05 Agosto 2020
A vida de uma documentarista independente em meio à pandemia
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Documentarista há mais de 20 anos, a cineasta Lygia Barbosa não parou na pandemia. Ainda que, remotamente, em casa, ou nas ruas de São Paulo, protegida por EPIs. Carioca, baseada há mais de 20 anos em São Paulo, co-diretora com Eliane Brum e produtora do documentário “Laerte-se”, da Netflix, sobre a cartunista e Chargista Laerte Coutinho, Lygia conta nesta entrevista a jornalista e pesquisadora Gisele Vitória, que coordena a comunicação do Estúdio Escarlate, como tem sido a rotina de uma documentarista independente em meio à pandemia da Covid19. Ela fala ainda de sua trajetória e reflete como seria filmar hoje projetos bem sucedidos como “Laerte-se” (2017) e o documentário “Haenyeo – A Força do Mar”(2018/Tru3Lab), uma co-produção coreana sobre mulheres, muitas idosas, que colhem frutos do mar em mergulhos de apneia na ilha coreana de Jeju, exibida em 2018 na TV Cultura e na NATGEO. Ela também dirigiu a série “Across the Amazon” (2014), série exibida por cinco anos no National Geographic Channel International. Lygia filmou São Paulo durante a pandemia e conta os desafios. Vai lançar em setembro “Sabores do Templo – A simplicidade da Cura”, documentário sobre monjas budistas coreanas, alimentação, respeito ao corpo a natureza, que será exibido na plataforma “Cinema em casa”, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. E ela ainda enfrenta a missão de remotamente editar seu próximo filme rodado ano passado em 6 países, , longe da ilha de edição, durante a quarentena. Conselheira da Liga de Mulheres pelo Oceano, a documentarista agora se prepara para o desafio de filmar a costa brasileira em mais um projeto sobre o mar, que já precisou replanejar duas vezes o cronograma de filmagens em função dos lockdowns e novas ondas da Covid nestes últimos cinco meses.
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Como é a vida de uma documentarista independente em meio à pandemia?
O maior desafio para mim neste momento é o cuidado com o outro. Filmar com todas as precauções e cuidados para não transmitir o vírus para pessoas e comunidades que estão em lugares mais isolados. O que muda para uma documentarista na pandemia é que a gente tem que se preocupar muito mais com a saúde outro. Muitas vezes vamos para regiões remotas. Antes da pandemia, eu filmei, por exemplo, em vilarejos na Coreia do Sul, que não foram atingidos pela Covid. Como seria chegar lá agora, direto do Brasil, para filmar?
Você filmou em São Paulo durante a pandemia?
Fui convidada para fazer registros da pandemia em São Paulo, no começo e durante o lockdown. Foi um grande desafio. Tive contato com pessoas idosas nas ruas. Usei EPI, máscara, álcool gel, distanciamento e tive surpresas da rua. Um dia me deparei, em um viaduto em pleno bairro da Liberdade, com uma grande quantidade de pessoas sentadas nos bancos tomando sol. Conversando, descobri que elas buscavam o sol de maio que não batia nas suas casas e apartamentos. Elas estavam confinadas sem receber um pingo de sol. E pareciam ter pouca informação sobre como usar máscaras e ter cuidado com distanciamento. Vi Velhinhos lendo seus jornais tapando apenas a boca.
O que mais lhe preocupou?
Não me senti insegura para filmar. A minha preocupação era mais com os outros. Tive conversas com parceiros da Coreia do Sul, que já vinham lidando com o vírus antes, e isso me ajudou a sair na rua com mais segurança e mais orientada em como agir, como me comportar e como me proteger. O maior desafio para mim é que essa pandemia me cravou uma fronteira com o objeto filmado. Este bloqueio com o objeto da filmagem nos distancia, obviamente. Para entrevistar uma pessoa e tirar o melhor dela, o contato visual, o olho no olho, é importante. Os olhos e a expressão do outro contam uma história. E de repente nos comunicamos com máscaras. E difícil.
Que tipo de artimanha você precisou lançar mão nesse momento para tirar o melhor das pessoas?
