19 Agosto 2022
Oportunidades do mercado de capitais na indústria musical
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A expansão do mercado musical, a nível mundial, vem sendo notável nos últimos anos e conta com previsões ainda mais ambiciosas. De acordo com a versão de 2022 do relatório “Music in the Air”, elaborado pelo Goldman Sachs Group[1], as projeções globais para 2030 giram em torno de US$ 131 bilhões de receita (equivalente a, aproximadamente, R$ 706 bilhões[2]), envolvendo arrecadação de royalties, shows e performances ao vivo e exploração de gravações musicais, seja em plataformas de streaming, em vendas de CDs, entre outros.
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Para efeito de comparação, em 2021, só o mercado fonográfico brasileiro ocupou a 11ª posição no ranking mundial elaborado pela IFPI – International Federation of the Phonographic Industry, atingindo a marca de R$ 2,1 bilhões em receita advinda desta indústria[3], enquanto o mercado mundial arrecadou US$ 25,9 bilhões.[4]
Esse panorama de transformação do mercado está ligado não só ao retorno dos shows e festivais após a flexibilização das restrições impostas contra à Covid-19, mas também ao comportamento da Geração Z, que, segundo o relatório, gasta um valor anual em música maior do que as outras gerações, além de considerar de muita importância ter acesso a milhões de músicas através de seus smartphones.
Outra contribuição para esse panorama são os investidores, que estão enxergando oportunidades de investimento em direitos musicais, através do mercado de capitais. Tanto o é, que não espanta o fato de um relevante banco de investimentos como o Goldman Sachs levantar dados sobre o comportamento do mercado musical em até 8 anos no futuro.
Dois exemplos de modalidades de investimento merecem a atenção do mercado: de um lado, a XP Asset Management que, junto a Opus Entretenimento, estruturou um fundo voltado à exploração comercial de shows de diversos artistas brasileiros; e, de outro lado, a Hurst Capital, que gere fundos de investimentos voltados à “compra de catálogos” de artistas.
No caso da XP, trata-se de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não-Padronizados, cujos direitos creditórios correspondem aos valores que os artistas teriam a receber no futuro por suas performances em shows (ou seja, o valor de seus cachês)[5]. Assim, apesar de ser um fundo ligado ao entretenimento e ao mercado musical, seu ativo não está atrelado a direitos autorais, mas aos serviços de performance artística dos intérpretes.
Nesse cenário, surgiu a Opus, que além de outras obrigações frente ao FIDC-NP, atua como intermediador com os artistas, firmando os contratos com seus representantes ou agentes, nos quais os artistas comprometem-se a realizar determinada quantidade de shows e a empresa “passa a ser titular dos direitos sobre a produção dos shows de tal artista”[6]. Ainda, uma vez que a Opus agencia talentos diretamente, há a possibilidade de firmar referidos contratos na sua condição de agência[7].
Em suma, e colocando a operação no holofote, (i) os artistas (por meio da Opus) cedem ao fundo determinada quantidade de performance em shows e eventos (ii) em troca do valor total de cachê por todos esses shows, (iii) sendo que esse valor total é pago adiantadamente, com desconto, pelo fundo, que (iv) fica com os direitos de exploração econômica dos shows e eventos futuros. Para além desse sistema, a parceria Opus/XP também visou capitalizar receitas secundárias aos contratos de performance, já que os eventos podem gerar ganhos com “a operação de bares, transmissão ao vivo e patrocínios”, sendo que os próprios patrocinadores poderão inovar e, por exemplo, oferecer um meet&greet no backstage dos shows[8].
Assim, as peças-chave dessa estrutura são os contratos onerosos de exploração comercial de determinada quantidade de shows dos artistas e a avaliação da relação deles com suas respectivas gravadoras, pois é comum que estejam amarrados a contratos de exclusividade. Caso essa situação seja verificada, a negociação sobre as performances se dará diretamente com a gravadora, responsável por quaisquer interpretações musicais na carreira do artista (observados os limites de seu contrato).
Esta negociação não se confunde com os direitos de execução pública musical devido aos compositores ou titulares das obras musicais, direitos esses recolhidos por meio do Ecad, que repassa os valores arrecadados em eventos aos titulares destas obras.
Ademais, o foco de um FIDC que decida investir em eventos artísticos também deve estar voltado ao tamanho das performances e dos shows, ao ticket médio, à potencialidade de venda de ingressos, entre outros fatores que permeiam a cadeia econômica de empreendimentos desta natureza, vez que os ganhos não virão dos artistas individualmente, mas desses eventos como um todo.
Já no caso da Hurst, o foco de seus fundos é o investimento em ativos reais[9] que, na classificação da gestora, engloba os “royalties de propriedade intelectual”[10]. Referidos royalties podem ser traduzidos, no direito brasileiro, como os valores decorrentes da exploração comercial dos direitos autorais advindos da obra musical (composição e arranjo) ou do fonograma (“fixação da obra em um suporte material”[11]). Ambos esses elementos, em conjunto, formam a “música” e, na prática, são trabalhados separadamente.
Em termos gerais, o ativo objeto deste tipo de investimento seria a exploração econômica dos direitos adquiridos com a “compra de catálogo” de determinado artista, que geralmente é de titularidade das editoras e gravadoras, com quem as negociações ocorrerão.
Ainda, vale deixar claro que os termos “compra” ou “venda” de catálogo são termos importados do inglês, mas o que ocorre no Brasil é a cessão integral dos direitos patrimoniais de autor sobre as obras musicais ou sobre os fonogramas, vez que não é possível alienar ou ceder os direitos morais de autor[12]. Dessa forma, o “comprador”, na verdade, é o cessionário dos direitos patrimoniais sobre as obras musicais ou os fonogramas.
Tomando como base a negociação diretamente com compositores – ou seus herdeiros – é possível que eles “vendam” (cedam) seus catálogos de obras musicais (os direitos patrimoniais sobre sua porcentagem daquelas obras musicais) para terceiros, que adiantam os valores que o compositor receberia no futuro com a exploração de suas obras musicais (os royalties). Assim, há uma estimativa de quanto renderiam os direitos autorais daquele artista futuramente versus o potencial de exploração da obra musical pelo “comprador” (cessionário).
Em se tratando especificamente de obra musical, para que o valor dos royalties seja devidamente estimado e para que o ativo seja trabalhado de forma a gerar a maior margem de lucro possível, é necessário compreender, dentre outros, (i) quem são todos os titulares da obra musical, incluindo autores, compositores e editoras; (ii) quais os direitos previstos nos contratos de cessão originais, incluindo direitos digitais; (iii) como explorar economicamente a referida obra; e, a partir da identificação de qual direito sobre a obra é detido pelo “comprador” (cessionário), entender qual o potencial de exploração daquela obra musical, seja através de (a) streaming, (b) arrecadação de execução pública musical, (c) fixação da obra em novos fonogramas, (d) venda de suportes materiais (como CDs), (e) sincronização em obras audiovisuais no geral ou sincronização em campanhas publicitárias, entre outras formas de exploração econômica.
De modo sintético, supondo que o cedente tenha a integralidade dos direitos sobre suas obras musicais, ele cede esses direitos para o “comprador” (cessionário), que receberá os royalties sobre a exploração comercial total de tais obras musicais durante o prazo de sua proteção legal. Assim, os ativos a serem investidos pelos fundos, na verdade, não são os royalties em si, mas dividendos sobre a exploração comercial de direitos sobre a música (sobre sua composição ou sobre seu fonograma) que, explorados, geram royalties.
Este tipo de “venda” (no Brasil, cessão) de direitos sobre catálogos musicais vem crescendo cada vez mais na indústria, e conta com exemplos de grandes personalidades do mundo musical, como Bob Dylan, que controlava a maior parte dos direitos sobre suas composições e os vendeu para o Universal Music Group, que agora controla 100% dos direitos autorais de seu catálogo[13]. Paralelamente, Dylan vendeu os direitos sobre seu catálogo de gravações para a Sony Music, dona da gravadora Columbia Records, que acompanhou sua carreira artística[14].
Esta segunda venda demonstra que a “compra de catálogo” também pode ser realizada com enfoque nos fonogramas, e os cuidados e avaliações de mercado são semelhantes aos direcionados à cessão de direitos de obras musicais. No âmbito dos catálogos de fonogramas, é imprescindível que futuros cessionários se atentem, além de outros riscos jurídicos, aos contratos com todos os intérpretes, músicos acompanhantes e todos os partícipes dos fonogramas, para que não exista qualquer “liability” a ser transferida ao “comprador” e para garantir a cessão total de direitos para que a operação possa ser realizada.
Desse modo, antes de qualquer investimento, é preciso identificar se a pessoa ou entidade com quem se está negociando (seja editora, gravadora, autor, intérprete ou herdeiro) está “vendendo” apenas a sua parte da obra musical ou do fonograma, ou a totalidade dos direitos da música (obra e fonograma). Para tanto, é fundamental a realização de due-diligence contratual que ateste a titularidade de todos estes direitos pelo cedente, para que este os possa transferir ao cessionário.
Em relação aos modos de exploração comercial que podem potencializar os ganhos de royalties das músicas, a sincronização de obras musicais e fonogramas em filmes e séries de sucesso podem desencadear um ganho em escala, em todas as formas de receitas. Um exemplo emblemático foi a utilização da obra musical e do fonograma “Running Up That Hill” – de autoria e interpretado por Kate Bush, originalmente gravado em 1985 – na 4ª temporada da série “Stranger Things”, produzida pela Netflix. O fonograma foi licenciado pela Sony, gravadora representante de Kate, e o sucesso da série levou tanto a cantora como sua música para o topo das paradas musicais.
