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Artigo / Tendências & Mercado

13 Julho 2021

Ajustar o foco para os cinemas não perderem a nitidez

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Quando a projeção saía de foco durante uma sessão de cinema, em geral, o público costumava chiar: Ajeita o foco! Este é um clássico tipo de exigência que, aos berros e assobios da plateia, era frequentemente direcionada ao projecionista no passado. Aprendemos a ver cinema por meio de várias pedagogias a que fomos submetidos, como espectadores, ao longo dos meandros históricos do cinema e de suas tecnologias, institucionalização e configuração de padrões de espectatorialidade. Hoje, episódios como esses são mais raros, mas problemas de foco nas salas de cinema persistem.

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O próprio cinema, como um equipamento coletivo de lazer, sempre foi e será passível de ser desfocado. Este dispositivo midiático – que absorve os nossos corpos, corações e mentes, no qual entramos, sentamo-nos, sorrimos, sonhamos, beijamos, comemos, choramos, e há quem durma também – não se circunscreve à mágica que acontece entre projetor, luz, som, tela e plateia. Outros elementos, sejam eles materiais, sensoriais, emotivos ou socioculturais, também lá residem e podem, igualmente, ficar fora de foco com o tempo ou sob determinadas circunstâncias.

E o que, então, seria capaz de nublar, desfocar, embaçar a nitidez de um cinema e seus atributos? Arrisco a dizer que sejam a falta de perspicácia e a miopia de poderes orientados pelas lentes de um capitalismo caduco, empoeirado, neoliberal e autocentrado.

Em pleno século XXI, quando um antigo cinema de rua de grande valor histórico-arquitetônico, referência para um bairro ou regiões centrais das cidades, é fechado sem ao menos haver tentativas sérias de salvaguarda por parte do exibidor, a nitidez do equipamento fica borrada na paisagem, nos trajetos das pessoas, nas motivações para que o urbano seja ocupado: muitas vezes, de forma irreversível.

Mesmo muito antes da pandemia, o cinema de rua já não performava mais como o modelo central do negócio da exibição. Já há algumas décadas, assistimos à tendência de esfacelamento dos poucos e resistentes cinemas com portas voltadas diretamente para as calçadas de ruas e praças de cidades brasileiras. Até aí podemos listar uma série de justificativas estritamente cinematográficas, de mercado ou urbanas e sociais. Porém, essas respostas, já bem clichês, dadas à pergunta “Por que este cinema histórico fechou?”, não raro, caem em reducionismos: basta analisarmos com lentes polidas os contextos e termos a boa vontade de questionar os astigmatismos e miopias que envolvem a questão.

Um enorme cinema de relevância histórica, que há quase um século se mantém em funcionamento, sem grandes avarias ou ameaças estruturais, merece ser fechado, ter seu prédio vendido para qualquer finalidade? Nenhum cinema, é certo, merece ser fechado. No entanto, quando se trata de acontecimentos esdrúxulos e inacreditáveis como o recente drama vivido pelo Cinema Roxy, de Copacabana, Rio de Janeiro, é preciso gritar imediatamente “Ajeitem o foco!” antes que seja tarde demais e a sessão acabe.

O Cinema Roxy foi inaugurado no dia 3 de setembro de 1938 sob o comando da Companhia Brasileira de Cinemas, que tinha Luiz Severiano Ribeiro (à altura, já líder de mercado) como principal acionista. A partir de 1960, quando os Severianos já haviam adquirido o prédio do Roxy, a gestão do cinema ficou a cargo da Empresa Cinemas São Luiz. Na época, à frente dos negócios, despontava Ribeiro Júnior, filho de Severiano Ribeiro pai. Sem grandes modificações internas ou externas, e apesar das inúmeras intempéries do mercado exibidor ao longo da segunda metade do século XX, o Roxy chegou vivo e intacto à década de 1990, para, logo em seguida, ter a sua sala de 1.630 lugares dividida em três salas médias: Roxy 1, Roxy 2 e Roxy 3.

Outros ventos empresariais balançavam as velhas estruturas do negócio do cinema e, em 2002, foi introduzido no Grupo Severiano Ribeiro o conceito Kinoplex, que se estendeu ao Roxy. Em 2003, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) da Prefeitura do Rio de Janeiro determinou por decreto o tombamento provisório do complexo Roxy, tendo em vista não apenas itens valiosos de sua arquitetura e design, mas seu incalculável valor histórico e simbólico para Copacabana e toda a cidade.

Diante desse resumo e a despeito de qualquer justificativa cotada em cifras milionárias: não, o Roxy não merece ser desfocado.