Essa fronteira esfria a relação, distancia. Ainda mais entre brasileiros. Eu precisei de mais tempo. Levei mais tempo para ganhar a confiança das pessoas. Levou mais tempo para a gente interagir de uma forma mais natural. Tive que contar mais detalhes do que eu estava fazendo ali, quem eu era. Mas tudo muito difícil, porque eu tinha que manter distância, usando uma máscara e todas as proteções necessárias.
Precisou adiar projetos?
Estou replanejando meu próximo projeto, uma série pela costa brasileira em comunidades e vilas de pescadores, muitos deles ainda bem protegidas do Covid. Teremos que ver como vai ser isso. É um projeto sobre o mar no Brasil, os impactos que geramos, as iniciativas positivas e as negativas que estão acontecendo na costa brasileira. Tivemos que reformular o projeto, escolhendo as áreas onde a pandemia estava controlada ou inexistente. Porém, depois de dois meses de pesquisa, o cenário começou a mudar. E, de novo, estou tendo que reformular o projeto, sob o risco de acontecer uma nova onda ou haver lockdown em algumas das cidades previstas. Estou remanejando permanentemente as minhas filmagens de acordo com os índices de contágio em cada estado, pensando no mundo novo e nesse novo normal.
Uma exercício de reflexão: se você fosse filmar “Laerte-se” hoje, quais seriam as dificuldades?
Filmei por três anos. Hoje, acho que filmar “Laerte-se” seria impossível. Porque um filme como esse precisa de muito tempo para chegar na profundidade que eu e a Eliane Brum chegamos. Eu diria que se tivesse que filmar “Laerte-se” hoje, teria que sair da minha casa, ficar longe da minha família. Teria que talvez me isolar por duas semanas, fazer o exame e morar com Laerte por um tempo. Seria a forma mais segura de eu continuar filmando. Porque filmamos Laerte de uma forma muito intimista. Estávamos dentro da casa dela o dia inteiro. A forma mais segura de filmar seria morar com ela. Ou alugar uma casa do lado da casa dela. Ficar realmente muito próximo. E totalmente isolada. Seria um desafio realmente. O filme passa por vários momentos, inclusive manifestações, onde ela vai, eventos familiares, casamentos, chás de cozinha, eventos do dia-a-dia de uma pessoa, que hoje nem acontecem. Momentos que eu vivi com Laerte durante as filmagens hoje não estão acontecendo. Ou ocorrem de forma muito diferente.
E o documentário das mergulhadoras coreanas, como seria filmar na pandemia?
Temos que lembrar que Brasil e Coreia são mundos muito diferentes. A Coreia é um outro país com outra consciência e outra cultura, inclusive social, muito diferente da nossa. Eles não se beijam nem se abraçam como a gente. Existe um distanciamento natural. Na ilha de Jeju, na Coréia, onde filmei “Haenyeo, A Força do Mar”, tem muitos poucos casos de Covid. Para filmar hoje lá eu teria que chegar em Seul, ficar isolada por duas semanas, pegar um voo e ir para Jeju, onde as mulheres colhem frutos do mar. Ficar mais uma semana isolada antes de filmá-las. Talvez fosse menos trabalhoso. Tenho amigos e parceiros que estão filmando lá agora. No lockdown, logicamente, isso reduziu muito. Mas eles não tiveram um lockdown tão longo. Existia sim uma consciência de todos ficarem mais em casa.
O que é peculiar no seu trabalho como documentarista?
Meu trabalho é revelar as histórias dos outros. E a minha visão de mundo tem que ser a mais ampla possível. É um trabalho permanente de olhar a vida 360o, sem nenhum pré-julgamento. Isso requer esforço. Como documentarista, já faz muitos anos que entendi e tento ser cada vez mais discreta nas mídias sociais. Não interessa a minha história. A partir do momento que você publica nas redes sociais, a gente sabe que aquilo começa a traçar o seu perfil, identificar, modelar sua ideologia, revelar o que você pensa do mundo. Seja na política, na religião, qualquer tema polêmico.
