01 Julho 2021
Religião e cinema: escolas e cineclubes - parte 01
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As constantes tentativas de misturar políticas públicas com fé, impondo essa sobre aquelas, infelizmente não são uma novidade no cenário mundial, particularmente no Brasil, hoje, assistimos estupefatos um retorno do obscurantismo, que quer impor amarras à liberdade criativa e de expressão do audiovisual. Pela manifestação dos fundamentalistas que estão no governo, dirigentes da ANCINE, deveriam ser evangélicos que sabem “recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse o joelho machucado de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço” (sic)[i]. Ressalto que, nunca, na nossa história, houve tamanha imposição e ataques inconcebíveis à arte e ao Estado laicos, mesmo nos períodos que relatarei, a seguir.
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Um dos casos mais notáveis de quão nefasta pode ser essa censura é mundialmente notório, conhecido como Código Hays.
Em meio a alguns escândalos, Hollywood tentou melhorar sua imagem junto ao público conversador, e os estúdios criaram, em 1922, a Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América (Motion Picture Producers and Distributors of America— MPPDA- antecessora da MPAA). Para dar cabo da missão “moralizante”, colocaram na presidência um líder presbiteriano, o advogado Will H. Hays, que desenvolveu um código de conduta.
Esse código de conduta durou muito, e teve seu ápice entre 1930 a 1956[ii]. Os filmes “moralmente aceitáveis”, recebiam um selo de aprovação da MPPDA e aos reprovados, além da obrigatoriedade de pagamento de uma multa, restava o limbo, porque ao não serem distribuídos pela MPAA a chance de êxito de público e comercial era praticamente nula.
Dividido em princípios gerais" e "aplicações individuais”, pelo Código Hays não eram aceitos, por exemplo, termos considerados profanos, tráfico de drogas, escravidão (de pessoas brancas, claro), cenas de parto, sexo e nudez (de fato ou sugeridos), miscigenação racial e etc.
Dispensável dizer o quanto esse engessamento prejudicou não só a indústria cinematográfica como a cultura mundial e seu desuso se deu, principalmente, por uma reação de cineastas, que passaram a lutar contra ele frontalmente.
Apesar de eu ter destacado que Hays era um líder religioso presbiteriano, o Vaticano também dedicou atenção especial ao cinema.
Como discorri em artigos anteriores, a Igreja Católica participou ativamente e positivamente nas ações de formação superior em cinema no Brasil, estando presente, na década de 1960 nos primeiros cursos, na Universidade Católica de Minas Gerais, através do Padre. Massote e na Escola Superior São Luiz, em São Paulo, através do Padre José Lopez.
Como é amplamente sabido, desde os seus primórdios o cinema foi visto como um fortíssimo aparato ideológico e, do ponto de vista da educação, se tornou um grande instrumento, haja visto a criação, em 1937, do Instituto Nacional do Cinema Educativo, INCE, por Getúlio Vargas, em consonância com o projeto de Roquete Pinto.
Este papel instrumental do cinema, como formador e guia, permeou as atividades da Igreja Católica nas escolas do ensino fundamental e médio nas décadas de 1950 e 1960. Além dos cursos, os católicos tiveram participação ativa nos cineclubes, como e do Cine- Clube de Belo Horizonte- CCBH, em 1961 e na Ação Social Arquidiocesana, ASA. Essa influência que, passou por uma transformação e se tornou mais flexível e comprometida com causas mais coletivas, quando da Encíclica Master et Magistra, de 1961.
Anteriormente, duas Encíclicas do Papa Pio XI se fizeram notar por tratarem exclusivamente do audiovisual: Vigilanti Cura de junho 1936 e Miranda Prorsus, de setembro de 1936).
A Vigilanti Cura tratava especificamente sobre o CINEMA e em sua abertura já declarava:
Nosso parecer sobre este assunto, relacionado tão de perto com a vida moral e religiosa de todo o povo cristão. Antes de tudo Nos congratulamos convosco por ter esta Legião, guiada e instruída por vós e apoiada pela valiosa cooperação dos fiéis, já prestado, neste setor do apostolado, tão relevantes serviços; alegria tanto mais intensa quanto, angustiados, registrávamos que a arte e indústria do cinema chegara, por assim dizer, "em grandes passos fora do caminho", ao ponto de mostrar a todos, em imagens luminosas, os vícios, crimes e delitos.[iii]
Esta Encíclica clamava por uma atuação dos católicos, principalmente dos bispos, para colocarem o cinema em eixos moralizantes, traçando diretrizes sobre essa arte. Seus capítulos expressam profunda preocupação como em Elogio da "Legião da decência; O cinema e a moral cristã; Influência do Cinema e Fiscalização; Meios de Vigilância e Censura.
A Encíclica seguinte, Miranda Prorsus, publicada no mesmo ano, foi ampliada para Rádio e TV. Nela havia mais do que orientações morais, eis que se tratava de uma convocação à ação mais direta dos cristãos, dentro do próprio mercado audiovisual:
Os maravilhosos progressos técnicos, de que se gloriam os nossos tempos, sem dúvida são fruto do engenho e do trabalho humano, mas são primeiro que tudo dons de Deus, Criador do homem e inspirador de todas as obras; "não só produziu as criaturas, mas uma vez produzidas defende-as e protege-as” (...) Com particular alegria, mas também com prudência vigilante de Mãe, procurou, desde o princípio, a Igreja seguir e proteger os seus filhos no caminho maravilhoso do progresso das técnicas de difusão (...) Tal solicitude deriva directamente da missão que lhe confiou o Redentor Divino, porque essas técnicas - na geração presente - têm poderoso influxo no modo de pensar e agir dos indivíduos e comunidades (...) queremos dirigir-Nos a vós, Veneráveis Irmãos, cujo zelo pastoral conhecemos, para relembrarmos a doutrina cristã neste campo, recomendar as medidas necessárias e ajudar-vos deste modo para que guieis com maior segurança, o rebanho de Deus confiado aos vossos cuidados, e o premunais contra os erros e as imprudências no uso dos meios audivisivos, que podem constituir grave perigo para a vida cristã[iv]
Nessa carta papal podemos ver a divisão em assuntos: A "difusão" na doutrina cristã; A difusão do bem, A difusão do mal, Liberdade de difusão, Erros acerca da liberdade de difusão; Atribuições dos poderes públicos e dos grupos profissionais; Características da "difusão" por meio das técnicas audivisivas; dentre outros capítulos, das quais destaco ENSINO, que tratarei na parte final desse tema no próximo artigo, falando sobre sua influência no Brasil.
[i] Me abstenho de indicar a autoria de tal afirmação porque todas e todos que atuam no audiovisual, sabem a quem me refiro
[ii] Embora somente em em 1968, a MPAA o tenha superado por completo, ao criar um sistema de classificação indicativa
[iii]https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_29061936_vigilanti-cura.html
[iv]https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_08091957_miranda-prorsus.html
Luciana Rodrigues
Luciana Rodrigues é coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP e professora na mesma instituição. É parecerista da ANCINE, colaborou na criação e foi presidente do FORCINE- FÓRUM BRASILEIRO DE ENSINO DE CINEMA E AUDIOVISUAL. É Doutora e Mestre na área do Audiovisual pela USP, possui bacharelados em Comunicação- com Habilitação em Cinema- e em Direito.
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