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Artigo / Tendências & Mercado

01 Setembro 2021

Scarlett Davi X Disney Golias

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Parece que estou atrasada, afinal alguns dias depois do caso Scarlet contra a Disney, já tivemos reflexões, entre elas a da Renata Vomero, aqui no Portal Exibidor, como reflexo desses tempos estranhos em que surgiram dois times: aliados da atriz x aliados do Mickey Mouse.

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Como não poderia deixar de ser, saíram memes desopilantes e então assunto encerrado. Será? Pego o gancho da Renata quando ela diz “novos capítulos devem surgir dessas histórias” para voltar um pouco no tempo. Scarlett, todos nós conhecemos e mais tarde volto para falar dela, mas alguém já ouviu falar de Adriana Caselotti? Elas têm algumas coisas em comum. Adriana era filha de uma cantora lírica italiana que migrou para os Estados Unidos e, como tantas crescidas sob a sombra do big crash, sonhava em ser atriz. Tentou muito, em vários estúdios, e assim como Johansson, também se envolveu num processo contra a Disney no final da década de 30, há quase um século. Porém, as coincidências param por aí, a carreira tão sonhada de atriz de Adriana Caselotti não deslanchou. Conseguiu atuar em um único filme, aparecendo rapidamente em A Felicidade Não Se Compra de 1946. Ela é a mulher que canta no bar enquanto James Stewart vive seu conflito interno. Antes disso, em 1937, Adriana foi contratada para dublar a voz da primeira princesa animada da Disney, a Branca de Neve. Parecia o papel dos sonhos. Walt a contratou após testar vozes de 900 garotas e a aspirante assinou um contrato espúrio, em que constava que ela não poderia usar sua voz novamente numa atuação, fosse rádio, cinema ou teatro – sua voz pertencia à Disney forever. Não lembra um pouco o que Úrsula disse para Ariel em A Pequena Sereia? Vai vendo.

Apesar do filme ter sido um grande sucesso, o contrato com Disney limitou sua carreira. Ainda mais depois que ela e Harry Stockwell, a voz do príncipe encantado, processaram o estúdio por estar vendendo discos com as canções, algo não previsto em seus contratos. A possibilidade de aparecer no filme citado em 1946 foi um relaxamento da companhia, após perder uma rodada desses processos movidos pelos atores. Adriana e Disney por muitos anos tiveram uma relação estremecida, que foi definitivamente resolvida em 1994 quando a não mais atriz entrou para o Hall da Fama do estúdio, colocando suas mãos na calçada Lendas da Disney e levando também uma quantia de dinheiro não mencionada. Com Scarlett, a Disney fez questão de mencionar o valor do cachê recebido pela atuação em Viúva Negra, algo considerado bem deselegante no meio artístico.

Toda essa introdução para falar do meio artístico. Pode parecer que não, mas os atores sempre foram o elo mais fraco nesta estrutura e falo com conhecimento de causa. Antes de me estabelecer como montadora, estudei artes cênicas e trilhei uma breve carreira de atriz. Atores não são fracos. São glamorosos, disruptivos, detentores de um avant-garde que desejamos e invejamos. Por causa deles sonhamos mundos, queremos ser como eles e viver as histórias que eles vivem e se não conseguimos em nossas vidas comezinhas, vivemos nas deles por tabela, seja via personagens ou por meio da indústria gossip, não é mesmo? Mas, para pensar um pouco sobre a parte chata da profissão, é uma exposição inimaginável, mesmo em tempos de mídias sociais, atores no nível de Scarlett estão suscetíveis ao escrutínio mundial. E a Disney não só sabe, como usou isso em seu comunicado de resposta ao processo e fez a sua princesa parecer uma vilã, dessas que não levam em conta o sofrimento do mundo. "Não há mérito algum neste processo. Ele é especialmente triste e angustiante em seu desrespeito cruel aos terríveis e prolongados efeitos globais da pandemia de covid-19. A Disney cumpriu totalmente o contrato da Sra. Johansson e, além disso, o lançamento de 'Viúva Negra' no Disney+ com Premier Access aumentou significativamente sua capacidade de conseguir uma compensação adicional em cima dos US$ 20 milhões que ela já recebeu até o momento." Sério Disney? Sinceramente poderia ter um pouco mais de cortesia, afinal é “A” Disney, empresa que colonizou o meu coração e os de milhares de crianças e adultos mundo afora. Não consigo pensar em outra Cinderela que não seja a que a Disney construiu, vestida num azul meio furta-cor, com o cabelo loiro amarelo e preso num penteado elegante. Alguém tem outra imagem que não essa? Falando em imagem, Scarlett trabalha com a dela desde os 10 anos de idade, quando fez sua estreia ao lado de Elijah Wood, não exatamente ao lado, porque ela demorou mais tempo para ser levada em conta como possível protagonista. Apesar do inegável talento, era magricela e sua beleza ainda não tinha aflorado. Então, enquanto esperava o grande papel, fazia pontas, assim como Adriana Caselotti, em filmes toscos, estudava canto, dançava nas aulas de jazz, batia ponto em testes de elenco, fossem comerciais de cereal matinal ou séries - muito piores que o filme de Elijah – mantendo vívido no seu coração o grande sonho de virar uma estrela de primeira grandeza. E sabemos muito bem que poderia não ter acontecido. Quantas tão talentosas e talvez até mais bonitas não ficaram pelo caminho? Nunca saberemos, mas podemos intuir.

