Exibidor

Publicidade

Artigo / Cinema

19 Agosto 2020

“Hoje Bruna Surfistinha é um filme de época. Da época em que se podia transar e dar beijo na boca no cinema”

O cineasta Marcus Baldini, que atraiu mais de 2 milhões de espectadores com a história da ex-garota de programa Raquel Pacheco, fala sobre os desafios que a pandemia vai impor à retomada das produções

Compartilhe:

Oferecimento:

Por Gisele Vitória

O cineasta Marcus Baldini, diretor dos filmes Bruna Surfistinha (2011), Os Homens São de Marte… E É Pra Lá Que Eu Vou (2014) e O Homem Perfeito (2018) segue a vida pelas lentes da quarentena. Também parceiro da Escarlate no projeto de “O Sequestro do Voo 375” - a história do avião da Vasp sequestrado com objetivo de atacar o Palácio do Planalto, ocupado em 1988 por José Sarney -, ele está mergulhado na preparação de novos projetos, revendo roteiros, focado nas suas pós-produções e em tudo o que pode ser feito enquanto não vem a vacina que livrará a humanidade do novo coronavírus. Nesta entrevista à jornalista Gisele Vitória, que coordena a comunicação da Escarlate, Baldini reflete sobre o momento no Brasil e no mundo, os aprendizados desta fase e as alternativas possíveis para o audiovisual na expectativa da retomada das produções cinematográficas.

Publicidade fechar X

Escarlate - Como tem sido a sua experiência de trabalho como diretor de cinema na perspectiva de uma pandemia?

Marcus Baldini – Quando a pandemia chegou ao Brasil, eu estava no meio de uma série que estou dirigindo. A gente ia começar a filmar em três semanas. Paramos. Tivemos a relativa sorte de não ter começado a filmar.  Este é um momento de foco nos roteiros, na preparação de filmagens, no aprofundamento do que é possível fazer em pós-produção e montagens.  Tem sido uma hora para fortalecer ideias, trabalhar no desenvolvimento delas. É uma situação difícil sob todos os aspectos: psicológico, financeiro, de mobilidade.  O maior problema é que as regras ainda são confusas. A gente não sabe exatamente. Vamos ter que atravessar um pouco mais essa fase. Entre os maiores desafios está o de planejar um set de forma que o orçamento não estoure. E também o de garantir uma produtividade relativa dentro das restrições que os protocolos de proteção vão impor. Isso vai desde a readequação dos roteiros, em determinadas cenas, até uma questão de desenho de produção, desenho de filmagem e plano de filmagem. Tudo muda e se altera muito. Isso também inclui uma discussão financeira, que é superimportante. Como mudar sem alterar o budget? Como mudar um projeto sem alterar artisticamente o seu final? Talvez você não possa dar um beijo em cena... Como filmar um show aonde as pessoas interagem? Como construir isso dentro dessa realidade de não poder aglomerar vinte pessoas? Você vai filmar as pessoas individualmente? Vai filmar com cinco pessoas? A gente pode pegar 10 pessoas que já tenha sido testadas ou que já tenham o anticorpo do vírus? Como tratar a relação de contato: beijo, sexo, lutas? Como rever o roteiro para tentar evitar esse tipo de cena? Tudo isso está em jogo.

Escarlate - Como readaptar um beijo em cena?

Marcus Baldini  - Olha, eu não vejo como... Estou trabalhando com a expectativa de que a gente vai conseguir filmar beijos de alguma forma. Ou os atores farão testes Covid antes ou a gente deixa isso para o final do plano.  Seja num momento de mais tranquilidade ou quando tivermos testes mais confiáveis. Ou com a chegada da vacina. Espero que até o meio do ano que vem a situação seja diferente.  Mas as coisas mudam muito de uma hora para outra. Estamos vivendo uma situação de muitas informações contraditórias, sem nenhum tipo de liderança nacional.  Um lugar vazio, que deixa muitos espaços para dúvidas. Tento dar passos quando tenho certezas. E essas certezas estão difíceis. Ainda falta uma experiência de dois ou três meses, com pessoas voltando a filmar, com uma estrutura maior, e mais fluxo de filmagem. Veremos isso na volta das produções das novelas, nas TVs, nas dramaturgias da Globo, da Record.  Vamos ter mais clareza quando eles voltarem a filmar, e essas experiências vão acontecer aos poucos. E aí, em dois, três meses teremos uma bagagem de experiência da retomada. Acho que aí poderemos planejar, de forma muito mais sólida. Eu ainda não estou lidando completamente com a questão de mudar radicalmente. Há histórias que não podem mudadas. Há histórias que precisam ter muitas pessoas juntas. E a realidade do mercado brasileiro não permite que você faça muitas cenas em pós-produção. Me refiro aos orçamentos. Há toda uma equação nisso.

Escarlate - Trocando em miúdos, construir uma cena em estúdio eliminando cenas presenciais e usando tecnologia sai muito mais caro, certo?

