30 Março 2021
Decisão sobre cota de tela em cinemas
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O Supremo Tribunal Federal julgou recentemente um Recurso Extraordinário (RE 627432) que tinha sido originalmente ajuizado há muitos anos, mais precisamente em 2003, logo após a edição da MP 2228-1/2001, medida provisória que criou a ANCINE- Agência Nacional do Cinema e institui a cota de tela de salas de cinema e vídeo doméstico.
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Como se sabe a MP 2227-1/2001 é uma daquelas poucas que se converteu em Lei sem nunca ter sido votada pelo Congresso Nacional, por força da adaptação da Constituição Federal, nesse tema de medidas provisórias, causada pela Emenda Constitucional 32/2001 (EC 32). De fato, à época, no Governo FHC, algumas medidas provisórias foram editadas aproveitando-se da situação que a EC 32 iria ser votada a aprovada. Tecnicamente essas medidas provisórias foram uma espécie de casuísmo, todas publicadas no começo de setembro de 2001. Foram congeladas no tempo todas as medidas provisórias que vigoravam na época de sua promulgação (setembro de 2001), dando-lhes validade perpétua.
Pelas regras anteriores à EC 32, a validade das medidas provisórias era de apenas 30 dias e tinham que ser reeditadas. A EC 32 fez uma regra de transição na qual as medidas provisórias editadas ou reeditadas no mês anterior à promulgação da EC 32 —– que ocorreu em 11 de setembro de 2001 — foram alcançadas por essa vigência definitiva como se lei fossem.
Assim foi criada a ANCINE e a cota de tela, por uma Lei que “foi sem nunca ter sido”.
A ação que deu origem ao caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ajuizada por um Sindicado de empresas exibidoras, tinha, esse pano de fundo, ou seja, que essa matéria deveria ter sido objeto de uma Lei devidamente passada pelo Congresso, notadamente porque as medidas provisórias tem como requisito a questão da relevância e urgência (pressuposto formal). Sob o aspecto técnico formal, nada nessa MP 2228/1 (originalmente MP 2219) fazia preencher esse requisito, notadamente porque durante os oito anos de mandato de FHC nenhuma iniciativa houve de concreto para o fomento do audiovisual. De fato, não fazia sentido técnico jurídico colocar essa proposta no afogadilho para pegar esse casuísmo que decorreria da aprovação da EC 32. A opção foi meramente política.
O processo judicial foi julgado procedente em primeira instância no Estado de origem. Houve recurso do Sindicato ao Tribunal Federal da Região, que, em agosto de 2009, reformou a decisão, entendendo que sob o aspecto formal a MP teria equivalência de Lei. Houve recurso ao STF, que trouxe questões mais amplas do que as formais, de criação das cotas por medida provisória tais como: (i) a contrariedade ao princípio da igualdade, dada a inexistência de qualquer exigência similar a outros setores exploradores da cultura; (ii) a restrição à livre iniciativa das empresas exibidoras afiliadas ao sindicato autor, haja vista que a Constituição Federal, em seu art. 154, limitou a intervenção estatal na esfera da iniciativa privada à mera indicação; (iii) a desproporcionalidade da imposição de cota de veiculação e a repercussão no equilíbrio financeiro dos empreendimentos de veiculação cinematográfica e (iv) a impossibilidade de operacionalização da cota-tela, dadas a pouca produção de filmes brasileiros e a singela distribuição de cópias de cada título. Requereu, enfim, a plena liberdade de escolha dos filmes a serem veiculados, livrando os veiculadores associados dos encargos e multas pelo descumprimento dos normativos referidos.
Em abril de 2014, STF, por unanimidade, reputou que havia matéria constitucional na questão. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencido o Ministro Teori Zavascki. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Roberto Barroso.
O Sindicato desistiu do recurso no STF antes do seu julgamento.
O STF, contudo, indeferiu o pedido de desistência do recurso extraordinário, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, entendendo que agora, com o reconhecimento da repercussão geral, não estava o caso mais nas mãos exclusivas do recorrente e foi em frente com a análise. Esse é um ponto interessante porque mesmo com a ausência de interesse do Sindicato recorrente, a relevância prevalece. O STF já tinha decidido anteriormente, em questão de ordem, que o reconhecimento de repercussão geral impede que um recorrente desista de seu próprio recurso (RE 693456). O argumento é que os recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida são falsamente subjetivos e têm contornos objetivos, não podendo se submeter exclusivamente à vontade e interesse do recorrente. O novo Código de Processo Civil diz que desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquele objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos (Art. 998).
O Parecer do Ministério Público Federal (MPF) opinou dizendo que sob o aspecto formal, como a EC 32 está em plena eficácia, não havia porque se questionar essa eternização das medidas provisórias que nunca foram votadas. Não se negou que a norma acabou por subverter a disciplina constitucional das medidas provisórias, de modo a tornar permanente normas de cunho intrinsecamente transitório. Aduziu o MPF que parte da doutrina jurídica até advoga a pecha de inconstitucionalidade à referida parcela da emenda, mas mesmo assim, como inexistiu uma ação para declarar inconstitucional a tal EC 32, o provisório ficou definitivo.
No julgamento de 18 de março de 2021 o STF, por maioria de votos fixou a tese de que de repercussão geral (tema 704): “São constitucionais a cota de tela, consistente na obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais nos cinemas brasileiros, e as sanções administrativas decorrentes de sua inobservância”, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Presidência do Ministro Luiz Fux. Plenário, em sessão realizada por videoconferência.
O resultado prático não é muito grande uma vez que a cota de tela criada pela MP 2228-1, tem seu vencimento agora em 05 de setembro de 2021. Tanto tempo se passou que as cotas foram cumpridas, veio uma pandemia, as salas lutam hoje em dia para ficarem abertas e sobreviverem. Filmes nacionais ou estrangeiros hoje tem como primeiro objetivo reencontrar a tela, antes mesmo de discutirem como reservar espaços.
O Projeto de Lei 5092/20 na Câmara dos Deputados vida prorrogar até 2030 o prazo de obrigatoriedade de exibição comercial de filmes brasileiros nos cinemas – a chamada cota de tela. Outras propostas semelhantes já tramitam naquela casa legislativa, tais como o PL 5497/19 e apensados (PLs 5597/19 e 5757/19).
O resultado do julgamento do STF mostra que a justiça que tarda, falha, para qualquer lado da questão.
Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli | marcos.bitelli@bitelli.com.br
Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP Especialista em Direito do Entretenimento, Audiovisual, Propriedade Intelectual, Comunicações e Telecomunicações Sócio de Bitelli Advogados
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