Hollywood é o Olimpo e poucos se banham nesse sol quente e dourado. E quantos dos que conseguiram transpor a barreira “somewhere over the rainbow”, se mantiveram relevantes ou melhor, mantiveram a sanidade num meio em que se auto atropela? Sejam os lacerados jovens principiantes ou talentos maduros, à medida que o público pede novidade, excelência, frescor e qualquer coisa que seja só ajustável ao tamanho dos seus, dos meus, dos nossos sonhos, há inúmeras baixas pelo caminho. Britney, outra iniciada pelo Clubinho do Mickey, que o diga, o público é voraz. É injusto pra caramba, porque são eles que mediam nossas experiências e é preciso lembrar que eles são tão humanos quanto nós.

Além de montadora, sou professora e ministro uma disciplina eletiva sobre o cinema nacional, se inscreve quem quer e não há pré-requisitos. É uma tarefa árdua, pois os alunos são muito jovens, com vários níveis de conhecimentos entre si e querem ter mais repertório, mas colado ao desejo por conhecimento, pertencem a uma geração que se permite cada vez menos o tempo de decantação necessária – e não havia meio de puxar esse novelo de maneira orgânica. Fiz então a conexão mais simples que consegui: trouxe a memória afetiva usando os atores. Os estudantes, assim como nós, também se ligam em atores, acompanham seus trabalhos recentes, sejam na televisão ou na internet, seguem os instas e foi por meio deles que conseguimos trilhar esse caminho. Selton, por exemplo, abriu espaço para Luiz Fernando Carvalho, Lírio Ferreira e Guel Arraes. Rodrigo Santoro trouxe Laís Bodanzky e Walter Salles. Sem falar da Sônia, a musa de tantos, que para eles era apenas a atriz de Aquarius e Bacurau, já trouxe colado nela o Kléber, mas também puxou pela mão Hector Babenco, Bruno Barreto e tantos outros. Sônia, a Gabriela, a tia da Alice. “Professora, não foi ela que participou de Sex and the City lá pelos anos 2000?” Sim, anjo, ela mesma. Eles se encantam, se envolvem e a partir daí a magia do conhecimento toma conta. E isso tudo por meio desses seres translúcidos, imbuídos pelo dom da atuação. Se isso não for pura mágica, é o mais perto de ser que eu conheço.

É por isso que esse processo Scarlett Davi X Disney Golias, me pareceu algo tão emblemático. Mesmo que a atriz acabe perdendo, o que pode acontecer, são muitos advogados e meandros impensados para nós do lado de cá, mas este levante traz em si muito sobre essa mesma geração que há pouco eu criticava. A mudança está em curso e se a Disney, mas não só ela, deixar de se comunicar com seu público, será ela a atropelada da vez. Leigh Janiak que o diga, a diretora não quis seus filmes vinculados ao universo Disneyland. Alguém um dia em sã consciência sonhou dizer não para o Mickey? Eu mesma sonhava em segurar na sua mão enluvada e me deixar levar pelo fascínio. Bom, ela disse: tchau, tchau, vou para um mundo novo chamado Netflix. Mas, aí é outra reflexão e certamente outro textão.

 

Flavia Stawski
Flavia Stawski

Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, tendo seu projeto contemplado em 1º lugar pelo CNPq no tema: Gênero do Telejornalismo, orientado pela Drª Lúcia Santaella. Na ESPM desde 2011, é professora no curso de Design com a disciplina Imagem em Movimento, e no curso de Cinema e Audiovisual em Linguagem, Estética e Gêneros. Ambas abordam, sob perspectivas distintas, as maneiras e possibilidades de se trabalhar e entender a imagem e o som – em suas mais variadas formas de representação. Atua há quase 20 anos no mercado audiovisual e acumula passagem por diversas emissoras de tv, como Globo, Cultura, Gazeta e Record, majoritariamente como editora e finalizadora de imagens. Mãe da Diana, uma fofura de dois aninhos.

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