Marcus Baldini  - Sim. Teoricamente, você consegue fazer quase tudo hoje em dia com pós-produção, com computação gráfica, 3D , textura. A gente consegue trocar cabeça de atores, filmá-los separados e fingir que eles estão juntos, a gente consegue qualquer coisa com tecnologia. Mas a questão é que isso não é viável na realidade de muitos projetos no Brasil. São três pilares. Como não prejudicar completamente a criação artística? Como não estourar o orçamento? Como contemplar os protocolos para reduzir os riscos da pandemia? O desafio é como gerenciar esses três pilares.  Como contemplar os três, sem prejudicar um ou outro? Isso está guiando muitos produtores no Brasil.

Escarlate - Como seria filmar Bruna Surfistinha hoje?

Marcus Baldini - Bruna Surfistinha hoje é um filme de época. Da época em que as pessoas podiam transar, dar beijo na boca no cinema (risos). Não tem jeito de filmar hoje.

Escarlate - Viveremos uma fase de assumir esse novo figurino da pandemia nos projetos?

Marcus Baldini - Ninguém sabe o tempo que isso vai durar. Ninguém sabe como será a relação daqui para frente com a máscara. Daqui a um ano, a gente não sabe se isso ainda vai ser uma temática. Podemos filmar uma história que se passou dentro da pandemia.  Se este cenário durar mais tempo, se o uso da máscara se tornar tão comum como lavar as mãos e escovar os dentes, a tendência é que isso se incorpore ao cotidiano das pessoas. E aí acho que as histórias passarão a ser contadas mais dentro da pandemia. Já existem filmes sendo feitos remotamente. Serão nossas histórias da pandemia.

Escarlate - Pensando em paralelos, a exemplo do realismo italiano, que incorpora a questão da guerra, teremos as obras da pandemia?

Marcus Baldini - Como toda situação onde existe uma ruptura, dentro de um sistema padrão vigente, que é o que acontece agora, vínhamos vivendo numa toada e de repente tivemos um corte. Isso é muito rico. Ressignificamos vidas. Dilemas humanos se aprofundam. Situações completamente fora do convencional passam a acontecer. Neuroses se amplificam. Amores de dissolvem ou se fortalecem. Então, acima de tudo, para um artista, para alguém que está pensando fundamentalmente, e eu me conecto muito com histórias pelos personagens, através da motivação central dos personagens, eu acho que esse é um momento muito rico de sentimentos. É um momento de repensar, de pensar em histórias e enxergar os seres humanos. Tudo isso está acontecendo e está mudando muita gente. E mais do que tudo isso, há uma tragédia em curso. Ultrapassamos 100 mil mortos no Brasil, e em breve passaremos de 800 mil mortes no mundo (hoje 773 mil). São muitas famílias sofrendo na pandemia. É comovente olhar a luta dos profissionais de saúde no mundo inteiro. Como artistas e seres humanos, nos importamos, lamentamos e nos solidarizamos com essa tristeza arrebatadora de tanta gente, acima de qualquer outro olhar. É um retrato trágico, e ao mesmo tempo nos mobiliza como fonte de inspiração.

Escarlate - Nessa mesma linha, me ocorre pensar em Federico Felini, que ao filmar Fellini Oito e Meio, contou em entrevistas que de fato vivia uma crise criativa e transformou a angústia no próprio tema do filme.  Ou seja, ele transformou um problema em solução e ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1964. A exemplo disso, trazer os efeitos da pandemia para dentro da tela como temática seria uma forma do audiovisual usufruir positivamente dessa experiência dramática?

Marcus Baldini - Sem dúvida. Não sei se é positivo ou negativo, mas é uma forma de estar atento ao que que o mundo ao seu redor inspira. O artista é recortado. A gente reflete e retrata o mundo.  Estamos aqui absorvendo experiências do cotidiano, do que te conecta com emoções mais profundas, do que motiva a tal da provocação e da inquietação que leva o ser humano a produzir. Agora é até difícil dizer que tudo isso é muito rico com tanta desgraça ao redor. É desagradável dizer essa palavra. Mas é instigante e provocador. Temos que repensar tudo isso que o mundo vive do ponto de vista das relações humanas. Mas do ponto de vista prático e operacional é uma catástrofe.  No audiovisual, nós não somos escritores. Ou seja, a gente não pode se recolher e escrever um livro com a nossa inspiração. Não somos pintores. A nossa forma, o cinema, é uma forma de expressão que envolve um lado operacional prático muito grande, o que dificulta muito as coisas.

Escarlate - De fato. Mesmo para filmar as histórias da pandemia há uma limitação muito forte...

Marcus Baldini - Sim. Outro dia eu estava descrevendo minha atividade para uma pessoa de outro setor.  Eu contava que trabalho com aglomerações e que, no momento atual, essas aglomerações são vistas pelo governo como completamente desimportantes. Qualquer operação do audiovisual é uma aglomeração desimportante do ponto de vista de alguém que não se preocupa com a cultura. As pessoas sempre falam como está no seu setor na pandemia.  Na construção civil. Nos restaurantes. Em cada área.  Só que realmente a cultura é vista hoje no Brasil de uma forma muito supérflua. A cultura está sendo maltratada.

