22 Janeiro 2021
Se criaram mexendo na antena para ver novela e agora exigem Disney+
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O título desse texto é uma adaptação de um tweet[1] postado na madrugada do dia 17 de novembro de 2020, quando teve início o funcionamento do Disney+ na América Latina. Quer dizer, pelo menos quando milhões de assinantes latino-americanos achavam que o serviço de streaming ficaria disponível para eles. Após meses de uma contagem regressiva no site oficial de pré-assinaturas, muita gente achou que teria um grande evento de lançamento na virada da meia-noite. O que acabaram vendo foi uma série de reclamações e memes no Twitter.
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Antes mesmo de chegar oficialmente à América Latina, o Disney+ já havia batido mais de 70 milhões de assinaturas no mundo e chegou a mais de 80 até o fim do ano passado. Os números ainda são bem inferiores aos da Netflix e do Amazon Prime Video, os outros gigantes do mercado, mas o serviço da Disney ainda não chegou em vários países e em boa parte do mercado asiático. Mercado esse, no qual a Netflix pretende investir duas vezes mais em conteúdo original agora em 2021. A chegada do serviço à Ásia aconteceu em 2015 e, desde 2018, foram investidos mais de 2 bilhões de dólares em conteúdo local.
Investir em mercados que vão além dos Estados Unidos e do Canadá, assim como em conteúdos de línguas não inglesas, tem sido uma estratégia da Netflix e não é à toa. No fim de 2019, o número de assinantes do canal por streaming na Ásia e na América Latina teve um forte aumento, o Brasil passou a ocupar o terceiro lugar entre os maiores países em termos de receita e o segundo em assinantes, e o mercado composto por Europa, Oriente Médio e África, responsável por 25% da receita total em 2018, passou a garantir 32% na metade de 2020.
Além do investimento em produções locais, a Netflix também investe muito em comunicação e relacionamento local. Quando grandes lançamentos globais chegam à América Latina, por exemplo, o canal prepara conteúdo exclusivo para os espectadores da região, como aconteceu, aqui no Brasil, com a Xuxa e Stranger Things, Valesca Popozuda, Inês Brasil e Narcisa Tamborindeguy em três temporadas diferentes de Orange Is The New Black, um vídeo da Sandy para conter o download ilegal da segunda temporada de La Casa de Papel e muitas outras estratégias online baseadas na relação com os fãs brasileiros, que já encaram a Netflix mais como canal do que como repositório de conteúdo.
Há anos o Brasil é o país que mais consome conteúdo online pirata no mundo. De acordo com um estudo feito pela Nagra/Kudelski Group e divulgado no final do ano passado, esse consumo superaria o de continentes inteiros. Em seguida, viriam, em segundo lugar, países do norte da África (Argélia, Marrocos, Egito e Tunísia), Oriente Médio (Irã e Arábia Saudita), em terceiro e em quarto, países da Europa (França, Alemanha e Itália). Ao mesmo tempo que observamos a permanência do Brasil no topo do pódio da pirataria, vemos não só um aumento nos números de assinaturas de serviços de streaming, como a superação da TV por assinatura. Em agosto do ano passado, um relatório da Bernstein Research apontou que o número de assinantes da Netflix no país passaria de 17 milhões, frente aos 15,2 milhões declarados pela Anatel para a TV paga.
O Brasil pode ser o país que mais baixa conteúdos ilegalmente no mundo, mas, talvez, isso não aconteça apenas pela busca por acesso gratuito. Muitos espectadores brigam não só pelo acesso, mas por inclusão - e pelo que muitos percebem como respeito. Acostumados a entrar em contato com um número cada vez maior de informações sobre seus programas e universos favoritos e sem conseguir fazer parte de forma oficial de tudo aquilo que querem, criam meios de chegar aos conteúdos. Sentindo-se à margem do mercado, correm atrás de formas de inclusão e representação a partir do contato com outros consumidores. Entre os posts que ocuparam o Twitter no dia 17 de novembro de 2020, muitos comemoravam a possibilidade de poder, a partir daquele momento, assistir a conteúdos como a série Mandalorian e o musical Hamilton sem usar VPN ou fazer download ilegal.
É nesse contexto que vemos os espectadores hoje. Consumidores que aprenderam a correr atrás, a buscar acesso a partir dos meios que encontram – ou que conseguem criar. Consumidores ainda mais sociais, mais dispostos e sedentos por experiências compartilhadas, por serem vistos, por pertencerem ao mercado que acompanham indiretamente, mas sem esquecer quem são. Consumidores que, cansados de não se sentirem merecedores, estão, junto a outros consumidores, entendendo qual é sua luta. E que decidiram não correr dela, mas enfrentá-la. Resta saber, na tão falada Guerra do Streaming, quem os players estão vendo como inimigos e quem estão vendo como aliados.
[1] No original, em castelhano, o autor diz “Se criaron moviendo la antena para ver Marimar y ahora exigen #disneyplus”, fazendo referência a uma das sete novelas da Televisa com Thalía, entre o final dos anos 1986 e 1999, que foram exibidas em muitos países latino-americanos.
Pedro Curi
Coordenador dos cursos de graduação de Cinema e Audiovisual e Jornalismo da ESPM Rio. Especialista em temas relacionados a cultura dos fãs, convergência midiática, consumo audiovisual e televisão.
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