22 Fevereiro 2022
Rust, acidentes em sets de filmagem e segurança dos trabalhadores
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Há alguns meses, chocou o mundo a notícia da morte de Halyna Hutchins, de 42 anos, atingida por um disparo acidental no set do filme Rust. Alec Baldwin, que atuava no papel principal e era produtor executivo da obra, ensaiava uma cena em que utilizava uma arma que acreditava estar carregada com um cartucho cênico; no entanto, na realidade, a munição era verdadeira.
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O disparo, ocorrido em outubro de 2021, também atingiu Joel Souza, o diretor do filme, que ficou levemente ferido. Hutchins, contudo, não resistiu aos ferimentos e faleceu no trajeto até o hospital. A profissional, que em 2019 tinha sido eleita pela American Cinematographer como uma das diretoras de fotografia mais promissoras da indústria, deixou o marido, Matthew Hutchins, e o filho, Andros, de 9 anos.
Nos últimos dias, o caso voltou a receber uma maior atenção midiática, diante da notícia de que a família de Hutchins ingressou com uma ação judicial, que teria como réus Baldwin, sete produtores, e outros diversos profissionais que participavam da realização do longa. A família da vítima alegou ter havido imprudência e negligência por parte dos envolvidos, que teriam falhado em garantir condições adequadas de segurança no set, resultando no acidente.
Ainda existem muitos questionamentos a serem respondidos pela investigação do caso, diante das diversas versões apresentadas pelos presentes, e dos detalhes fáticos a serem averiguados. Para além dessas questões, o caso também apresenta desafios jurídicos, relativos às possibilidades de responsabilização cível e criminal dos envolvidos. Como a investigação ainda está em curso e a ação foi proposta muito recentemente, é provável que ainda demore anos para que o caso tenha um efetivo desfecho.
No entanto, cabe destacar que acidentes em sets de filmagem não são novidade ou raridade em Hollywood. De acordo com dados da The Associated Press, entre 1990 e 2014, ao menos 194 acidentes sérios ocorreram em produções cinematográficas nos Estados Unidos, resultando em ao menos 43 mortes.
Na história do cinema e da televisão, são frequentes os acidentes fatais envolvendo armas de fogo, mas não apenas; há relatos também de afogamentos, quedas, colisões de veículos, incêndios, atropelamentos, entre outros. Alguns desses casos adquiriram especial notoriedade.
Em 1982, a gravação de uma cena do filme Twilight Zone que envolvia a utilização de um helicóptero resultou na morte de três atores, dos quais dois eram crianças. A sequência foi gravada de noite, em horário em que menores de idade sequer poderiam estar no set, e o diretor determinou ao piloto que conduzisse a aeronave em uma altura mais próxima do solo do que a recomendável.
O helicóptero acabou atingindo Vic Morrow, de 53 anos, Renee Shin-Yi Chen, de 6 anos e Myca Dihn Le, de 7 anos. O diretor, John Landis, e mais quatro pessoas que trabalhavam na produção foram acusadas de homicídio culposo. O caso foi levado ao júri que, após quase um ano de julgamento, acabou por inocentar todos os envolvidos.
Em 1993, durantes as gravações do filme O Corvo, uma arma carregada com cartuchos cênicos foi utilizada para uma cena na qual um personagem, vivido por Brandon Lee, era vítima de um disparo. No entanto, a arma não foi corretamente verificada e estava carregada com um projétil falso de outra cena que, impulsionado pelo disparo, atingiu o ator. Lee, então com 28 anos, foi a vítima fatal do acidente.
Existem algumas alternativas quando cenas envolvendo armas são gravadas em produções audiovisuais. Em cenas que não envolvem tiros, mas somente a manipulação da arma, é possível a utilização de uma variedade de réplicas, com diferentes graus de detalhe e feitas de materiais diversos.
Para cenas em plano fechado, normalmente são usadas as chamadas function guns, que são feitas com os mesmos materiais e partes de uma arma verdadeira, e podem ser carregadas, mas não são capazes de disparar. Por sua vez, quando é necessário mostrar várias armas à distância, são frequentemente utilizadas rubber guns, armas de borracha, menos realistas que as function guns, mas muito mais efetivas em termos de custo.
No entanto, quando a cena envolve um disparo, as réplicas não são suficientes para produzir o efeito desejado, de modo que surgem duas outras opções. Suicide guns são armas verdadeiras em que o cano é selado, de modo que não é possível efetivamente disparar munição, mas é produzido o efeito sonoro correspondente.
Contudo, em cenas em que de fato é necessário filmar uma bala sendo disparada, são utilizadas as chamadas blank guns, armas reais carregadas com cartuchos cênicos (blank cartridges). Esses cartuchos contêm pólvora, mas não possuem o projétil na frente do estojo – o que chamamos no Brasil de “balas de festim”. Tais armas proporcionam efeitos mais realistas nas filmagens, visto que produzem o som, a luz e o recuo de um tiro verdadeiro.
No entanto, além de custoso, o uso de blank guns é bastante perigoso. As próprias balas de festim já são capazes de provocar acidentes, se disparadas a uma curta distância. Além disso, qualquer resíduo no cano da arma, quando empurrado pela munição cênica, pode ser fatal – foi o que ocorreu em O Corvo. Finalmente, se a arma for carregada erroneamente com munição verdadeira, como ocorreu no set de Rust, os resultados são desastrosos.
