26 Janeiro 2021
A revisão da extensão do safe harbor pode desaguar na revisão do papel dos intermediários de internet no combate à pirataria
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Artigo escrito em colaboração com Felipe Senna e Daniella Ferrari
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Em 15 de dezembro passado, a União Europeia publicou o Digital Services Act (DSA), uma proposta regulatória que segue a tendência inaugurada formalmente na Diretiva Europeia de Direitos Autorais de 2019 de diminuir a extensão do safe harbor concedido a intermediários de internet, especialmente as chamadas “grandes plataformas”. Na mesma data, o Reino Unido publicou um memorando sobre sua proposta de Online Safety Bill na mesma direção: aumentar a responsabilidade dos intermediários da rede.
Do outro lado do Atlântico, a Communications Decency Act (CDA) de 1996, verdadeira pedra fundamental estadunidense do regime de isenção de responsabilidade dos provedores de internet, se encontra em plena discussão, dentro, inclusive, do contexto das recentes eleições presidenciais que resultaram no banimento de Donald Trump das redes sociais. Se é verdade que os mais de 20 anos que se seguiram ao CDA foram um período de consolidação da isenção de responsabilidades dos provedores em todo o mundo – passando pelo Brasil, com o Marco Civil da Internet – o momento atual, iniciado, ao menos formalmente, na Europa, com a Diretiva de Direitos Autorais de 2019, é de revisão do amplo laissez passer para que os intermediários atuem mais fortemente na proteção das redes.
Essa questão já é uma velha conhecida dos criadores de conteúdo de todo gênero, claro, mas a verdade é que a pauta de combate às violações de direitos autorais nas redes raramente movimentou paixões legislativas ou recebeu grande prioridade de governos mundo afora, lamentavelmente. E, confirmando essa percepção, sabemos que o tema da responsabilidade dos intermediários ocupa lugar de destaque atualmente não em razão da proteção da propriedade intelectual, mas porque ganhou dimensão política a partir do momento em que eleições são vencidas ou perdidas com base na regulação das redes, como ficou claro no escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.
De todo modo, o momento pode ser propício para que o tema da pirataria também componha a pauta de discussões relacionadas à revisão do estatuto de responsabilidade civil dos intermediários da rede.
A pirataria de conteúdo audiovisual segue acompanhando o desenvolvimento das novas tecnologias paralelamente ao mercado legítimo, como demonstraram os meses iniciais da pandemia de 2020.1 A convergência cada vez maior entre o segmento de entretenimento e os meios digitais, verificada pela ascensão do streaming digital e serviços de vídeo sob demanda (Video on Demand - VOD), vê aumentar também a oferta ilegal e disponibilização não autorizada de conteúdo protegido. O prejuízo da pirataria afeta a cadeia audiovisual como um todo, desde a indústria cinematográfica até operadores de TV por assinatura e os próprios consumidores.
Nesse cenário, o papel dos provedores de internet ganha relevância na medida em que possibilita tanto a disponibilização indevida de obras por piratas quanto o acesso ilegal a estas por usuários, figurando enquanto intermediários da atividade ilícita. O conceito de provedor é abrangente, podendo incluir desde serviços de conexão à rede até plataformas online como redes sociais e sites de e-commerce. A discussão sobre a responsabilização cabível aos intermediários em relação à publicação de conteúdo de terceiros é delicada, impulsionada no contexto atual pela ascendência global das big techs e crescentes iniciativas de regulação estatal para moderação e remoção de conteúdo online.
Na vanguarda desse debate, duas legislações norte-americanas da década de 90 serviram para moldar o entendimento inicial quanto ao dever dos provedores: a Communications Decency Act, já mencionada, e a Digital Millenium Copyright Act - DMCA. A primeira instituiu uma normal geral de isenção de responsabilidade dos intermediários digitais pelo conteúdo publicizado por terceiros. Já a segunda, específica às violações de direitos autorais, inaugurou um sistema de notificação e retirada para conteúdo infrator e limitou a isenção de responsabilidade dos provedores ao cumprimento de determinadas condições (os chamados “safe harbors”).
