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Artigo / Tendências & Mercado

08 Fevereiro 2023

A ameaça ao Anexo do Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo, é um alerta para a sobrevivência de cinemas de rua brasileiros

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Quando um cinema de rua é ameaçado de desaparição, ameaça-se também a verve urbana de suas redondezas. Cinemas localizados em ruas e galerias de grandes e pequenas cidades não são apenas equipamentos culturais de lazer que entram na composição da paisagem citadina: são, mais do que isso, elementos que ingressam na configuração de nossas relações afetivas com os espaços, nas imaterialidades de nossos elos com o cotidiano e os trajetos que performamos entre outras pessoas e as coisas. Um cinema de rua, por mais que não entremos nele para nos efetivarmos como espectadores, guarda o poder de derramar sobre as calçadas fragmentos cinematográficos - um cartaz, um nome de filme estampado no letreiro, uma promessa de encontro com a arte, um refúgio entre imagens no meio do vai-e-vem apressado da cidade.

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A fragilidade que ronda a permanência do prédio anexo do Espaço Itaú de Cinema, onde o Instituto Goethe, no passado, na década de 1950, já exibia filmes em 16mm, é um fato preocupante para a estrutura sociocultural da Rua Augusta e da cidade de São Paulo. Desde 2022, há forte ameaça de demolição do casario do conhecido Anexo, cujas instalações incluem duas salas de cinema, jardim e o café Fellini. A área, ocupada pelo cinema desde 1995, foi vendida para um grupo imobiliário focado na gestão de renda no setor de imóveis residenciais e varejistas. A meta é a construção de um empreendimento residencial no local, o que já foi noticiado como um fator decorrente da mudança na destinação de muitos espaços da Rua Augusta: cada vez mais projetos de construção de prédios domiciliares se alastram pela região, tomando o espaço do comércio local. O Anexo do Espaço Itaú de Cinema seria, portanto, mais um caso desse fenômeno. No início deste ano, um projeto de tombamento articulado por alguns entusiastas da salvaguarda do Anexo e a gestão do Espaço Itaú têm tentado adiar a demolição, mas a situação é delicada, pois ainda não há posicionamento do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp.

A pauta deve ser tratada, portanto, como um alerta que aponta para a grande inconsistência de políticas públicas culturais voltadas tanto para a proteção da função cinematográfica de prédios historicamente ocupados por cinemas quanto para a tomada de medidas em prol da sobrevivência física de cinemas de rua no Brasil. É urgente o fomento de discussões em torno da criação de mecanismos que unam a preservação do patrimônio simbólico e do patrimônio de “pedra e cal”, ou seja, arquitetônico, de cinemas de rua brasileiros, encarando a necessidade de amparo diante das investidas da especulação imobiliária.

Uma sala de cinema tem ressonâncias. Trata-se de um ambiente diferenciado de demais equipamentos, no qual a ambiência, a realização de cerne social e o propósito intelectual elaboram sensações, emoções, imaginários e cognições dos frequentadores, entrelaçando-se às produções de memória de todos nós: o filme a que assistimos e com quem o assistimos, as sensorialidades que experimentamos em nossos corpos ao adentrar na sala escura, os aspectos estéticos-narrativos das imagens que passeiam pelas nossas atenções e desatenções, a partilha de duas horas de penumbra, luz e sombras com uma plateia de desconhecidos (que ri junto e chora junto diante da tela que cativa o nosso olhar) etc. Tudo isso faz da experiência com o cinema uma vivência marcante. Imaginem, então, quando essas elaborações podem ser alcançadas, de modo imediato, a partir das ruas por onde circulam os transeuntes? Um cinema de rua é uma promessa feliz, instalada na carne da cidade, de acesso a sonhos, outras sensibilidades e outros tempos-espaços.

Projetos em benefício da proteção de cinemas de rua, assim como campanhas para a sua reativação ou o impedimento de sua demolição e desativação são o coração de muitas ações de atores públicos e privados em vários lugares do mundo, já há décadas. Podemos citar nesse sentido o lindo trabalho do Programa Cine-Rua Pernambuco, da Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, que promove processos de reabertura e manutenção de cinemas de rua em regiões metropolitanas e nos sertões pernambucanos, formando uma forte rede de apoio patrimonial e viabilizando a função exibidora de espaços originalmente voltados para a finalidade cinematográfica. Excelentes exemplos de ativismo em benefício da continuidade da função exibidora, aliados a medidas patrimoniais concretas e a planos culturais governamentais, também podem ser encontrados em países como Bélgica, França, Reino Unido, EUA etc., tendo em vista a retomada ou a manutenção do funcionamento de cinemas. Entre eles, cito o caso do Pathé Palace, hoje Le Palace, no Centro de Bruxelas, que foi reativado depois de quase 30 anos sem operação, com o apoio de agentes da sociedade civil organizada, estado e iniciativa privada.

No Rio de Janeiro, as batalhas travadas pelo Estação NET Botafogo também são um exemplo de fé e busca por alternativas de sobrevivência do cinema, contando com a forte ação de frequentadores-ativistas (movimento #continuameuestação) e recentes expedientes legais municipais que ajudam no processo de luta pela permanência das atividades do cinema (inclusão do Estação, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, no Cadastro dos Negócios Tradicionais e Notáveis da cidade e seu tombamento provisório pelo valor arquitetônico de sua construção art-déco), mesmo que ainda exista pela frente um longo caminho sujeito a intempéries, isto é, a ação judicial de despejo do prédio movida pelo dono do imóvel.

Ou seja, há muitos casos que servem como inspiração para que cinemas de rua não desapareçam. Não se trata “apenas” da preservação de seus prédios, mas de uma efetiva compreensão de que a função exibidora, ou seja, manter os cinemas como cinemas, e de pé, também deve ser cuidadosamente observada para que as imaterialidades de nossas relações afetivas, estéticas e sensoriais não sucumbam ao lamento nostálgico por um cinema desaparecido. Um cinema de rua cumpre um papel importante na construção de sociabilidades, memórias e motivações para a ocupação profícua da cidade e, portanto, é dever da sociedade considerá-los à altura de sua relevância para a salubridade cultural de nossas vidas no meio urbano.

Talitha Ferraz
Talitha Ferraz

É professora da ESPM e do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, realiza pesquisas sobre a história de salas de cinema e a memória dos públicos cinematográficos.

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