Não existe, nos Estados Unidos, legislação ou regulamentação específica sobre o uso de armas de fogo em filmagens. Os sindicatos e comitês da indústria fornecem algumas diretrizes sobre o tema, mas, na prática, o atendimento a boas práticas de segurança no set acaba dependendo da própria produção.
Para minimizar riscos, é muito importante que gravações com uso de armas de fogo sempre tenham no presente no set um armeiro, o profissional responsável pela supervisão e manutenção de todas as armas, bem como por instruir os atores para seu manejo seguro. No entanto, por vezes, nem mesmo a presença desse tipo de profissional é suficiente para evitar completamente a ocorrência de acidentes.
Por essa razão, existe um movimento para que armas verdadeiras não mais sejam utilizadas em filmagens. É possível substituir as armas de fogo por réplicas e, em cenas que envolvam disparos, fazer uso da computação gráfica para produzir os efeitos visuais desejados. Essa tese enfrenta certa resistência, devido aos custos elevados da utilização de CGI, e também à forte cultura armamentista presente nos Estados Unidos.
No entanto, após o acidente em Rust, passou a circular uma petição pedindo que armas de fogo fossem proibidas nos sets hollywoodianos. A petição teve mais de 20 mil assinaturas em menos de 24 horas e contou com o apoio de diversos atores, como Olivia Wilde e Holland Taylor. Em seguida, Dave Cortese, senador da Califórnia, afirmou que irá propor um projeto de lei para banir armas de fogo das produções no estado. Um grupo de 214 diretores de fotografia também escreveu uma carta aberta pedindo a proibição.
No Brasil, tampouco existe legislação ou regulamentação específica sobre segurança em filmagens. Quando em comparação com outras localidades, como os Estados Unidos, nosso país possui uma frequência menor de acidentes. Nas produções nacionais, quando são gravadas cenas envolvendo armas, costumam ser utilizadas apenas réplicas ou suicide guns, tanto por razões de custo, quanto pelas restrições impostas pela legislação pátria sobre armas de fogo.
Isso não significa, contudo, que problemas de segurança dos trabalhadores no audiovisual não existam. Em 2017, após a morte de dois técnicos de cinema, eletrocutados durante uma filmagem em São Paulo, o Sindcine promoveu o 1º Seminário de Segurança em Filmagens, para discutir as condições de segurança na indústria.
Como resultado do evento, foi produzida uma lista de diretrizes, indicando boas práticas a serem seguidas para minimizar riscos e evitar acidentes. Iniciativas como essa são importantes para trazer atenção para um tema de tal relevância, que ainda precisa ser bastante discutido, nacional e internacionalmente.
O ocorrido nas filmagens de Rust revela não somente a necessidade de estabelecer melhores normas de segurança para filmagens, mas de garantir aos profissionais da indústria condições gerais de trabalho adequadas. Cerca de seis horas antes do acidente, diversos profissionais abandonaram o set, em protesto por péssimas condições trabalhistas.
Houve relatos de jornadas excessivamente longas, acomodações muito distantes do set, atrasos nos pagamentos e falhas em seguir protocolos de segurança. Fontes afirmaram que Hutchins defendia melhores condições de trabalho para os profissionais do longa, mas não aderiu ao protesto. Os membros que deixaram o set eram sindicalizados e foram imediatamente substituídos por outros, não sindicalizados, e que não estavam envolvidos no filme anteriormente.
Fontes também narraram que, antes do acidente ocorrer, um dos operadores de câmera já havia reclamado para os produtores a respeito da falta de segurança para uso de armas no filme. Ademais, houve relatos de que, alguns dias antes, um dublê fizera dois disparos acidentais de munição verdadeira, após ter sido informado de que sua arma estava descarregada – felizmente, ninguém havia sido ferido na ocasião.
No entanto, esse incidente não foi suficiente para que os responsáveis pela produção revissem as condições de segurança no set, o que teria possivelmente evitado a tragédia. Segundo consta, embora o filme contasse com uma armeira, a arma carregada foi entregue a Baldwin por um assistente de direção, que lhe disse que era seguro utilizá-la. Destaca-se que também não havia médico no local para prestar os primeiros-socorros aos feridos.
Não é raro que, em nome do orçamento e do cronograma, produções audiovisuais sacrifiquem o bem-estar e a segurança de seus profissionais. No entanto, cabe lembrar que o cerne da indústria cinematográfica está na contribuição daqueles que a compõem. Nada justifica que vidas e talentos como o de Halyna Hutchins ainda sejam perdidos “em nome da arte” – ou em razão de ganância e negligência.
Luísa Roman
Luísa Roman atua com Direito do Entretenimento no CQS/FV Advogados. É graduanda em Direito na Universidade de São Paulo (formatura em dez/2021), instituição na qual coordena o Grupo de Estudos de Direito do Entretenimento (GEDE-USP). Dedica-se também à pesquisa acadêmica, com enfoque na temática de Direitos Humanos e Gênero.
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