Escarlate - Como é para um cineasta ter a sua atividade percebida como necessidade não-essencial nesse momento?

Marcus Baldini - Nem essencial e muito menos de construção. Às vezes parece um luxo.  Criou-se uma ideia de que a cultura é como um luxo e não um valor primário de um país. E aí caímos numa categoria de aglomeração desimportante. Esse olhar faz parte desse momento de falta de liderança, de ausência de conceito geral de nação. Isso faz parte de uma falta de direcionamento das políticas públicas.  Tem acontecido em vários lugares. É o tal do desgoverno. Mas a gente tem que pensar que isso vai passar. O que eu estou tentando fazer é justamente focar em desenvolver minhas histórias, em aprimorar meus projetos, nas minhas sinopses de projetos que eu quero fazer.  É usar esse tempo para colocar aquela energia de criação nos lugares que você não estava conseguindo colocar. Ter o tempo para conseguir pensar, repensar, discutir, voltar, escrever, aprofundar. O momento é de criar projetos, focar no desenvolvimento, preparar tudo para quando voltar, voltar com tudo. E saber que essa guerra contra a cultura ela não vai durar. Ela vai se desmanchar em um monte de coisa. O mal que tudo isso vai fazer é um retrocesso de anos, mas a gente vai continuar resistindo. Vamos continuar fazendo filmes e criando. Essa força de criação não tem quem derrube.  E quanto mais aparece oposição mais ela se fortalece. Mais as pessoas ficam aguerridas. E a gente vai continuar lutando e fazendo o que a gente tem que fazer.  É pensar que isso vai passar e acreditar que a cultura e a arte são as riquezas de um povo. Temos essa consciência e isso fala mais alto do que qualquer extremismo ou ponto de vista limitado e tosco que qualquer governo possa ter.

Escarlate - Você acredita que o mercado vai se readaptar a partir dos limites atuais do parque exibidor? O quanto o streaming avançará?

Marcus Baldini -Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Vou te responder mais de um ponto de vista de criador e de diretor do que de produtor. A minha vontade é que meus projetos e histórias aconteçam e que eu possa criá-las. E que eu tenha parceiros que viabilizem isso. Que eu possa filmar e fazer isso chegar até um grande número de pessoas. Me importa menos onde o meu filme ou a minha série ou minissérie vai ser exibida. A ideia é que ela seja exibida e que chegue até as pessoas. Tenho a sorte de ter filmes no meu currículo que são filmes que as pessoas assistiram. Tanto Bruna Surfistinha (2011) quanto Os Homens são de Marte (2014) , ou o próprio Uma Quase Dupla (2018). O Homem Perfeito (2018) ficou agora no ranking do Netflix, no top 10, durante um mês. Chegou ao segundo filme mais visto no Brasil, algo que não tinha acontecido no cinemas. Do ponto de vista do diretor que quer que suas ideias e seus filmes sejam vistos por mais pessoas, essa oferta de janelas só tem o lado positivo. Me alegra que isso aconteça. Tenho pensando projetos para parceiros de streaming e para o cinema. Do ponto de vista de produção, eu sei que há uma outra discussão que é um ponto de vista de produto, comercial.  É uma discussão que passa pelo modelo de negócio. O mercado vai ter que se ajustar e o governo vai ter que entrar protegendo, tanto produtor quanto o distribuidor, o exibidor, taxando eventualmente coisas que devem ser taxadas, como tem a lei, a proteção, a lei da cota de tela, como tem todos os incentivos. Esse giro da economia tem que acontecer de uma forma saudável para a competição e para a proteção do copyright nacional. Esses são os dois pilares. Conseguir equilibrar tanto o estímulo ao mercado mas manter o apoio à soberania, vamos dizer assim, de ideias nacionais. Um jeito brasileiro de fazer cinema, esse é o equilíbrio. Isso está acontecendo, mas, como disse, é a pergunta de um milhão de dólares. Porém, para quem cria, para quem faz, para quem tem a alma mais conectada com a ideia de dirigir e de fazer coisas, com o lado artístico, fazer o seu trabalho chegar até as pessoas é maravilhoso. O Homem Perfeito, por exemplo, não teve muitas chances no cinemas, por uma competição muito radical, aquela coisa de grandes sucessos estreando ao mesmo tempo. Você está no meio de Rei Leão 3, de Homem Aranha 4. E de repente, numa janela na Netflix, o filme entrou de novo e foi valorizado. O filme ficou lá no top 10.  Um monte de gente me escreveu, muitas pessoas assistiram. Isso para o criador e para o diretor é muito legal. A gente trabalha para mexer com a vida das pessoas, com as emoções. Para as pessoas repensarem coisas. Queremos que as pessoas vivam aquela história que, acima de tudo, foi criada.

Marcus Baldini
Marcus Baldini

O cineasta Marcus Baldini, que atraiu mais de 2 milhões de espectadores com a história da ex-garota de programa Raquel Pacheco, fala sobre os desafios que a pandemia vai impor à retomada das produções

Compartilhe: