29 Janeiro 2021
Mãe, quando vamos ao cinema?
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Com demora injustificável, esta semana o Brasil inicia a verdadeira guerra contra o Covid-19 graças à ciência. Não vai ser um confronto fácil, vamos progredir lentamente tentando pegar no tranco, mas já estamos enfim na direção certa e com as armas certas, superando a barbárie e a desinformação intencional. Com o correr dos meses veremos o número de casos e mortes diárias diminuir, e chegarão os dias em que, atingida a imunidade coletiva, recobraremos a confiança de assistir eventos públicos com tranquilidade. Mas não nos podemos iludir, ainda estamos numa primeira fase, e terrível. Por isso acho que hoje é um bom exercício para o espírito começar a pensar no que iremos fazer com a nossa indústria quando esses dias chegarem. Cito novamente a Yuval Noah Harari “...Sim, a tempestade irá passar, a humanidade irá sobreviver, a maioria de nós estará viva - mas habitaremos um mundo diferente”.
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A esta altura começamos a enxergar algumas das coisas que terá esse mundo diferente. Alguns hábitos que foram criados ou que já estavam e foram estimulados por necessidade durante a pandemia irão permanecer, por simples descoberta, por incorporação, por conveniência. Compramos online muito mais do que no passado, geramos uma enorme demanda por serviços de entrega, entre eles o streaming, tudo que leve produtos e serviços para as nossas residências. Mas inexoravelmente a hora de sair da toca chegará, e ali teremos mais opções.
Há poucos dias ouvi a minha sobrinha de 8 anos, que naturalmente vive grudada em tudo que é telinha, perguntar - Mãe, quando vamos ir ao cinema?
Caramba pensei, a geração telinha também tem saudades da tela grande. Ou seja, os miúdos não são exceção.
Todos bem sabemos que a experiência de assistir conteúdo em um cinema é muito diferente da que temos ao assistir em casa ou no celular via streaming, por motivos múltiplos e óbvios. Não irei insistir sobre isso. O streaming tem o apelo de ser on-demand, de ter uma enorme oferta de títulos, de oferecer escolha imediata do conteúdo e em qualquer lugar. O cinema nesses aspectos não pode oferecer essas vantagens. Por sua natureza, existe horário e sala para um determinado título. Mas isto que pode ser considerado uma limitação, uma desvantagem, pode ser a chave do seu próximo sucesso. Em essência, uma sessão de cinema é um evento especial. Um evento não é um ato arbitrariamente ao alcance do dedo, em qualquer lugar e no qual podemos parar, interromper e pular para uma outra opção em qualquer hora do dia. Ir ao cinema é uma escolha feita com cuidado, e para isso nos programamos, marcamos para ir com as pessoas com quem gostamos de curtir coisas juntos, de discutir depois, e assim nos organizamos para ir em um determinado cinema e horário. E aqui está a chave, esperamos e nos preparamos para esse evento. A espera se torna mais estimulante nos minutos que antecedem a projeção, porque sabemos que virá algo que nos interessa. Temos ciência de que estamos prestes a viver uma espécie de viagem para outros mundos, uma saída da nossa rotina. Por algumas horas estaremos na vida de um outro, em suma, o que foi chamado de suspensão da descrença e é a ela que nos entregamos. Esse isolamento do mundo exterior produz um corte na continuidade do dia a dia, um corte necessário. A sala de cinema é precisamente o melhor lugar para criar as condições dessa interrupção voluntaria. Por isso, tudo aquilo que pode enriquecer essa experiência tem um valor agregado importante. A telinha do celular certamente não tem esse poder.
Um exemplo de como se enriquecia a sessão de cinema nas décadas dos 50’s e 60’s vem da minha memória. Não estou tentando dizer que deveríamos copiar a mesma mecânica, porque hoje seria inviável, mas sim inspirarmos na ideia, a de que cinema de entretenimento é espetáculo valioso, diferente, e precisa ser bem apresentado. Justamente, para os que fazem cinema, inventiva não falta.
Tomemos o caso do Cinerama. Ele foi pensado desde o início como espetáculo, e seus criadores sabiam como apresentar o show. A tela, gigantesca, tinha cortinas. A sessão iniciava com as luzes sendo atenuadas ate ficar a sala em penumbras, com as cortinas fechadas. A trilha de som começava primeiro, criando uma atmosfera que nos condicionava à história, imersiva, as vezes por alguns minutos. Você tinha a sensação de que alguma coisa grande iria acontecer. No caso de “2001 uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrik, quem abria era o coro de “Lux Aeterna” de Gyorgy Ligeti. Na penumbra e com esse coro, a pele ficava arrepiada. E quando a projeção iniciava, as cortinas abriam lentamente, e da semiobscuridade passávamos ao primeiro plano do filme, a do eclipse lunar com os créditos iniciais, e com nada menos do que a agora celebre música de “Assim falava Zaratustra” de Richard Strauss. Garanto que a sensação era de que algo grande realmente havia acontecido e que ainda estava por acontecer. E isso, antes do filme iniciar. É claro que neste relato muito tem a ver com o conteúdo, mas com os recursos cinematográficos atuais, elementos não faltam. Algumas das nossas salas já contam com sistemas de som muito sofisticados, e com projeção laser 4 K com imagem de parede a parede, do piso ao teto. Algumas redes têm em mãos muita tecnologia com que implementar. E por que não voltar a usar cortinas? Mas nem tudo é tecnologia. A ideia então, reside na forma em que apresentamos o conteúdo e com que o apresentamos. Por exemplo, poderíamos criar DCP’s com conteúdos específicos do exibidor para este proposito, que poderiam ser exibidos imediatamente antes do filme, como prologo. O Brasil conta com toda a infraestrutura de produção e os profissionais de talento necessários em todas as etapas, desde a concepção das ideias, passando pela sua implementação ate a finalização de som e imagem.
Sabemos que os cinemas sobreviveram as crises anteriores do século XX, inclusive a epidemia de Febre Espanhola e as ocasionadas pela introdução da televisão, do VHS, DVD, etc. Conhecemos como, em matérias anteriores já escrevi sobre os recursos que a indústria implementou para enriquecer a exibição. Agora é preciso confiar nessa caraterística própria e única, a do cinema ser uma experiência diferente. Vamos reforçar essa diferença inovando.
As pessoas desejam intensamente retornar aos cinemas, vamos receber a audiência como se fosse para uma festa de gala
Carlos Klachquin | CBK@dolby.com
Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.
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