31 Agosto 2020
Tradução audiovisual da Libras: questões a considerar
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O acesso de surdos a materiais audiovisuais vem sendo discutido em âmbito nacional desde os anos 2000. Com a Lei 10.436/02 (Lei da língua brasileira de sinais - Libras), o Decreto 5.296/04 e o Decreto 5.626/05 esse tema vem ganhando projeção e mobilizando a comunidade surda para exigir do poder público o direito de acessar a produção cultural audiovisual nacional em Libras. Esse acesso é garantido, geralmente, por meio da tradução e da interpretação dessa língua realizada em um espaço delimitado em um dos cantos da tela chamado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) na NBR 15.290/05 e pelo Guia de Produções Audiovisuais Acessíveis do Ministério da Cultura de "janela de Libras". A ABNT propõe que a janela esteja em um quarto de tela na região inferior enquanto o Guia propõe, para o cinema, uma janela Picture-in-picture sem se sobrepor à obra audiovisual.
Em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), 13.146 passou a determinar o uso de janelas de Libras em propagandas políticas e, em 2016, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) lançou uma Instrução Normativa (I.N. Nº. 128) com normas e critérios básicos de acessibilidade visual e auditiva a serem observados nos segmentos de distribuição e exibição cinematográfica.
Diante dessa nova realidade, a pesquisa “Tradução de Libras em materiais audiovisuais: usabilidade de janelas e sincronia verbo-visual no processo tradutório” realizada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e liderada pelo professor e pesquisador Vinicius Nascimento (NASCIMENTO, 2020), com apoio da Fapesp, investigou se as janelas que vem sendo produzidas são adequadas às demandas de comunicação e acessibilidade da população surda.
O estudo, de âmbito nacional, por meio de um questionário virtual bilíngue (português – libras), apresentou aos surdos três gêneros audiovisuais diferentes (cinematográfico comédia, telejornalístico e videoaula) com cinco propostas de janelas de Libras para cada um. Três das janelas foram variações da NBR 15.290 da ABNT e uma foi a proposta do Guia de Produções Audiovisuais Acessíveis do Ministério da Cultura. A quinta janela de cada gênero foi uma proposta mapeada no mercado audiovisual.
A proposta de janela de Libras do Guia recebeu melhor avaliação quando utilizada em conteúdos televisivos jornalísticos, enquanto a da ABNT, que foi proposta para essa finalidade, não recebeu avaliações tão positivas. A janela proposta pelo Guia do Ministério da Cultura, especialmente para o cinema, foi a mais mal avaliada, sendo que a proposta do mercado recebeu a melhor avaliação.
Com relação ao conteúdo de videoaula, a proposta de janela utilizada pelo mercado audiovisual recebeu avaliação significativa se comparada à proposta da ABNT e do Guia.
Além desses dados, o questionário também traçou um perfil sociolinguístico dos surdos que consomem o audiovisual no Brasil. 75% dos respondentes declararam usar a Libras como primeira língua. Desses, 40% não se consideram proficientes em língua portuguesa para consumir uma obra audiovisual por meio de legenda em língua portuguesa. Apesar disso, a legenda foi o recurso de acessibilidade preferido por 61% dos participantes da pesquisa. O paradoxo entre a falta de proficiência para ler uma legenda e a preferência por esse recurso talvez esteja no fato de que a comunidade surda ainda não está acostumada ao consumo de obras audiovisuais por meio de sua língua, visto que a inserção das janelas tem acontecido de forma vagarosa. Soma-se a isso o fato de que as obras audiovisuais financiadas pela ANCINE e acessibilizadas com Libras são depositadas na Cinemateca nacional, e deveriam circular junto ao grande público, uma vez que a I.N. 128 determina que as salas de cinema devem garantir os recursos de legenda, audiodescrição e Libras para quem precisar. Entretanto, não é isso que, de fato, acontece.
Esses dados revelam que as janelas de Libras precisam ser pensadas na produção de uma obra audiovisual - da concepção ao seu consumo - a partir das especificidades dos conteúdos acessibilizados. Indicam, também, que faltam mais testes de recepção desse recurso junto à comunidade surda para averiguar, por exemplo, qual é o posicionamento mais adequado da janela e seus efeitos no cérebro do espectador.
Além disso, a fragilidade no cumprimento das políticas públicas voltadas à acessibilidade faz com que a comunidade surda não tenha oportunidades reais de consumir a cultura audiovisual brasileira em sua língua os impelindo, então, a optar pelos recursos que já são utilizados, mesmo que eles não respondam efetivamente às suas necessidades comunicacionais.
A pesquisa aponta também para a necessidade de formação de tradutores e de intérpretes da Libras para atuar no campo audiovisual, devido às diferentes demandas envolvidas nos processos tradutórios audiovisuais, bem como para a necessidade de produtores do audiovisual atentarem à acessibilidade como uma prática constitutiva da produção de conteúdo e não como recursos que precisam ser inseridos posteriormente para cumprimento da legislação.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE, são 9,8 milhões os brasileiros autodeclarados deficientes auditivos, uma população heterogênea que inclui urdos e falantes de Libras. Pensar em um audiovisual acessível significa incluir essa parcela da população que vive à margem da produção e do consumo da cultura audiovisual brasileira.
Vinícius Nascimento
Doutor e Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP e Bacharel em Fonoaudiologia pela mesma instituição. Tradutor e intérprete de Libras-Português. Professor Adjunto II do Departamento de Psicologia da UFSCar no Bacharelado em Tradução e Interpretação em Libras e Língua Portuguesa. Coordenador do Laboratório de Tradução Audiovisual da Língua de Sinais (LATRAVILIS/DPsi/UFSCar) e líder do Grupo de Estudos Discursivos da Língua de Sinais (UFSCar/CNPq).
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