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Artigo / Audiovisual

03 Fevereiro 2021

Seja um criador de mitos

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Uma rápida olhadinha nas melhores bilheterias deste mês no Ranking da Revista Exibidor nos revela que os maiores públicos do momento são “Mulher -Maravilha” e “Pinóquio”.  Um mito e uma fábula contemporânea.

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O Brasil, no entanto, ainda prioriza o realismo. Qualquer lista de sinopses de filmes brasileiros poderá perceber uma unidade estética: somos muito realistas. Alguns tentam fazer, no máximo, uma fábula social no Estilo Glauber Rocha, um passo para vencer o realismo. Mas ser explicitamente mito, explicitamente não realista, nós temos tido certa dificuldade de realizar. Nossas melhores comédias são comédias de costumes, excelentes retratos da realidade e nossos dramas tendem a policiais, gênero que também permite retratar a realidade.  Mesmo um dos poucos filmes de um herói brasileiro”, o “Doutrinador” ainda é um herói sem poderes paranormais e que foca em temas políticos. Gosto muito do Universo e considero um marco. Mas é sintomático para o conjunto de nossa filmografia o fato do máximo que conseguimos foi criar em termos de Herói foi um Batman de Cavaleiro das Trevas, mas com menos aparelhos tecnológicos surreais a lá 007, como Batman tem e compõem seu lado não realista.  Nós, ao contrário, até em filmes de herói tendemos ao realismo. Temos que refletir sobre isso. Por que será que nossa imaginação está engessada?

A resposta mais óbvia é o orçamento: é muito mais barato criar universos realistas do que não realistas. É verdade. No entanto, suspeito que esse desprezo pelo imaginário venha também de um ambiente intelectual contaminado pelo realismo (socialista ou não socialista), que não circula muito pela cultura pop e tem um desprezo natural pelas “bobagens do cinema americano”.

Não sei exatamente o porquê não fazemos, mas sei as consequências de não criar mitos. Deixamos o poder de criação de mitos para os gringos, deixando de participar da disputa real do mercado audiovisual mundial, aceitando que apenas a Marvel, Disney e a DC criem os mitos atuais.

Podemos mudar isso imediatamente, é só querer. Não é difícil imaginar a criação de mitos e fábulas a partir da cultura brasileira.  Para começar podemos retrabalhar marcas, uma óbvia tendência da cultura atual (basta ver o sucesso de todas as obras da Marvel e de séries como Lupin). Exemplos óbvios nessa linha de releitura são Zé Carioca e Macunaíma.  Aposto que Disney criará em breve algum filme ou série com o personagem do Zé Carioca, o malandro carioca que tanto inspirou minha infância. Na linha de Mitos e continuando no setor da malandragem temos o trickster Macunaíma (mito indígena e livro de Mario de Andrade) que, diante das comemorações da semana de 22, pode e deve ser revisitado.

Mas são poucos os mitos e personagens que têm potencial para ser retrabalhado por nossa cultura pop.  Podemos e claro procurar os saci pererês dos folclores, mas temos que começar praticamente do zero, pois a juventude já está longe dessa cultura. Um exemplo: infelizmente não temos editoras com histórico na criação de Universos de Super Heróis, que poderiam ser licenciados. Pode ser que tenha que começar por aí. Quando fui Secretário do Audiovisual tentei lançar a ideia de financiar estudos para criação de HQs, pois é uma forma mais barata de testar os personagens. Fico feliz de ver que surgem hoje no Brasil algumas iniciativas nesse sentido. Devem ser apoiadas com urgência.

Temos poucos personagens pois nossa criação está aprisionada por dogmas antigos. Mas quando libertos somos um povo obviamente criativo. Podemos partir dos mitos e fábulas dos vários povos que constroem a nação brasileira.  Como aqui sempre foi um país diversificado, não é difícil imaginar histórias menos maniqueístas que as narrativas criadas pelos americanos, sempre tensos com o puritanismo. Nos filmes brasileiros nossos Herois/Semi-deuses de vários povos podem disputar por seus valores e sua cultura, mostrando ao público como é possível chegar a sincretismos e diálogos. Não é difícil imaginar uma equipe com Super Heróis de várias culturas, um X Men da Diversidade cultural. E também não precisamos e não devemos ficar presos apenas ao tripé: índio, português e negro.  Claro que essas três matrizes já dariam muito pano para manga, mas não precisamos restringir nada. Primeiro porque o Brasil tem mais muitos povos, do Oriente, Árabes, Bolivianos, etc. E principalmente porque a melhor definição da cultura Brasileira foi dada pelo Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, que mostra como nosso maior talento é deglutir o estrangeiro, criando novas obras mais com estéticas mais sincréticas.  Monteiro Lobato foi um gênio ao criar o Sitio do Pica Pau Amarelo a partir da cultura caipira do interior de São Paulo. Mas o Sítio do Pica Pau não era resistente à cultura americana e recebia e antropofagizava o Gato Felix, personagem da cultura pop americana da época. O Brasil não tem vocação para purismos, gostamos da mistura. E é esse talento nacional pela mistura que pode criar obras de sucesso mundial, que promovam diálogos entre as culturas, maior necessidade do mundo hoje.

Alguns pensam que pode parecer pretensão tentar criar mitos.  Não é verdade. Mitos são criados a toda hora. Nós adoramos falar dos mitos gregos, africanos ou indígenas e sabemos como eles vêm do inconsciente coletivo. Mas vale lembrar que alguém - um ser humano - escreveu ou narrou oralmente esse mito. Alguém contou ele pela primeira vez e outros foram recontando a sua forma.  Essas histórias tem um agente humano que a criou. Um roteirista da época.  “No princípio era o verbo”, abre o Gênese. E até essa frase foi escrita por um ser humano, conectado com Deus, claro. Mas ainda assim, um escritor a escreveu.

Na hora que entendemos isso, recuperamos nosso Poder de Criar Mitos que mudem o mindset de quem ouvi-los, mudando a forma de pensar e transformando o mundo. E o que fazem todas as grandes religiões e todos os grandes universos ficcionais que gostamos de chamar de Franquias. Às vezes mudando, às vezes mantendo o mundo como está. Mas sempre pautando o imaginário e os sonhos de nossa espécie.

Eu arriscaria até que os maiores sucessos (seja entre filmes de arte, sejam em blockbuster) são os que conseguem isso: eles nos transformam. É isso que buscamos quando assistimos um filme ou uma série: queremos um mito fresquinho, novo, original, recém saído da fonte. Queremos artistas que estejam realmente conectados com a Consciência Superior (ou inconsciente coletivo) e tragam as novidades do Imaginário coletivo, do mundo Astral, do Mundo Superior ou do nome que cada cultura der a esse outro plano.

Sim. Sei que o foco dessa série de artigos que publico na Exibidor é falar de marketing e busca do sucesso. Mas não dá para falar de mitos sem lembrar que para criá-los é necessário artistas xamãs, que atuem como antenas de nosso tempo e consigam criar o imaginário que nos trará felicidade.

Newton Cannito
Newton Cannito

Newton Cannito é autor roteirista de séries como Unidade Básica (Universal TV), 9mm (Fox/Netflix), entre outras. Roteirista de filmes como Reza à Lenda e Broder. Foi também Secretário do Audiovisual do Minc e é coordenador do Concurso Histórias para Unir o Brasil. (www.unirobrasil.com.br)

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