Exibidor

Publicidade

Artigo / Tendências & Mercado

31 Agosto 2022

Streaming x Cinema: a falsa oposição entre eles

Compartilhe:

Dia desses, provoquei um talentoso realizador sobre um projeto (interessantíssimo, por sinal) que temos desenvolvido juntos: “Fulano, essa ideia daria um bom podcast, ein? Que acha?”. Ele me respondeu: “Bom, se é isso o que precisamos fazer para o projeto andar, vamos em frente” – sem esconder, apesar da elegância, um profundo desapontamento.

Publicidade fechar X

Saí da conversa pensando: por que nós, realizadores e espectadores, nos agarramos a uma espécie de hierarquia entre conteúdos? Algo parecido costuma acontecer, por parte do público, quando falo sobre os documentários que produzi ou dirigi. “Ah, mas então é documentário, e não filme, né?”.

Em abril, ao participar do RIO2C, tive a oportunidade de reencontrar colegas de mercado, players, produtores, roteiristas: acontecia ali o que me parecia uma consagração, depois de anos, da convergência entre todas as mídias. Cada vez mais conectadas e transpostas, quando juntas elas têm ampliado alcances, possibilidades e, principalmente, vozes. Por isso a importância de afastar profecias apocalípticas e pensar serenamente em políticas e estratégias que promovam sinergia e mitiguem riscos. Acima de tudo, que façam projetos circularem.

Particularmente, sempre ouvi com certa desconfiança esse raciocínio de que o modelo do streaming seria o substituto, e portanto, o pivô do fim do cinema. Primeiro porque, para acreditar nisso, eu teria que concordar que se tratam, os dois, da mesma coisa. Não concordo. Segundo porque também sempre achei precipitado tecer vereditos a respeito de uma realidade que mudou tanto – e continua mudando – ao longo dos últimos anos. Se algo tem ficado cada vez mais cristalino é que o streaming não empobreceu a experiência audiovisual: ele não é excludente, pelo contrário, é complementar. E me nego a acreditar em respostas simplistas e reducionistas para questões complexas e, por que não, estimulantes?

Em compensação, também me incomoda quando ouço que o streaming “democratizou” o consumo. É evidente que expandiu e facilitou o acesso a conteúdos diversos – principalmente quando pensamos que diversas regiões do país nem sequer possuem salas de exibição. De certa forma, com ressalvas, também desestimula a pirataria. Mas se pensarmos em como as plataformas digitais, com seus algoritmos e funcionalidades, nos convidam a agir como tiranos, soberanos em nossos sofás, o termo “democratizar” não me parece o mais adequado. Sempre achei, por exemplo, que o audiovisual é mais que entretenimento, é também ferramenta de reflexão – e às vezes, a facilidade de decisão também nos dá o poder de simplesmente deixar de assistir a conteúdos que causam desconforto ou nos convidam a pensar e repensar.

Como produtor executivo, não vou me esquivar de custos e logísticas: lançar no digital é mais simples e barato, é verdade. Além disso, os aparelhos eletrônicos estão cada vez mais capazes de garantir qualidade e imersão no conforto de casa (os preciosistas que me perdoem). Em compensação, as receitas costumam ser menores. Ao alugar um filme em casa, por exemplo, três, quatro, cinco, inúmeras pessoas podem assistir ao invés de pagarem tickets individuais. Por isso considero um erro pensar em falsas equivalências entre a experiência do streaming e a do cinema.

Acho importante citar: no caso de “Chorão: Marginal Alado”, documentário que dirigi, apesar de ter sido lançado, na época, em poucas salas de exibição, por conta da pandemia – tendo tido uma estratégia digital muito mais abrangente - até hoje, quando o filme é programado em circuitos presenciais, as pessoas continuam saindo de suas casas para prestigiar nosso trabalho. Há uma catarse, uma vivência coletiva, que só as salas de exibição são capazes de propiciar – e continuarão fazendo isso. O streaming não é a primeira novidade que chegou “na praça”, e, certamente, não será a última, nesses mais de cem anos da história do cinema.

Mas não adianta, o streaming veio pra ficar. O movimento que as premiações e toda a cadeia produtiva têm feito nesse sentido é evidente. A experiência do on demand já está enraizada, embutida nos nossos hábitos (outro dia, enquanto assistia ao Jornal Nacional ao vivo, o interfone tocou e eu, automaticamente, tentei pausar com o controle). Trata-se de um caminho sem volta.

Naqueles dias de RIO2C e, diariamente no trabalho árduo que é fazer audiovisual no Brasil, uma coisa me parece inegociável, apesar de quaisquer transformações e turbulências no processo: queremos ampliar vozes e contar histórias.

É inegável que a cultura do streaming impactou o consumo dessas histórias, as formas com que as produzimos, os indicadores de mercado com que analisamos seus resultados. Ainda estamos reaprendendo, por exemplo, como avaliar um produto audiovisual bem-sucedido atualmente.

Para quais números devemos dar atenção? Para quais públicos e para quais de seus hábitos devemos planejar? Quais as políticas que temos que redesenhar e quais delas devemos reafirmar, para que a indústria seja sustentável em todas as pontas? São só algumas das perguntas que temos nos feito, repetidamente, como produtores, distribuidores e exibidores. Muitos têm se irritado com esse momento de incertezas e questionamentos.

Com eles divido um rápido momento que vivi com minha vó no supermercado. Ela, que completou 80 anos recentemente – e é uma heavy user de todas as plataformas de streaming – encontrou uma antiga conhecida. Enquanto eu empacotava as compras, ouvi a senhora dizendo a ela, ao falarem sobre os netos: “Nossa, como eles questionam a gente, não é? Imagina que a gente podia questionar assim!”. Dona Soeli, que adora The Crown, Downton Abbey e filmes da Pixar, e me liga às vezes porque esqueceu a senha da Netflix, respondeu de pronto: “Eu acho ótimo. Se eles não me questionassem eu estaria fadada a ser velha! Deus me livre!”.

 

Felipe Novaes
Felipe Novaes

Felipe Novaes é formado em Jornalismo pela Cásper Líbero, em São Paulo, especializado em Produção Audiovisual pela New York Film Academy e pós-graduado em Cinema Documentário pela FGV-Rio, sob orientação de Eduardo Escorel. Estudou também "Documentários com Imagens de Arquivo", no IMS-Rio e "Ancine e Fundo Setorial do Audiovisual para Cinema e TV" com Vera Zaverucha. Tem na bagagem uma década de audiovisual e como diretor e produtor executivo, lançou "Chorão: Marginal Alado". Atualmente, é produtor executivo de entretenimento da Brigitte Filmes, encabeçando o desenvolvimento de inúmeros projetos, como seu próximo longa-metragem, "A CAPA", a série audiovisual “ELKE”, adaptação da biografia de Elke Maravilha escrita por Chico Felitti, e dezenas de outras obras.

Compartilhe: