08 Julho 2021
Sobre a reforma tributária global
Compartilhe:
Por Daniella Galvão e Thais Chanes de Moraes*, respectivamente sócia e advogada da área tributária do CQS/FV Advogados
Publicidade fechar X
Recentemente, 131 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), assinaram uma declaração histórica que estabeleceu as bases para uma possível reforma tributária global com a imposição de um tributo mínimo no patamar de 15% sobre os lucros das grandes empresas.
O Brasil é signatário dessa declaração. Por ora, apenas 8 países não assinaram, quais sejam: Barbados, Estônia, Hungria, Irlanda, Nigéria, Quênia, Sri Lanka e São Vicente & Granadinas. Em termos numéricos, a declaração abarca cerca de 90% do PIB global.
Tal proposta atingirá especialmente as grandes empresas de tecnologia, mas ainda depende da elaboração do acordo final, o qual deverá ser concluído apenas em outubro de 2021. A OCDE estima que a versão final estará aberta a adesões pelos países até o final 2022, para que seus efeitos se tornem aplicáveis a partir de 2023.
E por que isso agora?
O crescimento exponencial das grandes empresas de tecnologia (por exemplo, Google, Facebook e Instagram) chamou a atenção das maiores economias do mundo, especialmente porque os lucros auferidos por essas “big techs” são geralmente submetidos a uma carga tributária inferior à média das outras atividades, quer pelo fato dos principais ativos serem intangíveis, quer pelas estruturas societárias que utilizam.
Na prática, os países da União Europeia (UE) logo perceberam que as grandes empresas de tecnologia norte-americanas geravam riqueza em seu mercado interno (leia-se, coletando e comercializando dados de usuários europeus) sem que dessa riqueza decorresse a arrecadação de tributos pelas jurisdições europeias.
E qual é o grande óbice ao fisco? Pois é, a lei. A maioria das regras tributárias existentes foi forjada sob o paradigma da economia industrial, dos bens materiais e do estabelecimento com presença física no país consumidor. É dizer, as regras de tributação que alcançam operações internacionais foram definidas a partir de critérios de conexão que consideram elementos tangíveis. Portanto, elas se demonstraram insuficientes para abarcar a riqueza gerada na economia digital, marcada por bens imateriais e transações que independem da presença física.
Conclusão: os novos negócios representavam um sério risco de erosão das bases tributárias tradicionais, especialmente dos países nos quais há grande mercado consumidor de bens digitais.
Essa constatação incomodou diversos países-membros da OCDE, a qual passou a discutir formas “mais justas” de redistribuir a carga fiscal entre os países. O caminho seria a reformulação das regras tributárias atuais através do chamado “Plano BEPS” (Base Erosion and Profit Shifting), cuja Ação nº 1 é exatamente destinada a apresentar soluções para os desafios fiscais decorrentes da economia digital.
Inicialmente, o debate foi controverso e infrutífero para uma solução internacional conjunta. Assim, a UE liberou seus países-membros a adotar medidas unilaterais, como o chamado "digital service tax" (DST), tributo esse destinado a abocanhar uma parcela dos lucros de big techs, cujas receitas estivessem vinculadas ao mercado consumidor local.
Diferentes versões nacionais de DSTs foram desenhadas por países como França, Espanha e Itália. O Brasil também flertou com o tema, como indicam alguns projetos de lei em tramitação (por exemplo, PL 2.358/2020, PLP 218/2020, PLP 241/2020 e PL 640/2021), nos quais a proposta principal é a tributação da receita bruta das plataformas digitais, seja mediante aumento da COFINS, seja mediante criação de contribuição específica sobre a receita de tais empresas.
Não obstante, a OCDE alcançou um marco histórico na última segunda-feira (05/07/2021). Depois de anos de debate sobre os desafios da tributação da economia digital, 131 países assinaram uma declaração conjunta que fixou as bases para a implantação de uma tributação mínima sobre os lucros de multinacionais no patamar de 15%, mudança que atinge fortemente as big techs.
Ok, e o que mudou?
Em primeiro lugar, os países signatários assumiram o compromisso de abolir os impostos locais sobre serviços digitais. Como o Brasil é um país signatário, é provável que os projetos de lei de DSTs brasileiros em tramitação caiam por terra. Ou seja, a tributação dos serviços de tecnologia no Brasil deveria se alinhar às soluções globais fixadas pela OCDE no acordo final.
Em síntese, a declaração propõe um novo tratamento tributário para as multinacionais (com receita bruta anual superior a € 20 bilhões e margem de lucro superior a 10%), de modo que os lucros dessas empresas sejam tributados a, no mínimo, 15%.
Tais multinacionais terão que alocar uma parcela desse lucro (20% a 30%), independentemente de presença física, para ser tributada no país do consumidor – e o elemento para vincular a receita a um país é o local do uso ou consumo do bem ou serviço.
Ademais, há critérios para a redistribuição. A alocação somente é aplicável aos países nos quais a multinacional aufira receita bruta de, no mínimo, € 1 bilhão. Porém, se o país tiver um PIB inferior a € 40 bilhões, o critério de receita mínima local é reduzido para € 250 mil.
A declaração ainda propõe uma interconexão nas operações internacionais entre empresas vinculadas por meio da imposição de um tributo adicional (“Income Inclusion Rule”) e da vedação de deduções de valores pagos por subsidiárias (“Undertaxed Payment Rule”). Isso é válido para multinacionais com faturamento mínimo de € 750 milhões, não se aplicando a governos, organizações internacionais, ONGs, fundos de pensão e fundos de investimentos.
Outro ponto que será considerado, para fins de alocação dos lucros residuais como base de tributação global, é o fato de o país tributar as referidas receitas em seu mercado. No caso do Brasil, as receitas auferidas pelas plataformas digitais, especialmente as receitas de assinaturas e com publicidade, já são tributadas pelo PIS e pela COFINS. Assim, é possível que em razão de norma “safe harbour” ainda a ser definida no âmbito da OCDE, as exações aqui existentes afetem a aplicação da regra global.
Além disso, a declaração permite a tributação de alguns rendimentos (por exemplo, juros e royalties) no país da fonte pagadora com alíquota mínima de 7,5% a 9% (“Subject To Tax Rule”). Essa medida é um afago aos países em desenvolvimento, contumazes importadores de serviços e capital estrangeiros, que necessitavam de uma compensação para se engajar no projeto global.
Na mesma linha, considerando que no Brasil já existe a CIDE-Remessas (ou CIDE-Royalties), alcançando os pagamentos de royalties ao exterior, há também que ser avaliado o impacto deste acordo global na tributação adotada atualmente pela União Federal.
De qualquer maneira, entendemos ser muito positivo que o Brasil tenha firmado sua participação nesta proposta global e esperamos que as premissas adotadas no projeto sejam refletidas internamente, especialmente o compromisso de afastar medidas unilaterais e simplificar as regras de tributação global das operações.
Daniella Galvão
Sócia do escritório CQS – Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Especialista pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET), onde atuou como professora em programa de pós-graduação lato sensu. Especialista em Direito do Terceiro Setor pela ESA/OAB. Diretora Institucional do Instituto Tatiana Vieira. Mentora de mulheres empreendedoras e startups pela B2Mamy. Atua na área de direito tributário, consultivo e contencioso e realiza planejamento tributário de novos negócios e de startups.
Compartilhe: