07 Julho 2021
Um jantar com consequências históricas
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Uma noite de outubro de 1937 o grande maestro Leopold Stokowsky jantava sozinho numa mesa do Chasen’s, o restaurante chic de West Hollywood frequentado por artistas, produtores e a fauna dos grandes estúdios. Em uma mesa próxima, Walt Disney jantava também sozinho quando reparou no maestro. Segundo relata o próprio Stokowsky, Disney o convidou para mudar de mesa e jantar juntos. Ambos, figuras públicas, sentiam admiração e curiosidade mútua, e a conversa foi longa. Nesse tempo Disney tinha o projeto de fazer um curta com Mickey, que andava baixo em popularidade, e havia adquirido os direitos sobre a música de Paul Dukas “O Aprendiz de Feiticeiro”. A ideia era fazer uma animação onde se combinasse a ação do personagem como uma representação pictórica da música, como anteriormente tinha feito com as suas “Silly Simphonies”. Mas o curta deveria ser uma peça artística inovadora e superlativa. E para isso, queria reunir artistas talentosos para cada aspecto da produção, e precisava de um maestro de renome para arranjar e dirigir a música de Dukas. O encontro com Stokowsky foi mais do que oportuno, e o tema principal da conversa foi a ideia do curta. O entusiasmo foi tal que o maestro até ofereceu trabalhar de graça. Por sua parte a intenção dele era levar a música erudita para os cinemas, como uma forma de popularizar uma arte restrita às salas de concertos.
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O trabalho logo gerou uma sinergia intensa em uma atmosfera de criatividade formada por artistas e técnicos. A RCA Corporation foi chamada, e junto ao departamento técnico de Disney desenvolveram a instalaram um sistema de gravação óptica multicanal, técnica muito avançada para a época. Na madrugada de 10 de janeiro de 1938 a peça foi gravada no estúdio Selznick em Culver City com uma orquestra de 100 músicos. Com a música como referência, a equipe de animadores e desenhistas de Disney deram continuidade ao trabalho com as imagens, e em junho desse ano ficaram prontas. O resultado foi tão espetacular que encorajou ainda mais aos criadores, e começou a tomar forma um outro projeto maior: em vez de um curta, iriam fazer uma coletânea com outras obras sinfônicas, e assim criar um longa, cujo nome original foi “The Concert Feature”. Agora, o projeto estava ficando realmente grande.
Com a magnitude do trabalho, Stokowsky-Disney assinaram um contrato, desta vez remunerando o maestro, e a escolha das outras obras tomou algumas semanas de discussão. Finalmente, o título escolhido para o filme foi “Fantasia”.
Para as novas gravações, o maestro escolheu o auditório da Philadelphia Academy of Music, casa da Philadelphia Orquestra, de quem ele era o diretor, e por tanto podia trabalhar de forma mais confortável, em ambiente mais familiar. Para estas gravações, a RCA Corporation criou um outro esquema de equipamentos, utilizando 33 microfones e 8 gravadores ópticos sobre filme de 35 mm, cada um com um operador, por causa da complexidade do equipamento. A gravação magnética não se utilizava ainda, pois era muito primitiva. Cada gravador registrava uma seção de instrumentos separados, sendo um deles dedicado à orquestra completa. Ao todo, durante 42 dias de gravação iniciados em abril de 1939 foram registrados 150.000 metros de áudio em filme. Um logro tecnológico surpreendente para a época.
Mas esta complexidade na gravação não era por acaso, estava vinculada à exibição também. Disney queria experimentar técnicas mais sofisticadas tanto de gravação como de exibição para “Fantasia”. Imagem e som devia ser algo nunca visto antes. E seu parceiro musical já era entusiasta de novas técnicas de gravação para a música orquestral sinfônica. Na época, o som dos cinemas era bastante primitivo. Segundo Disney, “...Música emergindo de um único alto-falante por trás da tela soa magra, metálica e estressante. Nós queríamos reproduzir obras de mestre belíssimas...de maneira que as audiências as ouvissem como se estivessem no pódio junto a Stokowsky”.
Acontece que quando o cinema começou a falar, era suficiente ter som. E este era um canal só, vindo do centro da tela, já que o personagem precisava ter voz. No final, era cinema “falado”. A música já estava desde a época do acompanhamento ao vivo, quando não havia tecnologia de som vinculada a imagem. Mas a fala é diferente, precisa estar precisamente sincronizada com a imagem, e isto só foi possível quando a distribuição conseguiu dispor de uma tecnologia que colocasse a imagem e o som juntos na mesma película, por volta de 1927. Durante muito tempo a voz, a música e os efeitos, os três pilares do som do cinema, saíram de um ponto por trás da tela, no centro dela.
Para resolver esta limitação era necessário inovar, e em forma radical, embora Disney não sabia como. Mas tinha uma capacidade excepcional para convocar os melhores talentos em qualquer área. Chamou David Sarnoff da RCA Corporation, para reforçar a sua equipe técnica liderada pelo engenheiro William Garity, e começaram a experimentar diversas ideias. Depois de muitos testes, o resultado foi uma nova tecnologia. Em primeiro lugar, instalaram três caixas por trás da tela, para dar volume espacial e largura ao som. Mas para algumas das sequências, também seria interessante envolver a plateia com sons vindo em volta. Colocaram assim duas caixas de som nas laterais da sala e duas nos cantos do fundo. Em determinados momentos e em função do conteúdo, os sons dos canais da tela podiam ser direcionados para estas caixas. Precisaram inventar vários dispositivos e princípios que ainda utilizamos hoje, como o potenciómetro panorâmico, que permite fazer que um som possa ser movimentado em forma contínua entre caixas. Também era preciso registrar estes endereçamentos dinâmicos em forma sincrônica com o filme, para que a apresentações fossem consistentes. O novo sistema foi batizado de “Fantasound”. Registrava em forma óptica três pistas de som, reproduzidas nas caixas esquerda, centro e direita respectivamente, e utilizava uma quarta trilha que fornecia um sinal de controle para endereçar estes três canais para as 4 ou mais caixas instaladas na sala no momento adequado. Por tanto precisava de 4 pistas de som óptico, diferentemente do som convencional mono, de uma pista. A ideia de incorporar o espaço no campo sonoro e de controlar a posição de onde os sons são reproduzidos utilizando um sinal de controle, é o conceito base do atual sistema de som imersivo Dolby Atmos, onde se amplia ó número de elementos endereçáveis, chamados de objetos, a mais de cem.
Mas voltando a 1939, como o espaço destinado ao som na cópia de 35 mm para distribuição era muito exíguo, estas quatro pistas não podiam ser registradas ali. A solução foi utilizar um segundo filme em 35 mm dedicado exclusivamente para o som, que incluía as quatro pistas e rodando numa máquina sincronizada com o projetor. Ou seja, a distribuição precisava de uma película 35 mm para a imagem, e uma segunda para o som, também em 35 mm. Um sistema chamado de “banda dupla”.
Em relação às imagens, houve uma verdadeira revolução técnica e estética, resultando em uma qualidade surpreendente, com imagens belíssimas e abstratas, um show surrealista, consequência do trabalho conjunto de numerosos artistas, animadores, coloristas etc. Entre eles Herman Schultheis, fotógrafo, especialista em efeitos especiais e inventor, que desenvolveu numerosas montagens e equipamentos de trucagem implementados com estruturas de madeira, vidros, trilhos e montagens ópticas complexas, com resultados extraordinários. Disney pensou também em implementar tela larga, mas isto não foi viável no momento.
A estreia de Fantasia aconteceu em 13 de novembro de 1940, e embora não gerou muita bilheteria, ganhou numerosos prêmios e menções, entre eles Oscares da Academia de 1942, que foram para Leopold Stokowski e seus associados, pela realização e criação de uma nova forma de música em imagens, ampliando a capacidade do cinema como entretenimento e como forma de arte. Disney, Garity e Hawkins também receberam o prêmio da Academia pela contribuição sobressalente ao avanço logrado no uso do som em filmes.
A intenção original de Fantasia foi a de criar conteúdo em forma permanente e lançar mais títulos com o conceito e a tecnologia. Mas a Segunda Guerra já estava em curso, não havia espaço na crise para tal sofisticação e logo o esforço de guerra absorveu a produção de Disney durante os próximos cinco anos, e não houve continuidade. Em 1961 houve um segundo lançamento com distribuição limitada, porque as salas de exibição precisavam ser equipadas especialmente. Produzir e distribuir este filme com som surround foi um logro tecnológico sem precedentes. Mas exigia instalação de equipamento complexo e volumoso para a exibição, e a distribuição foi limitada.
Com o lançamento de “Fantasia” em 1940 e seu sistema Fantasound, estava acontecendo um evento transcendente na história do cinema: O nascimento do som surround.
Jantares podem ter consequências sérias.
Carlos Klachquin | CBK@dolby.com
Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.
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