12 Agosto 2021
Religião e cinema: Escolas e cineclubes - parte 02
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No artigo anterior, falei sobre como a religião buscou interferir no cinema, seja estabelecendo “filtros morais” (também conhecidos como censura), seja orientando seus dirigentes e fiéis a atuarem fortemente no cinema, rádio e na televisão, com o fim de “moralizá-los”. Na maioria das vezes essa interferência se deu em detrimento da própria arte, ao contrário da visão romantizada vista, por exemplo, no filme Cinema Paradiso, (1988, dir. Giuseppe Tornatore).
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Além de falar sobre o Código Hays, destaquei, ainda, as Encíclicas sobre o audiovisual do Papa Pio XI, a Vigilanti Cura de junho 1936 e a Miranda Prorsus, de setembro de 1936. Em continuação, nesse artigo falarei sobre suas influências no Brasil e na formação cinematográfica.
Miranda Prorsus, dedicava um capítulo especial para o ENSINO:
O mesmo se pode dizer e com mais razão do ensino, ao qual o filme didáctico, a rádio e mais ainda a televisão escolar, oferecem possibilidades novas e inesperadas, e não só para os jovens, mas também para os adultos. Todavia a utilização no ensino destas novas e prometedoras técnicas, não deve opor-se aos imprescritíveis direitos da Igreja e da família no campo da educação da juventude. (...) Em especial ousamos esperar que as técnicas de difusão, -quer estejam nas mãos do Estado, quer se encontrem confiadas à iniciativa particular – não se venham nunca a tornar responsáveis dum ensino sem Deus. Bem sabemos infelizmente que em certas nações, dominadas pelo comunismo ateu, se usam até nas escolas os meios audivisivos para propaganda contra a religião. Estas formas de opressão das consciências juvenis, que se privam da verdade divina, libertadora dos espíritos, são um dos aspectos mais ignóbeis da perseguição religiosa.
Quanto de Nós depende, desejamos que no ensino católico sejam oportunamente usados os meios audivisivos para completar a formação cultural e profissional, e "sobretudo ... a formação cristã: base fundamental de todo o progresso autêntico". Queremos até manifestar o Nosso agrado a todos os educadores e professores que utilizam devidamente para tão nobre fim o filme, a rádio e a televisão. (Miranda Prorsus)[i]
Os dirigentes e fiéis católicos não se privaram do clamor da sua religião, atuando fortemente na formação para Cinema, fundando cursos, cineclubes e ministrando seminários em escolas de segundo grau e em universidades, para formação de público, inclusive em nossas terras.
Uma das consequências dessas cartas papais no Brasil foi a fundação, pela Cúria Metropolitana paulista, da Orientação Moral dos Espetáculos- OME- em 1937.
Em 1953 a Conferência Nacional de Bispos, CNBB, criou o Centro de Orientação Cinematográfica, presidido pelo padre Guido Logger. Desse movimento nasceu a Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, conforme já relatamos em outros artigos, a primeira experiência em ensino de cinema formal em uma instituição de ensino superior.
No ano anterior, em 1952, André Ruskowski e Fernand Cadieu chegaram ao Brasil, em uma missão da Office Catolique International du Cinéma (OCIC) sendo responsáveis por orientar ações de católicos no Cinema.
Destacam-se nessas atividades do OCIC, Álvaro Malheiro e Hélio Furtado do Amaral, jovens que iniciaram no Colégio Des Oiseaux, em São Paulo, o Curso de Iniciação Cinematográfica, integrado ao currículo da escola e de periodicidade anual, conforme relata Rudá de Andrade em seu livro Cronologia da Cultura Cinematográfica no Brasil, de 1962.
Expoentes na criação das escolas de cinema no Brasil, os padres Edeimar Massote e José Lopes participaram do primeiro curso de formação cinematográfica da América do Sul em um seminário católico, dos padres jesuítas no Colégio Cristo Rei em São Leopoldo, RS, ministrado pelos professores Hélio Furtado do Amaral e padre Guido Logger.
Em seguida, Hélio Furtado do Amaral e Humberto Didonet, junto com o padre Logger iniciaram, no final da década de 1950, uma série de cursos em Ribeirão Preto, Campinas, Belo Horizonte Vitória e Porto Alegre. Em 1954, Didonet inaugurou o Cine Clube Pro Deo que tinha como padroeira oficial, conforme estatutos, a Imaculada Conceição, e publicou diversas edições do Guia Cultural de Filmes, como um guia “moral” para o público e para todas as pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, com o cinema.
A Confederação das Famílias Cristãs em São Paulo, inspirada pela intensa atividade do supra citado grupo, inaugurou a Equipe de Formação Cinematográfica, que de 1955 a 1958 deu aulas de iniciação cinematográfica em São Paulo para quase uma dezena de escolas.
Outro destaque para esse período é a incomum conjunção entre o professor Paulo Emílio Sales Gomes e a Liga Independente das Senhoras Católicas, que o convidou para ministrar o Curso de Formação Cinematográfica, o que efetivamente ocorreu no ano de 1957, utilizando filmes clássicos da Cinemateca Brasileira.
Estudantes do Curso de Formação Cinematográfica, sob a liderança de Hélio Furtado do Amaral, fundaram, em 1958, o prestigiado Cineclube Dom Vital de São Paulo. Por ele passaram jovens que seriam essenciais para o cinema brasileiro, como Rudá de Andrade, o crítico Jairo Ferreira, que foi seu coordenador, o crítico de cinema e diretor Alfredo Sternheim e o cineasta Gustavo Dahl, seu primeiro presidente, eleito entre os alunos. A trajetória de Gustavo Dahl, valeria muitos livros, principalmente pela sua imensa dedicação ao cinema brasileiro., mas por hora vale destacar que foi o primeiro presidente da Agência Nacional de Cinema.
Além de ciclos de conferência sobre linguagem, no Dom Vital debatia-se, semanalmente os últimos lançamentos cinematográficos em circuito comercial. Logo, este cineclube ser tornou tão conhecido, que atraiu também não- católicos.
O Dom Vital foi perdendo fôlego e desgostando a seus participantes por suas orientações, que acabaram por sair e criar seus próprios cineclubes, mais independentes, como relata Jean- Claude Bernardet em vários textos, eis que também foi membro ativo do Dom Vital.
A efemeridades dessas experiências só evidenciam o que deveria ser lógico: nenhuma arte floresce, de fato, com amarras.
Porém, com a chegada dos anos da década de 1960, a Igreja Católica adota novos compromissos sociais e publica a Encíclica Master et Magistra, e isso influenciou, diretamente, as suas relações com o cinema, como abordarei na parte 3 desse artigo, no próximo mês.
[i] https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_08091957_miranda-prorsus.html
Luciana Rodrigues
Luciana Rodrigues é coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP e professora na mesma instituição. É parecerista da ANCINE, colaborou na criação e foi presidente do FORCINE- FÓRUM BRASILEIRO DE ENSINO DE CINEMA E AUDIOVISUAL. É Doutora e Mestre na área do Audiovisual pela USP, possui bacharelados em Comunicação- com Habilitação em Cinema- e em Direito.
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