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Artigo / Ensino e Formação Audiovisual

01 Abril 2021

A Década de 1920 e a Formação em Cinema no Brasil

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Quando comecei a reunir informações para a minha pesquisa de mestrado sobre ensino de cinema, me surpreendi ao descobrir que as primeiras experiências em formação em cinema no Brasil vieram da nascente década de 1920. Esse “ensino”, embora com outro caráter, tivera como principal experiência a Azzurri de Arturo Carrari, voltada à formação de atores e que alimentou a atividade de cavação, gerando campanhas sistemáticas contra elas.

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Não quero guardar para mim esse assombro, então vou compartilhar com vocês, em uma série de artigos para a Exibidor, o que reuni para minha dissertação de mestrado[i].

Os primeiros filmes realizados no Brasil, no final do século XIX, tinham formato curto, com episódios de carnavais, chegadas de trens ou eventos de famílias ilustres, tal qual fizeram os Irmãos Lumière na França.

Por volta de 1910, o cinema começou a se distanciar da mera captação da realidade. Foram dados os primeiros passos rumo ao ficcional, com as reconstituições de crimes ocorridos nas cidades, dramas históricos e temas religiosos.

Em seu livro Crônica do Cinema Paulistano, Maria Rita Eliezer Galvão[ii] chama a atenção para o fato de que “A partir de 1919, o centro do cinema paulista se desloca das sociedades italianas para as escolas de cinema”.

Nesse contexto, em 1916 surge Arturo Carrari, que iria ocupar lugar de destaque neste cenário na década de 1920.

A atividade de exibição, nesses tempos, já estava com predominância de filmes estadunidenses e a produção no Brasil estava ancorada em cinejornais e documentários, que levantavam recursos para os filmes de ficção, posados[iii], como eram chamados nos primórdios.

Em São Paulo essa produção cinematográfica estava concentrada basicamente nas mãos de imigrantes ou filhos aventureiros de imigrantes italianos.

Carrari, foi um “cavador”, termo que se refere a uma prática comum à época, que perpassou duas décadas, onde eram realizados registros cinematográficos de eventos que depois eram oferecidos à venda para interessados. No ano de 1911 essa figura singular viera da Itália, de Piezemonti, Modena, para trabalhar como ator, e morou em Ribeirão Preto, SP, até 1915 quando se transferiu para a capital paulista. Logo passou a fotógrafo e realizador de documentários. Em 1919 dirigiu O Crime de Cravinhos, Um Crime no Parque Paulista (em 1921); O Misterioso Roubo dos 500 Contos (1922); Os Milagres da Nossa Senhora da Penha (A Virgem da Penha e seus Milagres) (1923); Manhãs de Sol (1924); Amor de Mãe (1927) e Anchieta Entre Amor e Religião (1931).

Com ele trabalhavam muitos jovens, a maioria filha de imigrantes, que o ajudaram a criar a Escola de Artes Cinematográficas Azzurri[iv], que mesclava o papel de escola e empresa de cinema. Maria Rita Galvão, no já citado livro, situa a importância da criação da Escola, contando que seus alunos “futuros atores, diretores, cinegrafistas, laboratoristas, cavadores” que acabariam por sustentar o cinema paulistanocom sua atividade nem sempre irrepreensível- nas épocas em que ninguém mais filmava”

Carrari pretendia, ainda, realizar diversos filmes posados, o que de fato ocorreu entre 1920 e 1924, tendo seus alunos como atores.

A Escola de Artes Cinematográficas Azzurri era a única existente em São Paulo até 1922. A procura era enorme, chegando a ter, em horários diferentes por dia, três turmas com sessenta alunos cada.

Relata Maria Rita que Nino Ponti, professor na Azzurri, destacava uma cena em um argumento e determinava que os alunos desempenhassem tipos comuns, de “mocinha”, de “vilão”, de acordo com seu tipo físico. Como se tratavam de filmes mudos eram praticamente lições de mímicas, com as mais diversas expressões faciais e corporais.

No ano de 1924 a atividade de cavação finalmente começou a dar retorno financeiro a Carrari que, por isso, decidiu acabar com a Azzurri.

Importante ressaltar que o fim da Escola não significou encerramento de atividades, pois os alunos que dela saíram, cavadores na essência, continuaram trabalhando, seja como atores, documentaristas, autores de filmes “de enredo”, técnicos em diversas funções, e, finalmente, criando novas escolas. Vários dos seus egressos faziam filmes em conjunto, revezando funções.

As novas escolas foram surgindo e se situando no centro de São Paulo, como a Internacional, de Francisco Madrigano e a Anhangá, de Aquiles Tartari, ambas criadas em 1925. A primeira realizou quatro filmes e a última apenas um.

Apesar de se falar basicamente sobre este fenômeno como sendo de São Paulo outras escolas surgiram nos mesmos moldes pelo País, como no Rio de Janeiro, uma escola que funcionava junto à Guanabara Filme, dirigida por Salvador Aragão, que teve como aluno José Silva, português considerado pioneiro do cinema mudo mineiro nos anos 20. Outra figura, que pode ser considerada como “folclórica” do cinema brasileiro, por seus métodos “poucos convencionais” de trabalho e suas constantes mudanças de identidade, E. C. Kerrigan, também abriu uma escola, em Campinas, SP.