Mais recentemente, a questão veio ganhando novos contornos em direção à exigência de uma atuação mais proativa dos provedores, resultando também em hipóteses mais amplas de responsabilização, como é o caso da caracterização da “violação contributiva”.2 Em um importante precedente judicial estadunidense (BMG LLC v. Cox Inc), titulares de direitos de obras fonográficas demonstraram a responsabilidade contributiva do provedor de conexão Cox Inc. ao permitir que as obras protegidas fossem ilegalmente baixadas por torrent através de sua rede, assim concorrendo indiretamente para a violação dos direitos autorais.3
A violação contributiva é entendida como uma forma de infração na qual não há uma violação direta a um direito autoral pelo agente, mas a partir de sua conduta induz ou autoriza outrem a infringi-lo diretamente. Trata-se uma hipótese de responsabilidade civil secundária que não encontra previsão expressa nos dispositivos legais da DMCA, mas é vista como um desdobramento de um princípio geral de responsabilidade civil na common law. Para tanto, o grupo BMG argumentou que houve uma “cegueira deliberada” por parte da Cox, uma vez que esta teria optado por fechar os olhos às práticas ilícitas de seus clientes embora tenha sido previamente notificada, não tomando as devidas providências e falhando na implementação de suas políticas internas para infratores reincidentes. Nesse sentido, a “cegueira deliberada” tem sido usada como um conceito que vai além da mera negligência, suprindo o requisito do conhecimento do ilícito, necessário para a caracterização da responsabilização. 4
Em janeiro de 2021, a discussão voltou à tona quando um juiz do Tribunal Distrital dos EUA manteve uma sentença indenizatória no valor de US$ 1 bilhão contra a Cox Inc, considerando o provedor de internet responsável pela violação de direitos autorais de mais de
10.000 obras musicais em ação diversa movida pela Sony Music, Universal Music Group, Warner Music Group e EMI.5 O julgamento veio quatro anos depois de a Cox Inc. ter sido condenada a pagar US$ 25 milhões em danos à BMG, sentença que posteriormente foi revertida parcialmente em sede de recurso e culminou no estabelecimento de acordo entre as partes.
No Brasil, a responsabilidade civil no ambiente online segue as normas previstas no Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014), promulgada em 2014 para regular o uso da rede. Embora o artigo 18 do instrumento legal determine a isenção da responsabilidade dos provedores de conexão quanto aos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, o artigo 19 traz a previsão de responsabilização aos provedores de aplicações baseada no não- cumprimento de decisões judiciais que ordenem a remoção do conteúdo apontado como infringente. No entanto, a própria constitucionalidade do caput do artigo 19 está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, através do leading case selecionado – o RE 1.037.396/SP envolvendo remoção de conteúdo pelo Facebook.
Já no caso específico das violações por direitos autorais e direitos conexos, a questão permanece em aberto: o parágrafo 2º do artigo 19 condiciona o disposto a regulamentação específica, a qual ainda não foi editada. Ainda assim, observa-se que o art. 19 não obriga o provedor a esperar por uma ordem judicial para que remova qualquer conteúdo, podendo retirá-lo voluntariamente por iniciativa própria ou com base em pedidos de titulares de direitos, assim possibilitando mecanismos de atuação mais proativos de provedores. Ultimamente, uma via certeira para responsabilizar intermediários pela violação de direitos autorais levada a cabo por sites piratas poderia vir como uma medida dissuasória para coibir a atividade ilegal na internet.
1 Estudo desenvolvido pela EtherCity demonstrou o aumento de 15% a 20% de acessos a sites de pirataria audiovisual entre Fev/2020 e Abril/2020.
2 Em inglês, “contributory infringement”.
3 BMG Rights Mgmt. (US) LLC v. Cox Commc'ns, Inc., 881 F.3d 293, 302 (4th Cir. 2018).
4 Felipe de Senna Silva Araujo, “E-Commerce and Content Infringement: Auction Sites and Marketplaces’ Contributory Liability for Online Stores’ Misconducts in the United States, the European Union and Japan.”
5 https://www.billboard.com/articles/business/9510360/cox-1-billion-copyright-infringement-verdict- upheld-labels.
Ygor Valerio
Advogado, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Graduado em Direito da Propriedade Intelectual pela FGV/SP, ocupou cargos jurídicos de liderança em grandes empresas multinacionais de tecnologia e foi Vice-Presidente Jurídico da Motion Picture Association – MPA para a América Latina, tendo adquirido ampla experiência em temas jurídicos em diversas jurisdições como México, Argentina, Peru, Colômbia, Uruguai e Chile. É secretário-adjunto da Comissão de Direitos Autorais do Conselho Federal da OAB e Co-coordenador da Comissão de Estudos de Direito Autoral da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Foi Conselheiro Titular do Conselho Nacional de Combate à Pirataria do Ministério da Justiça (CNCP) entre 2015 e 2020.
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