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Artigo / Audiovisual

24 Setembro 2020

A Perestroika, Bauman, Jeff Bezos e futuro.

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Durante o período conhecido como Perestroika, momento político particular na antiga URSS que corresponde à abertura econômica e fim do socialismo russo, dentre as pautas mais frequentes nas populações do leste europeu não estavam lutas antiautoritárias, estudos sob ótica do liberalismo ou, até mesmo, a clara derrota que se aproximava galopante na guerra fria. O que estava na boca do povo era o desejo incessante por lingeries de diversas cores, refrigerantes em múltiplos sabores e o cinema hollywoodiano, claro. Os contos e causos da liberdade estadunidense, das maravilhas capitalistas, Las Vegas, Nova Iorque e Orlando eram sonhos que só chegavam em Moscou via mercado ilegal e cinemas clandestinos.

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Logo após a queda do muro de Berlim, em 1989, muitos russos clamavam pela abertura, queriam logo comer um Big Mac, beber Coca-Cola e assistir desenhos da Disney, a luta pela abertura e dissolução da União Soviética fervia.

Em 31 de janeiro de 1990, o primeiro McDonald’s foi inaugurado em Moscou. A década seguinte foi marcada por salas de cinema lotadas, pela alegria do povo russo em experimentar as liberdades que apenas o capitalismo proporciona. A livre escolha, as imensas possibilidades, os inúmeros filmes, os diversos pontos de vista, enfim, tudo que tanto queriam.

No entanto, como Barry Schwartz, psicólogo e professor de Teoria Social, questiona: “por que os indivíduos, mesmo com tantas opções de escolha jamais vistas antes, se sentem infelizes ou confusos na hora de comprar um produto?” O povo do leste europeu também se questionou. Aqueles que tanto clamavam por liberdade não haviam entendido o significado de sua luta. O paradoxo da escolha foi sentido na pele, a não possibilidade de escolha dentre mais de 5 ou 10 possibilidades, como afirmam diversos estudos neurológicos pelo mundo, foi colocada à prova na primeira sociedade adulta contemporânea a dois modelos econômicos opostos.

A liberdade, para Marx, por exemplo, apenas existe dentre possibilidades concretas.

A partir disso, eu entro no assunto principal deste artigo e eu mesmo questiono:

Quando um assinante abre a Netflix e passa horas procurando seu produto audiovisual perfeito para ser consumido ele realmente o encontra?

Dentre tantas possibilidades temos uma real escolha de um filme em detrimento a 7000 outros no catálogo?

O consumidor realmente possui melhores possibilidades de consumo audiovisual quanto mais filmes ou séries as plataformas oferecem?

Ele realmente tem a plena liberdade de escolha se assina simultaneamente Amazon, Netflix, Globoplay, Hulu, PlayPlus e etc?

O consumo se diversificou a partir do advento do VOD e sua infinidade de possibilidades?

Ou será que o fenômeno, no consumo do VOD, é apenas mais um reflexo da modernidade líquida?

Para Sigmund Bauman, idealizador do conceito, a modernidade líquida se baseia em relações sociais, econômicas, produtivas e amorosas fugazes, voláteis, efêmeras e maleáveis. Os modos de produção e relações de consumo dentro de algumas dinâmicas das plataformas de streaming escancaram alguns fenômenos extremamente interessantes - que podem ser associados em demasia com a modernidade líquida - e controversos, principalmente, quando tratamos de arte, cultura e intelectualidade, que são:

1. A relação da sociedade civil para/com a arte não se fortalece, principalmente, quando se percebe que em paralelo há um notório avanço da extrema-direita e perseguição aos setores artísticos e intelectuais em grande parte do globo. (Brasil; EUA)

2. A dinâmica se transforma meramente em relação de consumo, os produtos audiovisuais passam a pertencer a seus exibidores. É comum vermos afirmações como: tal filme é da Netflix; tal série é da Amazon. Os diretores e atores perdem seu valor, e as plataformas tomam conta do protagonismo e honraria das obras.

3. A falta de regulamentação, atrelada à fatores como o primeiro tópico, fazem com que países na periferia do capitalismo tornem-se meros desenvolvedores e produtores dependentes de recursos de capital externo. O patrimônio intelectual torna-se da plataforma, o lucro inteiramente também, transformando assim a produção nacional em campesinato e as plataformas em latifundiários.

Quando percebemos que a indústria cultural encontra-se nas mãos do grande capital financeiro internacional e que, muito provavelmente, o primeiro “trilhardário” de todos os tempos está diretamente ligado às produções audiovisuais e plataformas digitais, que a Disney estabelece real monopólio no entretenimento mundial e que mesmo com a cultura, a arte, o cinema, a música estando no topo da economia do mundo, artistas e intelectuais estão cada vez mais desvalorizados, precarizados e perseguidos, se torna complexo, um pouco conflitante até, um raciocínio que não tenda a questionar o modelo econômico, a produção cultural e a dinâmica do consumo audiovisual. 

Quem está ganhando de verdade com nosso trabalho?

A enorme quantidade de séries e filmes que produzimos mensalmente é realmente benéfica quando pensamos em produção de conteúdo de qualidade?

Os apreciadores da arte, consumidores da informação, verdadeiros financiadores do nosso trabalho estão satisfeitos com a liberdade de escolha concreta de um entre milhares? Estas milhares de produções são plurais ou advém de monopólios econômicos?

Sem conclusões, sem moralismo.

Apenas questionamentos a cerca do futuro. Do nosso futuro.

Lucas Onofrio
Lucas Onofrio

Lucas Onofrio, 24, é jornalista formado pela PUC- SP, cursa pós-graduação em gestão de produção e negócios audiovisuais na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e considera-se, antes de tudo, um apaixonado por contar histórias de diferentes jeitos e formas, nas mais diversas estruturas e plataformas

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