06 Abril 2021

Janelas não morrem; janelas se complementam

"A televisão matará o cinema, do mesmo modo que este último matou o teatro?". "A televisão matará o cinema; o teatro, nunca!". "A crise [no cinema], mais uma vez, se institucionaliza, oficializando-se". "Esta aproximação [entre o cinema e a TV] tem de ser feita. Do contrário, o cinema vai acabar e a TV vai fazer filmes recordando o tempo do cinema".

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Todas essas frases poderiam ter sido escritas por alarmistas de hoje em dia. Contudo, elas datam de muitos anos atrás. A primeira citação foi extraída da revista A Cena Muda de 8 de fevereiro de 1951; a segunda veio da edição de 11 de julho de 1954 do semanário Flan; a terceira saiu no número 4 da Revista do Cinema, de 1964; e a quarta foi publicada na edição de 22 de setembro de 1974 do jornal Correio Braziliense.

Esses cavaleiros do Apocalipse cinematográfico apontaram vários algozes. Alguns eram curiosos, como este: "a um pouco menos rápida também popularização do automóvel e a institucionalização do 'weekend' e do 'loisir' sobre rodas, efeito da elevação do padrão de vida. Nos lugares de turismo, o interesse pelo cinema é reduzido e muitas vezes é até impossível assistir a uma fita", publicou em 1964 a Revista do Cinema. A TV, porém, era o vilão preferido. "A televisão, com os progressos que apresenta dia a dia, acabará por matar completamente o cinema como meio de distração pública. Isso é certo", declarou a atriz Aimeé, que protagonizou o primeiro beijo da TV brasileira, ao semanário Flan de 11 de julho de 1954.

Passado tanto tempo, constata-se que nenhuma dessas previsões se cumpriu. Cinema, teatro e televisão não só seguem coexistindo, como estão maiores do que eram em meados do século passado. Mas parece que muitos não aprenderam essa lição e insistem em ameaçar de morte o cinema e as salas de exibição.

As plataformas de vídeo sob demanda (VOD, na sigla em inglês) são os grandes algozes da vez. Ainda que muitos dos números divulgados por essas plataformas sejam gerados por elas mesmas e não passem por qualquer auditoria, o que compromete a confiabilidade dos dados, é notório o aumento do consumo de VOD. A ampliação da oferta de conteúdos e de players indica isso. Ao mesmo tempo, a pandemia de covid-19 impulsionou ainda mais o consumo de conteúdo em casa. Cumpre acentuar, porém, que esse crescimento não foi sentido apenas pelo VOD, como alguns querem fazer acreditar. Veja o caso do rádio: de acordo com dados divulgados pela Kantar IBOPE Media em setembro de 2020, três quartos dos ouvintes afirmaram consumir o meio com a mesma intensidade, ou até mais, após as medidas de isolamento social.

É claro que as exibidoras têm sofrido muito com esse contexto, pois se viram obrigadas a vender menos ingressos, reduzir a quantidade de sessões ou mesmo fechar as portas. Há de se lembrar, porém, que tal cenário é consequência direta da pandemia. Não há qualquer estudo que indique um súbito desinteresse do público pela inigualável experiência de assistir a um filme em uma sala de exibição. Sendo assim, quando a pandemia terminar, e espero que seja logo, o setor poderá se recuperar, ainda que enfrente o duro desafio de reconquistar uma plateia diferente daquela de março de 2020, visto que alguns dos seus comportamentos, inclusive em termos de lazer, foram forçosamente alterados.

Esse panorama complexo também obrigou estúdios e distribuidoras a trabalharem de forma diferente, priorizando o digital em vários casos. Mas isso não apaga o histórico de bons serviços prestados pelas salas de exibição. Antes da pandemia, elas já enfrentavam a concorrência feroz com o VOD e, mesmo assim, permaneciam ditando muito do desempenho que uma produção teria nas demais mídias. E, mesmo com as recentes mudanças, tal percepção permanece. Por exemplo: não foi por acaso que a Globo relançou neste ano uma sessão de filmes com sugestivo nome de Campeões de Bilheteria. Os players de TV não linear também não dispensam os grandes sucessos construídos nas telonas, mesmo com o aumento no número de produções originais e de filmes exibidos primeiro em VOD. Aliás, um dos fatores que melhor explica o desempenho do Disney+ é justamente o seu vasto catálogo de blockbusters.

Os que hoje anunciam o fim das salas de exibição diante da explosão do vídeo sob demanda são iguais àqueles que vaticinaram o fim do cinema por conta do surgimento da televisão. Seguindo este raciocínio, os telefilmes, produções exclusivas para TV, seriam verdadeiras armas de destruição em massa. E não são.

Está mais do que provado que meios não morrem. Eles se acumulam e se complementam. Novas mídias nascerão e, com elas, surgirão outros precipitados declarando a morte das salas de exibição e até do VOD. Mudanças pontuais nos gostos do público não podem ser confundidas com as contingências impostas pela gravíssima fase vivida pela humanidade, fase esta que, como todas as outras, passará. E quando isso acontecer, o cinema, como sempre, se renovará e, assim, permanecerá eterno.

Fernando Morgado

Consultor e palestrante de marketing e inteligência de mercado. Já atuou para empresas como B2W, Band, Globo e SBT. Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso. Professor convidado de instituições nacionais e estrangeiras. Autor de vários livros publicados no Brasil e no exterior, incluindo o best-seller Silvio Santos - A Trajetória do Mito. Membro da Television Academy, entidade organizadora dos prêmios Emmy. Foi coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Gestão da Economia Criativa e especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela ESPM.