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Artigo / Regulamentação

26 Outubro 2020

Anatel e Ancine abrem espaço para um novo mercado

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Já pudemos expor neste espaço que o mercado audiovisual passa por imensas mudanças, no Brasil e no mundo, processo inclusive acelerado pela pandemia. Os serviços OTT (na sigla em inglês, “over the top”, referência ao fato de que são prestados utilizando a infraestrutura de telecomunicações que provê acesso à internet e trafegam sobre esta rede) tornaram-se, nos últimos anos, o grande fator de crescimento da indústria e destino de vultosos investimentos das grandes empresas globais do setor. De acordo com dados do Theme Report da Motion Pictures Association, em 2018 o número de assinaturas de serviços OTT superou pela primeira vez o número de assinantes de TV por assinatura (número, este, que chegou a 864 milhões de assinaturas em 2019, um crescimento de 28% sobre 2018); já de acordo com a PWC espera-se, no Brasil, crescimento da ordem de 12% ao ano para estes serviços no período compreendido entre 2017 e 2022 (de acordo com o PWC Media Outlook 2018-2022).

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Um passo importante para a consolidação deste movimento foi dado por ANATEL  e ANCINE neste ano de 2020, nos processos de análise da aplicabilidade do regime regulatório de TV por assinatura aos assim chamados OTT lineares, isto é, os serviços que fornecem conteúdo programado (linear) por meio da internet. Discutia-se, ali, se tais serviços, por oferecerem conteúdo audiovisual similar àquele que é oferecido pelos serviços tradicionais de TV por assinatura, deveriam sujeitar-se ao mesmo regime regulatório estabelecido para estes, estabelecido pela assim chamada Lei do SEAC (Lei n. 12.485/11).

A resposta dada, tanto pela ANCINE como pela ANATEL, é pela impossibilidade de aplicação do regime regulatório da TV por assinatura aos serviços OTT. De maneira geral, o fundamento é simples: serviços de televisão por assinatura são serviços de telecomunicações prestados por meio de infraestrutura dedicada (qualquer que seja a tecnologia), enquanto os serviços OTT são serviço de valor adicionado (conforme definição do art. 61 da Lei Geral de Telecomunicações). São serviços absolutamente distintos, e, portanto, não podem estar sujeitos ao mesmo regime regulatório.

A despeito da polêmica em torno do assunto, a decisão é acertada do ponto de vista regulatório, com vistas ao desenvolvimento equilibrado do mercado. Afinal, os serviços OTT trafegam sobre rede de terceiros (rede de telecomunicações que dá acesso à internet) e, portanto, não controlam a infraestrutura de distribuição dos serviços por eles prestados – diferentemente dos serviços de TV por assinatura. Ao não controlar a infraestrutura que lhes dá suporte, estão inseridos em um mercado em que não há barreiras objetivas à entrada de novos players, e onde o principal diferencial competitivo não é a propriedade da rede de infraestrutura, mas sim a qualidade do serviço (basicamente, tecnologia e conteúdo). Mais competição leva a mais inovação e investimentos, algo que qualquer mercado necessita para se desenvolver.

Do ponto de vista jurídico, igualmente, concluiu-se que aplicar aos serviços OTT lineares o mesmo regulamento previsto pela Lei do SEAC violaria não apenas o mencionado art. 61 da LGT como também dispositivos do Marco Civil da Internet, da Lei de Liberdade Econômica e da própria Lei do SEAC, que é clara ao definir o serviço como serviço de telecomunicações.

Com isso, não há que se falar na aplicação de cotas de conteúdo nacional e independente, ou mesmo em restrições à produção de conteúdo por empresas de telecomunicações, no ambiente da internet. A questão tomou grande vulto, acompanhada de discussões acaloradas no Congresso Nacional ao longo de 2019 e com desdobramentos inclusive no Supremo Tribunal Federal, onde uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta para discutir a aplicação de dispositivos do Marco Civil da Internet e da Lei de Liberdade Econômica ao tema.

Independentemente das questões mais técnicas, a verdade é que as decisões de ANCINE e ANATEL abrem espaço para a entrada de um grande número de serviços OTT no mercado nacional. Na medida em que as agências definem que conteúdos lineares fornecidos pela internet se sujeitam ao regime de OTT (serviço de valor adicionado), torna-se possível o oferecimento de diversos serviços mistos, integrados por ofertas de conteúdo lineares e sob demanda. No caso de conteúdo esportivo, musical e outros, o fornecimento de conteúdo ao vivo será também suporte para atrair consumidores para os serviços com oferecimento de outros conteúdos.

Obviamente, a entrada de serviços de gigantes do setor de mídia no mercado nacional deve ser motivo de comemoração para todos os elos da cadeia do setor – dos trabalhadores às empresas produtoras, fornecedores de equipamentos e de infraestrutura. Afinal, cada uma destas empresas realizará importantes investimentos em profissionais, marketing e tecnologia no Brasil para o lançamento de seus serviços. Como já anunciado por algumas destas empresas, estes lançamentos vem também acompanhados de investimentos em produção de conteúdo local, o qual, associado àquela já realizado por empresas nacionais e estrangeiras que já operam serviços OTT no Brasil, prometem multiplicar o valor total investido na indústria nacional nos próximos anos.

Para além dos benefícios gerados à toda a cadeia produtiva, o lançamento de novas ofertas de conteúdo beneficia acima de tudo o consumidor: um mercado mais competitivo, com ofertas diferenciadas, permitindo a escolha dos serviços mais interessantes para cada gosto e público dentre as diversas ofertas existentes. Fornecido pela internet, o consumidor também pode escolher o que assistir, quando assistir e onde assistir, tornando assim o consumo de conteúdo audiovisual algo muito mais presente na vida das pessoas e fortalecendo toda a cadeia de produção e distribuição.

Sem dúvida, as decisões de ANCINE e ANATEL abrem espaço para a consolidação de um novo mercado audiovisual no Brasil, marcado pelo fornecimento de conteúdos pela internet, maior competição e maiores investimentos. Para as empresas do setor, das maiores às menores, é momento de adaptação – com vistas à captura de um movimento de crescimento que se espera para os próximos anos.

Para que este processo se expanda ao máximo de seu potencial, é necessário ainda que sejam enfrentados gargalos de infraestrutura, como por exemplo investimentos em universalização do acesso à banda larga e em infraestrutura de serviços de produção de conteúdo – temas que merecem grande atenção do Poder Público, e que pretendemos abordar em artigos futuros neste espaço.  

José Maurício Fittipaldi
José Maurício Fittipaldi | fittipaldi@jmfmedia.com.br

JOSÉ MAURÍCIO FITTIPALDI (fittipaldi@cqs.adv.br / http://linkedin.com/in/jfittipaldi) – Advogado especializado nos mercados de mídia e entretenimento, sócio de CQS|FV Advogados (www.cqs.adv.br). É também sócio-fundador da JMF Media, onde presta consultoria a grandes players dos mercados de mídia e entretenimento, e co-fundador da Animus Consultoria e Gestão, especializada na gestão de investimentos sociais privados para investidores nacionais e internacionais (www.animusconsult.com.br).

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