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Artigo / Tendências & Tecnologia

20 Outubro 2021

Lanterna mágica

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Um dia da minha infância, num tempo tão distante que a minha referência na memória era ver adultos como gigantes, um parente me levou para um cinema que era a delícia das crianças. Cinema de rua como eram antigamente, com programação continuada que incluía desenhos coloridos, e em branco e preto episódios dos Três Patetas, de Abbot e Costello, e de Buck Rogers que invariavelmente terminavam com o herói numa enrascada, e se eu soubesse ler, entenderia nos créditos finais o anúncio “continuará na próxima semana neste cinema”. Tarde com gosto de chocolate com sabor de hortelã. Mas em algum momento, a minha atenção tinha abandonado a tela e apontado no sentido contrário, para o feixe de luz que saía do fundo da sala, que mudava para vários feixes em movimento, que ficavam vermelhos, verdes, brancos, que colapsava novamente em um feixe só, que sumia no negro, que voltava pleno sem aviso.  Quando meu tio reparou que eu não estava olhando para a tela, e sim para a parte de trás da sala, ficou intrigado.  -Mas você não está assistindo o filme, está olhando o que?  Por sorte ele percebeu o meu fascínio com essa luz mágica. E melhor ainda, me convidou para ver o que havia lá, qual a origem disso. Não sei que conhecimento ele teria desse cinema, mas não demorou muito para conseguir a simpatia e o permisso da gerência. Lembro de segui-lo e subir muitos degraus num estreito corredor-labirinto, como uma espécie de passagem para uma região desconhecida. No final da escada, uma porta dava acesso a um quarto pequeno, e nele um operador atendia com pressa duas máquinas enormes e idênticas, cada uma delas com dois rolos na frente, e na parte de trás um cilindro deitado com uma chaminé. Uma das máquinas tinha os rolos girando, e no cilindro uma janelinha azul deixava ver dentro um pequeno sol, a fonte da luz poderosa e misteriosa. As duas máquinas apontavam para pequenas janelas qual canhões de antigos navios de guerra. Outras janelas no muro deixavam ver a tela e a plateia embaixo desde um ângulo novo, e o cone de luz saindo e se espalhando até virar a imagem na tela. De tempos em tempos, um outro pequeno e poderoso sol ligava dentro da segunda máquina, seus rolos começavam a girar, e um estalo metálico marcava o momento em que o vértice do feixe de luz mudava de lugar. A seguir, a primeira máquina apagava seu sol, seus rolos paravam, o operador rapidamente retirava o rolo inferior, corria para uma mesa e transferia com uma manivela o filme rápida e ruidosamente para um outro rolo vazio, que era imediatamente guardado numa estante. Logo a seguir retirava um novo rolo dela e o carregava na primeira máquina, e tudo começava outra vez. Em cada ciclo, acender esses sois tinha o seu ritual. Apertar um grande botão vermelho, virar uma rodinha, ajustar alguma coisa dentro do cilindro observando pela janelinha até que o sol brilhasse novamente. O operador executava uma coreografia precisa, agitada e continua entre as máquinas, a mesa, a estante, um espetáculo hipnótico. Fiquei observando não sei quantos desses ciclos, marcando uma memória que nunca mais seria esquecida. Nas semanas seguintes, nas brincadeiras no pátio da casa familiar, uma bicicleta levantada em riste e equilibrada de alguma maneira sobre uma mesinha faria as vezes dessas máquinas, suas rodas imitando os rolos que rodavam graças ao pedal que tinha virado manivela, e o selim imitando a lente. Com os anos, soube que o nome verdadeiro do pequeno sol era lâmpada de arco, que as rodas eram rolos, o nome da máquina projetor, o nome do cilindro lanterna, a salinha cabine.

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O tempo foi mudando as coisas. Os dois projetores viraram um, os rolos viraram um grande prato deitado, não houve mais troca-troca de rolos, correria do operador. Muitas salas cresceram juntas, uma colada com a outra, a cabine transformada num longo corredor, e um operador invisível fazia as luzes da sala ligar ou desligar, cada um dos projetores rodar na hora certa. As lâmpadas de arco foram trocadas por lâmpadas xênon que não precisavam mais ajustes de rodinhas entre rolo e rolo. Ligavam no início da jornada e desligavam após a última sessão.  Tempos depois os pratos e os filmes sumiram. Não mais subiram até as cabines, porque as novas máquinas que ocupavam as galerias de projeção não precisavam. As imagens e os sons vinham agora em discos rígidos, ou subiam por cabos de redes, depois de descer a terra vindos de satélites com órbitas a 36000 Km de altura.  E depois, até as galerias de projeção começaram a sumir e se tornaram pequenas cápsulas dentro das salas. E veio o tempo em que as lâmpadas xênon, fabricas dos pequenos sois, começaram a deixar os suportes no interior das lanternas, para dar lugar a semicondutores laser que faziam o mesmo, mas duravam muito mais.  Muitas coisas mudaram e continuam mudando.

A arte de fabricar outros mundos e de fazer as pessoas viver neles durante algumas horas continua igual, embora agora os criamos e recriamos de outras maneiras. São mundos diferentes do nosso cotidiano que podem servir como escape, como meio de contar uma história ou de passar uma mensagem. Porque em essência e como diz um grande amigo, cinema serve para entreter, emocionar e inspirar.  Por isso precisamos dele.

Nesse dia de um passado tão distante em que visitei pela primeira vez uma cabine de projeção, o cinema entrou nas minhas veias. Quando Giuseppe Tornatore me contou essa mesma história muitos anos depois em seu Cinema Paradiso, eu já a conhecia muito bem.

Carlos Klachquin
Carlos Klachquin | CBK@dolby.com

Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.

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