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Artigo / Tendências & Mercado

12 Julho 2023

O horizonte além do horizonte

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Ainda que certos teóricos contemporâneos afins ao neoliberalismo sustentem a concepção de um Mercado que se pretende independente do Estado, uma análise superficial da trajetória histórica “recente” da sociedade capitalista comprova a inescapável necessidade de uma presença reguladora e fomentadora nas dinâmicas do capital. Desde o setor automobilístico até o farmacêutico, dos bancos aos hospitais, dos latifúndios ao processo extrativista sempre imperou uma mão “benevolente”, que desafogou corporações e incentivou o consumo e a produção dos mais diversos serviços - Não seria diferente com o audiovisual.

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Ao longo dos anos e ao passo da formação da juvenil indústria cinematográfica (pouco menos que 130 anos) diferentes mecanismos públicos destinados a consolidar uma produção vigorosa, com vistas à estruturação de uma indústria funcional, foram desenvolvidos nos mais diversos países do mundo. No panorama global, por ocupar um lugar de nação terceiro mundista, sobrevivendo enquanto semiperiferia do capitalismo e lidando com as possibilidades de realidade impostas a esse lugar, sempre imperou a instabilidade política de forma perene nas estruturas do Brasil, reverberando na esfera econômica, e no arranjo de organização dos diversos empreendimentos no território nacional. Nossa linha temporal enquanto setor é reflexo disso, permeada por momentos de ápice e declínio do cinema, sempre acompanhados pela perspectiva da governança em voga.

Atualmente, após um período de quatro anos sob a égide de um governo que revelou descaradamente sua intenção de empobrecer a população, tanto material quanto intelectualmente, contemplamos agora mais uma “retomada” do cinema nacional, que enfrentou inúmeras adversidades durante esse último ciclo, porém, perseverou graças à expertise e as oportunidades que surgiram. O Ministério da Cultura, finalmente, reassume sua posição legítima e anuncia um horizonte mais aprazível, em um contexto que se fundamenta na esperança de um cinema descentralizado, dotado de maior projeção internacional e capaz de manter-se impecável em sua maior virtude: representar a visão do Brasil e dos brasileiros quanto ao mundo..., mas e o amanhã?

A pandemia escancarou a relevância e a potência do conteúdo, que para além de um mero papel de entretenimento serviu enquanto apaziguador dos horrores que vivíamos no mundo real, levando conforto, fuga, informação e esperança para bilhões de lares ao redor do planeta. Coberturas jornalísticas, documentários, filmes, séries, podcasts, videoclipes, lives e todo o tipo de conteúdo digital tiveram seu consumo expandido a níveis inacreditáveis, comprovando que não somos só uma indústria de destaque, mas talvez a indústria de maior significância para a manutenção das dinâmicas de sociedade e de comunicação humana, nos tempos atuais e ao que tudo indica, no futuro.

Os streamings e sua política de expansão foram aliados da nossa produção local, ajudando a garantir a manutenção de nossas empresas e de muitos empregos, mas a lógica capitalista se estrutura somente no processo de alienação do direito e do poder alheio, e pela ausência de políticas públicas regulatórias viramos prestadores de serviço, desprovidos deste que é nosso maior ativo: a propriedade intelectual. Ainda assim, foi através deste movimento que conseguimos provar que o conteúdo local tem alcance internacional, e que o público brasileiro é um dos mais ávidos consumidores de conteúdo do mundo. É hora de alçar voo.

É fundamental retomar o fluxo de produção, mas, além disso, é imprescindível compreender modelos de negócios que possam aproveitar esse momento político, visando não apenas a criação de grandes obras, como também a consolidação de uma indústria cinematográfica nacional de destaque, onde a política seja uma aliada e não uma figura dominante. Na agenda da Ancine diferentes medidas já vêm sendo tomadas em direção a este espaço de “emancipação”, mas cabe ao setor mirar para além do horizonte, e agarrar as oportunidades que se anunciam em um lugar nublado.

A concretização do âmbito digital enquanto um espaço tão tangível quanto a materialidade; o modo de consumo do conteúdo e da publicidade reinventado a partir de novas telas; a internacionalização da produção nacional pelos streamings; a imponente presença das majors em nosso território; e a dinâmica de uma audiência cada vez mais multifocada, são apenas algumas das novidades - embora já não tão novas - que têm reconfigurado profundamente a nossa forma de conceber e realizar obras cinematográficas. Precisamos tirar o melhor disso.

Olhando para os EUA, país que desenvolveu de forma mais potente sua indústria, é possível observar uma fórmula de financiamento com a qual precisamos criar mais familiaridade em nosso “modo de fazer cinema”. A estrutura principal que impulsiona o desenvolvimento de empreendimentos audiovisuais, ao invés de contar primariamente com subsídios governamentais, é alicerçada primordialmente no aporte financeiro privado, que pode ser viabilizado por meio de patrocínio, investimento, pré-vendas e licenciamento, inserção de marca, e em última instância, os recursos provenientes dos próprios realizadores. É significativa também a participação de Agências governamentais, mas elas funcionam muito mais enquanto complementadoras do desenho de financiamento do projeto, assegurando políticas como Cash Rebate, do que propriamente garantidoras do resultado final.  