Desde quando você pensa assim?
Acho que desde pequena. Sempre fui uma pequena interessada num mundo que não era o meu. E aquilo me mostrou que não existe one single story. Não existe só um mundo. Existem muitos mundos. E que todos esses mundos tem coisas muito interessantes. Desde criança, me interesso por aquilo que não conheço. Talvez não conscientemente, eu já tivesse esse olhar para a discrição. Talvez essa consciência tenha começado a se materializar quando comecei a produzir documentários e fiz minha primeira grande expedição.
Qual?
Atravessei a Amazônia, o continente sul-americano, do seu extremo leste ao seu extremo oeste, pela Transamazônica. Foi em 2009, e resultou na série “Across the Amazon”, para o National Geographic Channel International. Ficou no ar por cinco anos. Fui a diretora dessa expedição, que atravessou a América do Sul durante 70 dias. A expedição começou no Brasil e terminou no Peru. Essa experiência foi um marco para mim. Lá, vi uma história do Brasil que eu não tinha chegado tão perto: carvoarias ilegais com crianças trabalhando e respirando aquela fumaça preta, onde a mãe dizia que era melhor ter o filho ali do lado dela do que se envolvendo com tráfico de drogas. Lá sofri emboscadas dos carvoeiros ilegais. Atravessamos a mata vendo grandes caminhões carregando troncos gigantes de arvore, sendo cortadas ilegalmente. Vi a pobreza de gente que vivia numa casinha de pau à pique com uma panela apenas para todos se alimentarem.
Como foi esse projeto?
Eu estava desenvolvendo um projeto para a National Geographic durante um ano e no dia da apresentação o Sidney Suissa, vice-presidente da NATGEO, nos pediu desculpas depois de elogiar o projeto desenvolvido. Mas disse que precisava urgente de um projeto Amazônia, o que não é uma história inédita. Esse é o grande desafio do documentarista. Como contar, com um recorte inédito, uma história já contada? Foi aí que pesquisando, junto com outros parceiros, a gente montou um time de colaboradores e, foi pensada uma rota inédita. O ineditismo era atravessar a América do Sul, de leste a oeste. Essa rota só tinha sido percorrida antes por um inglês, mas a transamazônica ainda nem existia. Foram mais de 10 mil quilômetros em 70 dias.
E você também teve esse desafio de contar uma história diferente, com a Eliane Brum, no documentário “Laerte-se”. Como foi?
Na época que começamos a conversar com a Laerte, ela já estava muito na mídia. Dava muitas entrevistas e vinha falando desse momento que ela vivia (a transsexualidade). Nosso desafio foi não falar mais do mesmo. Durante um ano, eu e Eliane conversamos com a Laerte. Foi uma grande pesquisa e uma grande reflexão. E foi assim que começamos a perceber a importância de elementos na vida da Laerte, como a sua casa, seu corpo, seu trabalho. A diferença da casa e a diferença do seu corpo, que ela habitava. Mas que ao mesmo tempo tudo junto. A relação da Laerte com o trabalho, a criação, os desenhos e sua vida. A partir daí entendemos como contar essa história. E que não era uma história sobre o ativismo LGBT, mas a história de uma vida.
Você tem uma ligação com o mar e é conselheira da Liga de Mulheres pelos Oceanos.
Agora é Liga das mulheres pelo Oceano. Agora não tem mais o “s”. Em 2021 começa a década da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) em grande esforço internacional. Passamos a considerar que não existem vários oceanos. Existe um oceano só. Um sistema só. Onde tudo está ligado. Se acontece alguma coisa na Antártica isso vai afetar o Oceano Atlântico, o Índico, o Pacífico e a terra.
A sua relação com o mar nasce a partir de que trabalho como documentarista?
Acho que nasce quando eu nasci. Sou carioca, e, meus pais moravam na casa da minha bisavó quando era bebê. Ela morava em um apartamento na Avenida Atlântica e o meu parquinho era a praia de Copacabana. Meu avô velejava. Meu pai velejava. Eu velejava, e desde pequena, comecei a entender os desafios, o respeito e a paixão pelo mar. Mas foi em 2014, que pude fazer um documentário especificamente sobre o tema. E foi na Coreia do Sul.
