixar os talheres num lugar ainda mais alto e que ela, provavelmente, estava criando um monstro.

Mas, o que ela não imaginava mesmo é que aquele foi o primeiro passo para definir, de certa forma, o futuro do seu filho.

Alguns anos mais tarde, quando já tinha 12 anos e fez uma peça de teatro na escola, foi efusivamente elogiado pela professora que achou o desempenho do garoto fenomenal. Disse ela: “você devia pensar em ser ator quando crescer, você tem talento”. O elogio seria completo e aceito com muito mais felicidade se o papel bem desempenhado por ele não tivesse sido o de um escravinho, já que era uma peça teatral que fazia parte dessas tentativas frustradas de a escola contar no mês de maio, antes da lei 10.639, como a escravidão tinha sido maravilhosa para o Brasil.

Ele fez um bom papel por reagir “bem” ao tomar chicotadas de um moleque branco? WTF?!

Como dona Iracema era mestre em fazer coisas ruins virarem coisas boas, e o ensinou direitinho, o moleque pegou a parte que lhe interessava do elogio e acreditou mesmo que ele um dia poderia viver a magia daquela caixa.

Os anos se passaram, ele cresceu, e desistiu por um tempo de ser artista. Ele não conhecia nenhum outro artista de teatro. Artistas “como ele” naquela época eram Racionais MC’s e os pagodeiros do Katinguelê ou Negritude Jr.

Se tornar um ator, e viver disso, seria complicado naquela época. Ele desistiu, mas seguiu fã de televisão.

Até que um dia, no primeiro episódio de uma novela, ele viu um cara, que já havia morado na rua de cima da sua casa e que pegava carona com ele, de vez em quando, no ônibus Praça da Bandeira - 6366, para descer no ensaio da Escola de Samba Vai-Vai aos domingos. Era o cara do sapato bicolor.

Caraca, ele conseguiu! Ele trabalha e vive da caixa mágica! Como ele foi parar alí?

Grande Ailton Graça!

No dia seguinte a esse episódio, ele buscou uma escola profissional de teatro, já com 27 anos e achando que a vida estava uma droga porque ele havia saído da igreja aos 16. Jesus estava cobrando?! Ele é vingativo assim? Poxa!

Encontrou uma escola, se formou e se tornou um ator profissional, graças a dois anos sem comer direito e sem comprar uma única cueca pois precisava pagar o curso com o salário de operador de telemarketing.

Nessa época, dona Iracema já não existia mais fisicamente, mas estava lá o tempo todo, presente de todas as outras maneiras, pois ela sempre dava um jeito.

Ela sempre dava um jeito. Durante um tempo ela queria de qualquer maneira pagar um curso de datilografia para o moleque (estamos falando do final dos anos 80, tá), mas ela não podia. Mas, ela não conseguiu esconder a felicidade quando o moleque apareceu em casa com uma máquina de escrever usada e quebrada que havia trocado por um brinquedo, dos poucos que tinha. Ela só se certificou que o moleque não tivesse roubado a máquina. Quando se certificou que estava tudo certo com a troca, já que a mãe do outro menino estava ciente, ela começou a comprar a fita de tinta da máquina e a trazer hinos do grupo de senhoras da igreja, que eram escritos à mão, para que o moleque pudesse praticar. Esse era o jeito dela de fazer as coisas.

Antes de concluir o curso de artes cênicas, já sabendo das dificuldades de se trabalhar como ator negro no Brasil, ele começou a se aventurar por cursos gratuitos de roteiro e foi aí que surgiu a primeira oportunidade. Ele foi convidado para escrever o roteiro de um comercial de uma loja de calçados de Poços de Caldas. Pediram um roteiro e ele mandou dois para não correr o risco de deixar de ganhar os R$ 300,00 prometidos que ajudaria a pagar três contas atrasadas.

Foi aí que tudo mudou pois, além de terem aprovado os roteiros, ele foi convidado a dirigir o comercial. Não se iludam, eles só convidaram porque eles não tinham outra pessoa que o fizesse naquele momento. Ele aceitou, mesmo sem saber direito o que teria que fazer, porque prometeram mandar as passagens e pagariam mais R$300,00. Ele sentiu o gostinho do sucesso.

Depois de ver o vídeo pronto, apesar dos erros técnicos evidentes, pela primeira vez na vida ele sentiu o prazer de dar vida a algo que saiu da sua cabeça em um barraco úmido e insalubre. Ele fez aquilo tomar forma. Era tipo um filho. Outro prazer foi, além de tudo, ser pago por aquilo.

No mesmo ano ele fez o ENEM, tentou uma bolsa do PROUNI e conseguiu uma bolsa de estudos na faculdade de produção audiovisual. O estágio foi numa produtora de conteúdo adulto. A única que deu oportunidade.

Como precisaria estar no SET de filmagem convencional, e aprender um pouco mais, para além do que a produtora pornô poderia lhe ensinar, ele sempre enchia o saco do amigo Agnaldo Baliza para lhe chamar para fazer figuração. Dessa forma ele conseguia comer bem no catering o dia todo, o Agnaldo sempre o deixava “voar” pelo set e ficar olhando o diretor trabalhar em vez de fazer a figuração para o qual fora contratado. Ele ainda saia com 50,00 ou 80,00 no final do dia como cachê. Esse foi o estágio de verdade. Valeu muito a pena!

Aliás, um dos poucos diretores que permitiam que isso acontecesse, que aquele pretinho figurante ficasse ali, de braços cruzados atrás dele no vídeo assist, foi Toni Venturi (faleceu nesse fim de semana, dia 18),em a Comédia Divina que, apesar de ter sido lançado em 2017, já estava sendo gravado há anos. Todos sabem como é fazer cinema no Brasil, não sabem?

Pois bem, desde que se formou em audiovisual e se pós graduou em Cinema e Televisão, ele, o cara que abriu a TV aos 5 anos para ver como entravam ali dentro,  já fez projetos autorais que estiveram nas telas dos canais A&E, AXN, Discovery Turbo, Investigação Discovery, Fashion TV e Netflix, entre outros. Aliás, uma das três maiores felicidades que teve na vida foi ver o nome de sua mãe, Iracema Rosa, na tela da TV. Tudo fez sentido ali.

Mas, por que estou contando essa história toda?

Apenas para tentar mostrar, em palavras, a importância do audiovisual como elemento de luta para pautas sociais. Tentar, porque aqui eu estou escrevendo e vocês só podem imaginar que seria melhor mostrar tudo isso em vídeo, mas aí eu vou precisar fazer mais para merecer meu próprio filme. (Risos)

Eu ter conseguido colocar projetos meus em televisão, foi por causa de projetos de inclusão. Se não fosse a lei que obriga TVs pagas a terem programação nacional, certamente eu não estaria aqui, agora, escrevendo essas linhas.

Ao longo dessa história, veja quantas vezes falei de perseverança somada à iniciativas de inclusão, oficiais ou não. Institucionais ou não.

O audiovisual tem a capacidade única de contar histórias de maneira envolvente e emocional. Uma imagem, acompanhada de som, pode transmitir nuances de uma situação que palavras sozinhas muitas vezes não conseguem. Essa combinação permite uma conexão emocional mais profunda com o público, o que é crucial para sensibilizar e mobilizar pessoas em torno de causas sociais.

Mas, para além disso, o audiovisual não transforma apenas de fora para dentro quando educa, quando traz reflexão e cobrança das autoridades. O audiovisual transforma também de dentro para fora quando o sujeito passa a ser parte desse universo. Por causa do audiovisual eu fiz a minha primeira viagem internacional. De certa forma, também todas as outras vinte e tantas viagens internacionais que vieram depois. Por isso, antes de pensar no que o podemos transmitir com o audiovisual, devemos pensar em quem deve transmitir. Quantas pessoas como eu, o cara dessa história toda que contei, está transformando? Esses serão os novos contadores de histórias. O audiovisual é um gigante instrumento de luta para pautas sociais, principalmente quando os verdadeiros interessados nessas pautas estão contando as histórias, da forma que precisam ser contadas. O próprio Toni Venturi dizia em suas entrevistas que “o cinema devia ser feito para todos e por todos”. Talvez por isso ele não se importava com aquele cara curioso que acabou de comer uma montanha em seu catering, estar ali, parado, de olhos curiosos e brilhantes atrás dele e que não “apareceu” em nenhum momento na figuração naquele dia e ainda ia embora com 80 reais no bolso.

Sei muito bem que existem muitos poucos Toni Venturi por aí. Talvez não haja mais nenhum. O que ainda precisamos fazer para que o audiovisual seja realmente feito por todos de verdade? Muita coisa mudou e melhorou dos anos 80 para cá, mas ainda há muito o que mudar e evoluir.

Com o advento das plataformas de streaming e redes sociais, o alcance do conteúdo audiovisual se expandiu de forma exponencial. Hoje, é possível que um vídeo alcance milhões de pessoas ao redor do mundo em questão de horas. Essa acessibilidade é vital para movimentos sociais que buscam apoio e visibilidade. Que o diga os impactados pelo meu projeto de programa na TV e canal no YouTube para falar de pessoas desaparecidas.

Em um mundo cada vez mais visual, o poder do audiovisual como instrumento de luta para as pautas sociais não pode ser subestimado. Sua capacidade de emocionar, informar, educar e mobilizar o torna uma ferramenta indispensável para qualquer movimento que busca a mudança. Através de histórias bem contadas, acessíveis e representativas, o audiovisual continua a ser um veículo vital para a justiça social e a transformação global de dentro para fora ou de fora para dentro das pessoas. Mas, antes de pensar sobre como todos devem ter acesso ao audiovisual, devemos pensar se todos que querem estão fazendo audiovisual. Todos têm esse acesso? Quem, de fato, usa o audiovisual como instrumento de luta pelas pautas sociais? Pelas pautas sociais de quem?

Hoje, já sei como as pessoas vão parar na televisão.

 

Anderson Jesus
Anderson Jesus

Produtor audiovisual com mais de 13 anos de experiência em comunicação, Anderson já atuou em grandes projetos voltados para o mercado para canais como A&E, AXN, Discovery Turbo e Investigação Discovery, além de plataformas como Netflix, Crackle, Looke e UOL. É formado em Artes Cênicas e Dramáticas, Produção Audiovisual, Direção de Fotografia para Cinema e pós-graduado em Cinema e TV pela Faculdade Belas Artes.

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