Apesar de contar com uma estrutura de negócio que assegura a viabilidade de projetos com orçamentos extraordinários, a indústria cinematográfica norte americana adota um modelo de negócios baseado no retorno financeiro enquanto prioridade, o que faz com que os parceiros não apenas forneçam capital, mas também exerçam influência sobre os aspectos criativos, desde o roteiro até o corte final do filme. Essa interferência pode comprometer a visão e a concepção original elaboradas por profissionais experientes e talentosos, resultando em uma obra final que talvez não seja tão rebuscada e bem recebida pelo público. É exatamente nesse ponto que o Brasil pode se destacar: ao contrário, não serviremos ao dinheiro, mas sim o utilizaremos a nosso favor.

As legislações voltadas para a isenção fiscal constituem o mais eficaz expediente para estabelecer uma relação mais estreita com o capital privado, de maneira menos gravosa para os investidores, ao passo que salvaguarda nossa autonomia nos projetos. Tais dispositivos incluem o Artigo 1º e 1ºA da Lei 8685/93, o Artigo 18, 25 e 26 da Lei Rouanet, bem como os FUNCINES estabelecido pela Medida Provisória 22281/01, juntamente com as leis estaduais e municipais que também visam a captação de recursos através da iniciativa pública.

O que se impõe de forma urgente é a imprescindível educação das marcas e dos investidores, de modo a convergirem para uma perspectiva esclarecida acerca do audiovisual como uma senda segura e auspiciosa para a consolidação da relevância dessas empresas perante a percepção do público. O que a publicidade, de fato, não logra plenamente conferir às marcas é precisamente o atributo que possuímos em destaque: a permanência. A capacidade de em meio a uma era caracterizada pelo incessante fluxo de informações, penetrar nos lares e incitar debates que fomentam a progressão das sociedades humanas, ajudando inclusive a apagar às miudezas que permeiam a perspectiva daqueles que teimosamente enxergam o mundo unicamente através de seu prisma individual. Filmes lançados há mais de um século perseveram e hão de persistir no epicentro das discussões sociais, entrelaçados com memórias afetivas, constituindo o alicerce das gerações e das gerações porvir.

É verdade que as agências de publicidade compõem às frontes de um ecossistema pensado para a verba de marketing das corporações, mas mesmo nesse espaço é possível caminhar para um lugar de diálogo. Projetos audiovisuais de séries e filmes possuem um potencial de licenciamento e de “marketização” que pode servir para garantir o interesse das agências nesse formato de negócio. O importante é sustentar a visibilidade em meio a trajetória percorrida pelo projeto, ultrapassando às janelas tradicionais e dialogando com todas as possibilidades de formato, em uma estratégia transmídia de comunicação, gerando subprodutos como podcasts, páginas em redes sociais, pílulas, vídeos com elenco, além de oportunidades para além do espaço doméstico, por meio de ativações, DOOH, e sites dos parceiros em questão.

Na primeira gestão do governo Lula, quando Celso Amorim foi Ministro das Relações Exteriores, a política externa que vinha sendo estabelecida, de acordo com próprio, almejava ser baseada em uma postura “ativa e altiva”, sem receio de tomar decisões ou de se manter firme em seus interesses mesmo diante da agenda de terceiros. Não sabemos se o nosso atual Ministro, Mauro Vieira, irá seguir no mesmo entendimento que imperou naquele primeiro momento, mas essa conduta deve ser regra para nossa postura diante do mercado. Produtoras precisam de um time especializado para relacionamento com marcas e investidores, em direção à construção de um diálogo consistente, que os aproxime da compreensão da nossa potência enquanto indústria e estabeleça um vínculo efetivo com os projetos audiovisuais, não somente através de mecanismos de renúncia fiscal, como também através dos mais diversos meios como branded content, product placement, brand integration, brand entertainment, entre outros.

Conforme o estudo Global Marketing Trends 2022, realizado pela Deloitte, constatou-se que 94% dos consumidores com idades entre 18 e 25 anos desejam que as marcas abordem questões sociais e que 57% deles são fiéis a empresas que demonstram preocupação com esses problemas. O conteúdo, sem dúvida, representa a rota ideal para aprofundar os debates que representam o interesse e os Valores das corporações. Por conseguinte, a chave para o êxito reside em nossa devida orientação nesse processo, desvelando caminhos e modelos de negócio que contribuam para erguer um ecossistema mais sólido e alinhado com as demandas da audiência global. Esse esforço não apenas fomenta o campo da publicidade, mas também assegura outras vias na composição do financiamento para uma profusão de projetos - geniais - que ganham vida anualmente nas telas brasileiras.

 


  • Menção honrosa: Deixo aqui um agradecimento especial à Bernardo Barreto, Aline Andrade, e Michel Stolnicki, todos produtores brasileiros atuantes no mercado estadunidense, que dividiram suas percepções quanto aos modelos de negócio do país, auxiliando na robustez do conteúdo disposto ao longo desse artigo.

William Diniz
William Diniz

Produtor Executivo da Academia de Filmes, William Diniz veio das Relações Internacionais e tem como foco de sua atuação a área de conteúdo, especificamente longas e séries, com trabalhos realizados ao lado de empresas como O2 Filmes, Tambellini Filmes, Rosza Filmes, Cinerama, entre outras. Atualmente tem direcionado seu empenho para modelos de negócio que viabilizem a entrada de marcas e investidores nacionais e internacionais em obras do cinema brasileiro, pensando estrategicamente desde o desenvolvimento até a comercialização dos projetos.

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