Como aconteceu essa relação com a Coréia?
Eu fazia para a Samsung um projeto institucional sobre educação e voluntariado em uma aldeia indígena na Amazônia e lá conheci uma equipe de documentaristas coreanos, trabalhando no mesmo projeto. É uma relação que dura até hoje, de muita amizade e parceria profissional. A convite de Kim Hyuk Jin, desenvolvemos um projeto de intercâmbio cultural sobre o tema água, onde o parceiro coreano viria filmar no Brasil, eu teria que ir para a Coréia filmar. Pesquisei a história dessas mulheres que coletam frutos do mar em apneia e convidei o fotografo Luciano Candisani para contar esta história, mais uma vez buscando um jeito de diferente contar uma história que já tinha sido filmada. Para mim é fascinante a história delas e a cultura. O documentário foi mostrado para elas lá, e aqui foi lançado no dia 8 de março, Dia da Mulher, em 2018, em parceria com a TV Cultura e a NatGeo. Depois o filme foi liberado para licenciamento em canais em outros países. Agora vai ser lançado o “Sabores do Templo - a Simplicidade da Cura”. Um filme sobre monjas budistas na Coreia, que falam sobre alimentação e cura, e sobre o respeito à vida nos dias de hoje. As monjas dizem que quando você destrói a natureza é como se você tivesse cortando uma parte do seu próprio corpo. Vai ter exibição gratuita em setembro em um programa que será lançado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, Cinema em casa. Os dois filmes em co-produção coreana vão ficar na plataforma desse programa no mês de setembro.
Como você tem percebido o cenário pós-pandemia na Coreia no audiovisual?
Eles tiveram uma redução drástica de produção. Eles tiveram a consciência de parar e depois foram retomando aos poucos, com todos os cuidados. Mas há uma grande preocupação com a recessão econômica na nossa área também. Eles também estão buscando novas alternativas de produção e de financiamento. O governo segue com os editais e o incentivo de recursos financeiros.
Aqui você sentiu também?
Senti. No caso de documentários, as condições são um pouquinho melhor do que as produções de ficção. Os meus trabalhos atuais são filmados em áreas abertas, o que facilita. É diferente se eu estivesse fazendo um filme em um hospital. Mas um projeto de ficção é bem mais complexo. Os atores tem que se beijar, se tocar.
Que aprendizados profissionais você tem tido nesses cinco meses de pandemia?
Documentaristas são sempre testados diante de dificuldades. E esta é uma dificuldade gigantesca e inimaginável. O planeta está descobrindo como passar por isso. O desafio maior foi continuar me movimentando. O que eu tiro dessa pandemia foi o desafio de não ser vencida pela inércia. Quando, nós, seres humanos, queremos ser proativos, a gente dá um jeito de continuar trabalhando. A pandemia me trouxe esse olhar tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Ainda vamos ter estresses e experiências inéditas. Mas o que venho aprendendo é que sempre vai ter um jeito. Venho descobrindo maneiras de trabalhar em pós-produção com a montadora Nani Garcia, de forma remota. O normal era sentarmos juntas e termos uma interação calorosa na ilha de edição. Agora a gente trabalha à distância. Mas não paramos. A gente tem que ser flexível. Com Raphael Scire, meu roteirista é a mesma coisa. Não vale mais “assim não dá e eu não vou fazer”. Por que não podemos inventar um outro jeito de viver e trabalhar, de ser feliz e de proteger o outro? Temos que olhar o ser humano como um ser flexível, criativo, que pode se transformar e se superar.
Lygia Barbosa
Diretora de “Laerte-se”, “Across the Amazon” e “Haenyeo – A Força do Mar”, a cineasta conta os desafios de filmar na era da Covid19, fala dos aprendizados de editar remotamente e reflete como seria se realizasse agora o documentário da Netflix sobre a cartunista e chargista Laerte Coutinho, que co-dirigiu com Eliane Brum.
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