Adentrando o investimento em si, para que fundos possam gerar royalties (independentemente do catálogo objeto de sua carteira), é imprescindível realizarem extensas análises de cadastros e receitas passadas e possivelmente futuras desses ativos, além de terem extenso conhecimento sobre os metadados[15] e sua relação com esses ativos. Afinal, a “compra de catálogo” pode ser muito lucrativa, mas também há riscos e liabilities intrínsecos ao funcionamento do mercado musical que necessitam da atenção dos investidores.
Em 8 anos, com uma cifra tão expressiva do mercado musical global, será possível identificar se os riscos inerentes ao mercado musical foram corretamente endereçados e se os fundos de investimento encontraram um novo nicho comum entre os investidores, a nível global e nacional.
Disclaimer: o presente artigo não pretende detalhar o funcionamento dos fundos de investimento aqui citados, sendo seu objetivo fornecer panorama resumido e objetivo sobre novas formas de capitalização do mercado musical. Para total compreensão das características, dos objetivos e dos riscos relacionados aos respectivos fundos, recomenda-se buscar informações diretamente junto aos administradores e gestores dos respectivos fundos, bem como diretamente junto à Comissão de Valores Mobiliários (www.cvm.gov.br). Este artigo não é uma oferta ou recomendação de investimento.
[1] GOLDMAN SACHS. Music In The Air. Disponível em: <https://www.goldmansachs.com/insights/pages/infographics/music-streaming/index.html>.
[2] Valor calculado através do Conversor de Moedas do Banco Central do Brasil, na data de elaboração deste artigo.
[3] PRO-MUSICA BRASIL. Relatório “Mercado Fonográfico Mundial 2021”. Disponível em: <https://pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2022/03/Mercado-Brasileiros-em-2021-ProMusicaBR-FINAL.pdf>.
[4] IFPI. Industry Data. Disponível em: <https://www.ifpi.org/our-industry/industry-data/>.
[5] De acordo com o “REGULAMENTO DO XP OPUS I FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS NÃO-PADRONIZADOS” (que pode ser encontrado em: <https://www.brltrust.com.br/?administracao=xp-opus-i-fidc-np>), há outros fatores que compõem os direitos creditórios deste FIDC-NP, não se resumindo exclusivamente às performances dos artistas. O presente artigo não pretende abordar todas as particularidades deste FIDC-NP, mas apenas dar um panorama geral sobre a securitização de direitos relacionados à indústria musical.
[6] Regulamento do XP OPUS I Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não-Padronizados”. P. 69. Disponível em: <https://www.brltrust.com.br/?administracao=xp-opus-i-fidc-np>.
[7] Regulamento do XP OPUS I Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não-Padronizados”. P. 24. Disponível em: <https://www.brltrust.com.br/?administracao=xp-opus-i-fidc-np>.
[8] VALTRICK, BRUNA. Conheça o fundo da XP que investe em shows: entre os artistas participantes, estão Bruno e Marrone, Raça Negra e Seu Jorge. Publicado em 10 out. 2021, em: <https://seucreditodigital.com.br/xp-fundo-de-investimento-shows/>.
[9] Definição a seguir retirada do site da própria Hurst Capital: https://blog.hurst.capital/blog/ativos-reais-o-guia.
[10] A contraposição a esses ativos reais seriam os ativos financeiros, por exemplo, ações e títulos públicos ou privados.
[11] ABRAMUS. OBRA & FONOGRAMA: Obra e Fonograma, embora sejam diferentes, ainda geram dúvidas na hora de fazer o cadastro. Disponível em: <https://www.abramus.org.br/noticias/10277/obra-fonograma/>.
[12] A “compra de um catálogo”, por um fundo, não é a compra da música em si, que possui diversos titulares de direitos, mas uma porcentagem de sua obra musical ou de um de seus fonogramas.
[13] FORBES. Bob Dylan vende seu catálogo de composições para o Universal Music Group. Disponível em: <https://forbes.com.br/negocios/2020/12/bob-dylan-vende-seu-catalogo-de-composicoes-para-o-universal-music-group/>.
[14] GuitarLoad. Bob Dylan vende direitos de seu catálogo de gravações para a Sony Music. Disponível em: <https://guitarload.com.br/2022/01/24/bob-dylan-venda-direitos-sony/>.
[15] A função do metadado é justamente cruzar os registros da utilização das obras musicais ou fonogramas com os dados sobre as titularidades de direitos dessas obras ou fonogramas, de modo que todos os titulares recebam seus devidos royalties.
Gabriela Biscotto
Gabriela Biscotto é advogada da área de Entretenimento do CQS/FV Advogados, graduada pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduanda em Propriedade Intelectual, Direito do Entretenimento, Mídia e Moda, pela Escola Superior de Advocacia. Fundadora e coordenadora do grupo de extensão “Nelson121 – Direito e Audiovisual”, vinculado à faculdade de Direito da USP."
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