Em 1923 Kerrigan inaugurou a ESCOLA CINEMATOGRAPHICA CAMPINEIRA, com o cinegrafista Tomás Túlio, com quem fundou, também a A.P.A. FILM. Na escola tal como as já mencionadas, o foco era a atuação diante das câmeras.

As escolas propagaram-se de tal forma que chamaram a atenção raivosa da imprensa, que as considerava “antros de prostituição e exploração dos alunos”. No quesito exploração, a denúncia era de que os alunos tinham de financiar os filmes em que iriam trabalhar como atores.

A revista CINEARTE, que era considerada a mais importante publicação nacional sobre cinema, existente de 1926 a 1942, fundada por Adhemar Gonzaga e Mário Behring, tinha em seu redator Pedro Lima um dos maiores articuladores de campanhas, ferozes contra as escolas, por considerar que estas atividades depunham contra o cinema brasileiro, em uma crença de que era impossível ensinar cinema em bancos escolares. A crítica mais contundente encontra-se no artigo “Precisamos fechar as escolas de cinema !![v]”. Em 1929 a Cinearte, em seu nº 183, voltaria à carga defendendo a extinção das: “escolas cinematográficas, cujo único benefício é dar trabalho à polícia e nada mais (...)[vi]

De fato, as escolas tinham vidas bastante curtas, muitas vezes concluídas por mandados policiais, entretanto, em sua defesa, se pode afirmar que elas desempenhavam um importante papel, o de agregar pessoas que queriam trabalhar com cinema. Como diz Maria Rita Galvão, no já citado Crônica do Cinema Paulistano,

(...) colocavam-nas em contato com as outras, difundiam um mínimo de técnicas, levantavam um mínimo de recursos que permitiam a produção de filmes (...). Entretanto não foi a sua função declarada- formar atores- nem tampouco a sua função de fato- cavar dinheiro- o que tornou importantes as escolas de cinema. Elas eram um lugar onde se conversava sobre cinema, onde se encontrava gente que queria fazer cinema. Os alunos acompanhavam as filmagens de seus ‘mestres’, ajudavam no laboratório, aprendiam a filmar, a revelar, a fazer cortes e montagens, familiarizava-se com todos os procedimentos necessários à leitura dos filmes. Muito mais do que atores, as escolas formavam técnicos, operadores, cinegrafistas, laboratoristas, que por sua vez se encarregavam de transmitir a outros conhecimentos adquiridos. (GALVÃO, 1975: 53)

Quando escrevi esse capítulo da minha dissertação, estava imbuída não só em organizar uma história dispersa, mas, e principalmente, em demostrar que estas funções catalisadoras e organizadoras de diversos interessados por cinema vão acompanhar as escolas de audiovisual até a atualidade, independente de todos os objetivos expressos, e não alcançados, por muitas.

Considero que as escolas foram, e são, reflexos dos momentos da nossa cinematografia e do País, agindo algumas vezes como sujeito, outras como objeto.

As escolas neste artigo citadas eram espelho do que era o cinema brasileiro na época: uma atividade crua, empírica, em muito distante do movimento que começava a se desenvolver na Europa, de escolas que trabalhavam o cinema como linguagem.

Assim, no Brasil, a compreensão do cinema como arte, a “Sétima” como cunhou Riccioto Canudo, e a necessidade de estudá-la como linguagem, foram tarefas que assumiram os primeiros cinéfilos brasileiros nos cineclubes, tema do meu próximo artigo na Exibidor.

 

[i] Dissertação defendida em 2004 na USP, orientada pela professora doutora Maria Dora Genis Mourão, intitulada A FORMAÇÃO EM CINEMA EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR BRASILEIRAS -UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E FUNDAÇÃO ARMANDO ÁLVARES PENTEADO

[ii] GALVÃO, Maria Rita E. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo, Ática, 1975

[iii] Como eram chamados os filmes de ficção. Consta que o "filme posado" surgiu em 1908 e a primeira película de ficção realizada no Brasil foi Os Estranguladores de Antônio Leal

[iv] De mesmo nome de uma escola de atores da Itália. Funcionou inicialmente no Bairro do Brás, na rua Martim Buchara, depois se transferiu para local mais central, na rua Quintino Bocaiúva, centro de São Paulo

[v]  Revista Cinearte, 8 de fevereiro de 1928, Rio de Janeiro

[vi] Revista Cinearte, 28 de agosto de 1929,. Rio de Janeiro

Luciana Rodrigues
Luciana Rodrigues

Luciana Rodrigues é coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP e professora na mesma instituição. É parecerista da ANCINE, colaborou na criação e foi presidente do FORCINE- FÓRUM BRASILEIRO DE ENSINO DE CINEMA E AUDIOVISUAL. É Doutora e Mestre na área do Audiovisual pela USP, possui bacharelados em Comunicação- com Habilitação em Cinema- e em Direito.

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