15 Março 2023
Um empurrão de Berlim para atrair atenção para os documentários
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Causou surpresa e gerou muito questionamento da crítica e da indústria ver o Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim desse ano, nas mãos de um documentário. No ano passado foi Veneza que entregou o Leão de Ouro para uma não ficção. Uma escolha política? Nós, produtores de documentário agradecemos até mesmo a polêmica. A discussão é saudável para gerar mais curiosidade e reflexão sobre o gênero que, embora venha crescendo em número de produções, quando alcança reconhecimento, provoca espanto.
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Trazendo a discussão para o Brasil, as produções não ficcionais daqui tradicionalmente contam com uma audiência nichada de cinéfilos que fazem fila em festivais dedicados ao gênero para embarcar no encontro entre a vida e a arte. Raramente, as salas de cinema comemoram sucesso de bilheteria com um documentário em cartaz. É claro que já houve exceções. Eu mesma me lembro com carinho de ter visto na tela grande, fora dos festivais, pérolas do Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, João Jardim, Walter Carvalho, Paulo Sacramento, Suzanna Lira, Roberto Berliner, entre outros, rodeada de um público tão numeroso quanto encantado. Mas, isso foi na vida passada, pré-pandemia. Ultimamente, quando a bilheteria é incerta até mesmo para os blockbusters, colocar um documentário em exibição comercial é arriscado, para dizer o mínimo. Não importa o nome que assine a obra, nem mesmo a trajetória do filme, a probabilidade maior é de frustração e despesas.
Há quem veja a nova geração como aliada. Jovens que já cresceram ligados no Youtube buscam documentários para se informar e ganhar repertório sobre os mais variados temas. Eu acredito que eles nem chamam os filmes assim, de “documentários”, mas quando querem se aprofundar em temas cotidianos preferem vídeos a livros. Novos hábitos, com influência das redes sociais e dos TikToks da vida, claro, influenciam na linguagem artística dos documentários, que sim, precisam evoluir e acompanhar tendências.
Aliás, talvez esse seja o “X” da questão hoje. Sem público numeroso, os orçamentos para produzir documentários, em geral, são mais modestos que os de ficção. E podem ser. Mas, para fugir do tradicional “talking heads” e investir em camadas narrativas “unscripted”, tempo e, também, equipamentos são fundamentais na busca pela captação da naturalidade dos fatos e da intimidade dos personagens, em flagrantes cotidianos e conflitos reais.
Este cenário nos leva, produtores, ao desafio seguinte. Na minha modesta opinião, o grande gargalo da produção de não ficção: a distribuição. Não basta fazer o filme, é preciso criar novos modelos de negócio, buscar parcerias, tirar proveito da descentralização das mídias, aprender a combinar a potência das comunidades com as novas tecnologias, decifrando algoritmos e estratégias de marketing digital para chegar à audiência certa.
E assim, se a montanha não vai a Maomé (ou às salas de cinema), levamos os docs pra onde os olhos já estão voltados. Porém, a curadoria das plataformas mais robustas se baseia em dados que restringem o interesse da audiência a assuntos mais “pops”, como vida de celebridades, de assassinos e crimes reais, limitando o alcance de temáticas menos comerciais e de formatos mais viáveis, como o próprio Sur l’Adamant, do francês Nicolas Philibert, grande premiado em Berlim.
As várias críticas que li afirmam que o filme chama atenção muito mais pelo tema sensível e humano do que pela complexidade de produção ou linguagem. Mas, o recado é dado. O propósito está todo ali. Com simplicidade, ele acompanha o atendimento a pacientes psiquiátricos que são acolhidos num flutuante instalado no Rio Sena, bem no coração de Paris. A localização nobre da instituição torna visível o que a sociedade costuma fingir não existir, reinserindo de alguma forma aquelas pessoas no dia a dia da cidade. Só vi o trailer. Quero muito assistir!
Bom, depois de premiado, espera-se que o documentário tenha lugar garantido em qualquer plataforma por aqui e que ele contribua para desmistificar o que interessa ao público, ampliando as oportunidades e atraindo mais gente para ver uma história bem contada, um recorte intencional da realidade, uma narrativa inspiradora, uma nova perspectiva de mundo, um olhar crítico, uma denúncia, uma poesia... que entretenha e provoque alguma reflexão. É isso que espero assistir, assim como é para isso que faço documentários. Para gerar discussão, propor diálogos que nos provoquem e nos permitam evoluir como sociedade, como humanidade.
Li recentemente no livro “Novas Fronteiras do Documentário”, do querido Piero Sbragia, uma citação do Robert Evans (produtor de “O Poderoso Chefão” e “O Bebê de Rosemary”) que fiz questão de grifar: “Existem três lados de cada história: o seu lado, o meu lado e a verdade. E nenhum de nós está mentindo. Memórias compartilhadas servem cada um de forma diferente”. Que tenhamos, então, um banquete, com um cardápio bem variado de memórias!
Patricia Travassos
Documentarista e cofundadora da Prosa Press. Diretora dos filmes “Inspira”, “Educação presente para o futuro” e “Inovar é um parto”, lançados em 2022.
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