Casos de cinemas de rua salvos de fechamentos e reabertos não são inéditos no Brasil e no mundo. A pandemia é, claramente, um desafio que só acirrou ainda mais a luta pela sobrevivência da sala de cinema, de rua ou de shopping. Porém, trata-se de um período que vem também reforçar a afirmação do cinema como espaço de entretenimento e experiência espectatorial coletivos. A dinâmica e os rituais da ida ao cinema têm (re)encontrado sentidos que ligam esses locais à vivência do eventful, isto é, do memorável e do espetacular. Isso não significa, porém, que uma experiência marcante para o público não possa estar atrelada à trivialidade daquelas decisões despretensiosas, quase por acidente e em cima da hora, de ir ao cinema ver algum filme.

É sempre memorável ir ao cinema, de uma forma ou de outra. É exatamente esse o seu ativo. É nele que devemos focar, reconhecendo mais atentamente os exemplos que, em tempos sombrios, recorrem precisamente à antiguidade de um cinema e ao seu papel de catalisador de afetos e memórias.

Cito dois breves casos: o do Cinema São Luiz, em Recife, e do Le Palace, no centro de Bruxelas, Bélgica. Em ambos os casos, houve ameaça de desaparição dos cinemas.

O São Luiz, de 1952, resistiu e hoje é uma das pérolas mais reluzentes da tradição dos equipamentos exibidores de rua brasileiros. Localizado em frente ao Rio Capibaribe, ele foi tombado como monumento histórico e incorporado à Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Ou seja, é um cinema público gerido pela Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, hoje inteiramente integrado a pautas de democratização do cinema local e nacional, incluindo vozes ativistas como as das mulheres do Movimento CineRua-PE.

O Le Palace – aberto como Pathé Palace, por Charles Pathé, em 1913 – seguiu em funcionamento até 1973, em uma das avenidas mais relevantes de Bruxelas. Inclusive, sobreviveu à ocupação nazista e ao sequestro dos cinemas Pathé na Europa pelos comandos de Hitler e Goebbels. Sucumbiu às turbulências da década de 1970, chegando a virar uma grande loja magazine. Voltou a ser cinema em 1998, mas só foi recuperado e revitalizado de fato, quando a Comunidade Francesa da Bélgica, uma espécie de pilar governamental e uma das três comunidades linguístico-culturais do país, o adquiriu, abrindo um edital para que sociedades de interesse o abraçassem como um cinema “d’art et essay” dedicado ao cinema belga e europeu em geral.

Em ambos os casos, foi a riqueza patrimonial, a história, o poder simbólico do cinema de rua, a memória afetiva do público e a vontade política e empresarial que inspiraram as ações de salvaguarda promovidas por instâncias estatais e/ou iniciativa privada e sociedade civil. Ambos não apresentam sinais de desaparecimento apesar da pandemia. O São Luiz ainda não retomou as atividades e o Le Palace já está com programação em curso.

À luz das bases sólidas que se ergueram para amparar e fazer resistir os dois cinemas acima, o caso do Roxy pode, igualmente, ter salvação, mas só se, para além da medida da Prefeitura do Rio, que o listou como bem imaterial da cidade no dia 17 de junho deste ano, houver planejamentos sustentáveis de gestão, perspectivas sobre o destino de sua venda e alguma resposta do Grupo Severiano Ribeiro/ Kinoplex às inúmeras perguntas que tanto a imprensa quanto as mobilizações populares, tal como a campanha SALVE O CINEMA ROXY empreendida pelo Movimento CineRua-Rio de Janeiro, vêm fazendo à empresa.

Não são todos os cinemas de rua art-déco, de esquina e a duas quadras de uma das praias mais famosas do mundo, que contam com a sorte de 82 anos ininterruptos de funcionamento e participação na vida cotidiana de uma cidade.

Aliás, é de se estranhar o aparente vácuo no rumo que será dado a um histórico cinema de rua com tantos atributos, pronto para voltar à ativa assim que a pandemia arrefecer, aproveitando oportunidades como, por exemplo, uma propícia demanda reprimida pelo coronavírus (observem o box office recente de produções como “F9: The Fast Saga” e “Um lugar silencioso - Parte II”, nos EUA) e a re-legitimização e realocação (observem Cannes 2021) da sala de cinema (em especial, aquelas de grande valor histórico) em meio às demais janelas do audiovisual, festivais e ondas da economia criativa.

É preciso rever o foco desencontrado, tímido e embaçado das atuais projeções. Como dizia José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

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